Óscar Cardoso, inspetor da
PIDE-DGS Foto: Sérgio Lemos
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Ninguém dava nada por eles quando
se apresentaram ao serviço, pequenos, magros e com armas arcaicas, mas os oito
bosquímanos recrutados há 50 anos por Óscar Cardoso, inspetor da PIDE-DGS
colocado na cidade angolana de Serpa Pinto (atual Menongue), deram origem ao
grupo paramilitar mais temido por MPLA, UNITA e FNLA. Remetida ao esquecimento
durante décadas, a sua história é agora contada em ‘Os Flechas – A Tropa
Secreta da PIDE-DGS na Guerra de Angola’ (Casa das Letras), livro de Fernando
Cavaleiro Ângelo, de 47 anos, chefe da Divisão de Informações do Comando Naval
e diretor do Centro de Análise e Gestão de Dados Operacionais da Marinha.
Avesso a entrevistas, Óscar
Cardoso, que aos 81 anos será o mais velho dos oficiais graduados da polícia
política, acedeu a falar com o autor do livro, acabando por escrever um
prefácio. Só discorda do termo ‘tropa secreta’. "Viviam na cidade, dentro
do quartel, andavam com os soldados e eram pagos pelas Finanças. Eram
utilizados em operações muito especiais. Operações que nós, brancos, não
teríamos capacidade física para fazer. Passar meses no mato, sem preocupações
de logística, era a grande vantagem deles", disse à ‘Domingo’.
A primeira vez que Fernando
Cavaleiro Ângelo ouviu falar nos Flechas não foi em Portugal. Estava em
Inglaterra, a fazer um mestrado em Estudos de Informações e Segurança, quando
viu uma referência à força paramilitar enquanto pesquisava documentos sobre a guerra
do Biafra, que matou mais de um milhão de nigerianos. Chegado o momento de
elaborar a tese, sobre a "utilização pelos serviços de informação de
Portugal de grupos paramilitares para desenvolver atividades encobertas ou
clandestinas", procurou o antigo inspetor da PIDE-DGS, que lhe explicou
como nasceu uma ideia ‘fora da caixa’ que se espalhou pelo território angolano.
"Eles liam o terreno como
nós lemos o jornal", recorda Óscar Cardoso, ainda hoje fascinado com a
capacidade dos bosquímanos para se deslocarem no mato e deduzirem idade, sexo e
peso de quem perseguiam só de lhe observar as pegadas. Ouvira falar deles pela
primeira vez quando estudava no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, mas
só lhes ganhou a confiança graças a Manuel Lemos. O administrador colonial
estava à beira da reforma e dedicara a vida a lutar pelos direitos do povo
cungue, desde há muito subjugado por etnias banto no Cuando-Cubango, região do
Sul de Angola junto à Zâmbia e à Namíbia (então ocupada pela África do Sul) a que
chamavam "terras do fim do Mundo".
MÃO ESCONDIDA DO ESTADO
Criar os Flechas foi uma feliz coincidência, pois o motivo para ser colocado em tão remoto local não foi o melhor. Cardoso partira de Lisboa para Luanda, agitada por seis anos de Guerra Colonial, com a missão secreta de detetar ambições independentistas nas minorias brancas de Angola e de Moçambique, empenhadas na constituição de um "bloco antiterrorismo" com a África do Sul e a Rodésia. "Em Portugal é muito difícil as coisas serem secretas. Quando lá cheguei, o meu diretor, São José Lopes, polícia extraordinário e com uma grande cabeça, já sabia de tudo", recorda o inspetor da PIDE-DGS, que não demorou a ser enviado pelo superior hierárquico, "julgando que me castigava", para a cidade de Serpa Pinto.
Foi lá que Manuel Lemos lhe
apresentou os cungue, mas a primeira impressão esteve longe de ser brilhante.
"Pensei que pareciam múmias, esqueléticos, num estado físico
terrível", diz Óscar Cardoso, que não se deixou iludir pelas aparências,
tirando partido da resistência extrema às adversidades e do "ódio
visceral" que os bosquímanos nutriam por aqueles que povoavam o seu antigo
território. O balanço das primeiras operações dos Flechas, descobrindo na
imensidão de quilómetros por desbravar acampamentos do MPLA, indicou que
Portugal acabara de ganhar um trunfo no combate aos movimentos que lutavam pela
independência de Angola.
"Muitos países têm esta mão
escondida para atividades em que o Estado não pode mostrar a cara",
salienta Fernando Cavaleiro Ângelo. Pouco falados nas décadas após o fim da
Guerra do Ultramar - "não sei se por preconceito ou se por
desconhecimento", refere o autor -, os Flechas tiveram a particularidade
de ficar sob a alçada da PIDE-DGS, que conjugava as funções de polícia política
e de serviço secreto, em vez de responderem ao Exército.
Certo é que a existência de
paramilitares capazes de atacar posições do MPLA, em Angola e na Zâmbia, teve
um impacto muito além do efeito psicológico. Mas também esse era grande, pois
deviam o nome às flechas embebidas em veneno que usavam para caçar.
"Aquilo atuava no sistema nervoso. Quem era atingido ficava especado e não
se conseguia mexer, absolutamente ciente do que lhe ia acontecer, e o que lhe
acontecia não era nada agradável. Fizeram coisas horríveis", admite Óscar
Cardoso.
Bem mais eficazes a recuperar
armas e documentos dos guerrilheiros do que a capturá-los, os primeiros Flechas
ignoravam instruções para trazer prisioneiros. O criador da força paramilitar
realça que não era por falha de compreensão: "Não sabiam ler nem escrever,
mas eram inteligentes. Fizeram testes de quociente de inteligência e obtiveram
resultados iguais aos dos europeus".
Tal como aprenderam a manusear
armas de fogo, substituindo arcos por metralhadoras, os Flechas sabiam operar
rádios oferecidos pela África do Sul, com a vantagem de comunicarem no seu
dialeto - que para ouvidos indiscretos mais não era do que uma sucessão de
estalidos de língua -, posteriormente traduzido para português. Inverso era o
talento para a fotografia, ao ponto de todas as tentativas de reproduzirem
documentos do inimigo terem falhado. "Levavam máquinas descartáveis em que
nem era possível ajustar a objetiva. Mas as fotos saíam todas mal. Não gostavam
daquilo. Talvez por algum misticismo", diz Óscar Cardoso.
FRANCHISING MULTIÉTNICO
Ainda assim, Fernando Cavaleiro Ângelo realça que os documentos apreendidos foram preciosos para apurar a organização e os meios do MPLA. "Daquilo que vi nos arquivos eram relatórios muito bons e muito consubstanciados nas provas recolhidas. Davam mais-valias enormes na previsão de como se haveriam de movimentar no futuro", diz o autor de ‘Os Flechas - A Tropa Secreta da PIDE-DGS na Guerra de Angola’.
O sucesso das operações secretas,
e a progressiva integração de elementos de outras etnias, incluindo dissidentes
de movimentos anticolonialistas, levou a que o modelo se espalhasse. "Como
se de um franchising se tratasse, outras subdelegações da PIDE-DGS em Angola
trataram de implementar a ‘marca’ Flechas, que começou a causar temor e receio
entre os insurgentes", lê-se no livro.
Óscar Cardoso acabaria por
testemunhar a expansão da sua ideia original, ao chefiar a subdelegação da
polícia política no Uíge. Antes passara por Moçambique, numa transferência
motivada por conflitos com o administrador de Serpa Pinto, sem ter oportunidade
de transpor o modelo na outra província ultramarina. O principal responsável
militar, Kaúlza de Arriaga, torceu o nariz. "Está documentado que o
general não permitia que houvesse ou que estivessem fora da alçada do
Exército", confirma Cavaleiro Ângelo.
No entanto, o criador dos Flechas
sabe que os seus homens eram reconhecidos ao mais alto nível. "Salazar
gostava muito de saber o resultado das operações. Era Barbieri Cardoso
[subdiretor-geral da PIDE] quem o informava", garante, avançando o nome de
outro admirador: o general Costa Gomes, que enquanto comandante da Região
Militar de Angola recebeu um crachá de ouro da PIDE-DGS e uma metralhadora
AK-47 apreendida ao MPLA pelos Flechas. "Como Presidente da República
promulgou a Lei 8/75, em que nos incluiu numa associação de malfeitores. Quando
recebeu aquelas honras não éramos malfeitores", ironiza o inspetor da
PIDE-DGS, que estava em Lisboa, na sede nacional, a 25 de abril de 1974 e
passou dois anos preso até sair de Portugal, trabalhando para os regimes da Rodésia
e da África do Sul.
ARMADILHA FATAL
Para a história dos Flechas ficou outro momento em que Óscar Cardoso só escapou à morte por pura sorte. Foi em 1969, quando a UNITA tinha chegado a um acordo com as Forças Armadas de Portugal para combaterem o MPLA em conjunto, e foi combinado um encontro com Jonas Savimbi e outros oficiais de topo desse movimento. O inspetor da PIDE-DGS, que estava acompanhado por um major sul-africano, desconfiou do primeiro contacto e insistiu em fazer um voo de reconhecimento de helicóptero, não chegando a pousar no local da emboscada devido à chuva intensa que começou a cair de repente. Regressou a Cangamba com a impressão de que algo estava muito errado, o que confirmou a meio da noite, quando um radiotelegrafista que ficara no local alertou para a chacina em curso. Os 14 Flechas que se tinham deixado desarmar, a contragosto, e alguns elementos da própria UNITA foram alvo de uma caça ao homem. De manhã, quando as tropas portuguesas regressaram, só cinco estavam vivos. Foi já no voo de regresso que viram os restos mortais dos outros nove, crivados de balas e cortados à catanada. Nada que tenha impedido Savimbi de se voltar a aproximar da PIDE-DGS mais tarde.
"Gosto muito de dizer que
ganhámos a guerra no Ultramar, no terreno, com os pretos, porque eles eram
portugueses", afirma Óscar Cardoso, garantindo que todas as operações dos
Flechas eram conhecidas e aprovadas pelos comandos militares. E que para os
soldados era um alívio tê-los por perto. "Sabiam que se fossem com os
Flechas não eram surpreendidos. Mas a tropa comum não tinha pedalada para
aguentar tantos quilómetros num dia."
Isto apesar de Óscar Cardoso
nunca ter chegado a concretizar uma ideia que resultaria em fotografias
insólitas, inspirando-se naquilo que Paiva Couceiro fizera décadas antes, ao
levar camelos para Angola. "Dariam mais velocidade aos bosquímanos.
Chegámos a pensar mandar gente à Argélia, onde havia quem soubesse ensinar os
animais", diz.
PÁGINAS DE GUERRA
O livro ‘Os Flechas - A Tropa
Secreta da PIDE-DGS na Guerra de Angola’, apresentado nesta quinta-feira, às
18h30, no auditório da Fnac do Colombo, em Lisboa, pelo professor universitário
José Manuel Anes, junta ao relato de Óscar Cardoso documentos oficiais encontrados
por Fernando Cavaleiro Ângelo, permitindo quantificar que, só entre 1970 e
1973, cerca de um milhar de Flechas, descritos como "soldados
irregulares", fizeram 524 missões no território de Angola, matando 325
elementos de movimentos independentistas e capturando outros 163. Mas como
aconteceu a outros africanos que lutaram do lado de Portugal na Guerra
Colonial, os Flechas sofreram muito após a independência. "Perderam todos
os meios de subsistência após a saída dos portugueses de Angola. Ficaram entregues
à sua sorte. Muitos fugiram para a África do Sul e para a Rodésia e aí foram
recrutados pelas forças armadas dos dois países", lê-se no livro.
Leonardo Ralha | Correio da Manha, 5 de Março de 2017
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