Alfredo Barroso | jornal i | opinião
É óbvio que nenhum dos dois
eurodeputados veteranos aceitará ser a encarnação do diabo. Para eles, o diabo
autêntico só pode ser encarnado pelas malvadas “esquerdas encostadas”. E daí a
grande contradição que atormenta a direita portuguesa.
Quando ligo a televisão e me
aparecem os eurodeputados mais ou menos vitalícios, Paulo Rangel e Nuno Melo,
furibundos e de dedo em riste, a amaldiçoar e a malhar nas “esquerdas
encostadas”, a insultar o cabeça-de-lista do PS, Pedro Marques, e a acusar o
primeiro-ministro, António Costa, de todas as desgraças que a imaginação deles
consente, é irresistível lembrar--me da cena em que Macbeth reflecte sobre o
sentido da existência, ao saber da morte de sua mulher, e a certo passo diz: “
Que a vida/ é uma sombra ambulante; um pobre actor/ que gesticula em cena uma
hora ou duas/ e depois não se ouve mais; é um conto/ narrado por um louco,
cheio de som e fúria,/ e que não significa nada”. Parafraseando Shakespeare, eu
diria que a política, tal como aqueles dois políticos furiosos a concebem,
“(...) is a tale/ told by an idiot, full of sound and fury,/ signifying
nothing”. Ou seja: não passa, cada um deles, de “um pobre actor/ que gesticula
em cena uma hora ou duas/ e depois não se ouve mais”. Sentido figurado: eles
continuam a falar, mas já ninguém os ouve.
Quer um quer outro destes
eurodeputados tão antigos - Paulo Rangel pelo PPD--PSD e Nuno Melo pelo CDS-PP
- são candidatos a completar uma quinzena de anos com os rabos sentados em
lugares cativos do Parlamento Europeu. E a inquisitorial fúria que os move
faz-me pensar que estão ambos mais ou menos a meio caminho entre Torquemada
(1420-1498) e Savonarola (1452-1498) em versões pós-modernas. Cada um deles é
assim uma espécie de bolchevique neoliberal e neoconservador, decidido a
erradicar da cena política caseira os terríveis pecados que cometem as
“esquerdas encostadas”, dos quais eles e Assunção Cristas tanto se queixam, e
com toda a razão, dado que a direita ainda não logrou retirar essas esquerdas
da mó de cima, isto é, da maioria parlamentar que sustenta o Governo
minoritário do PS. E é certamente por isso que Paulo Rangel, em coro com Nuno
Melo, surge todos os dias nas televisões, iracundo e de dedinho salazarento sempre
espetado, a insultar e a vergastar sem dó nem piedade o cabeça-de-lista do PS,
Pedro Marques, neófito nestas andanças por ser a primeira vez que se candidata
ao Parlamento Europeu - o que, para Rangel, deve ser um desplante de todo
inadmissível face a um eurodeputado tão antigo.
Tanto Paulo Rangel como Nuno Melo
não devem ter grandes ambições nem vontade de abandonar as suas “zonas de
conforto”, que dão por garantidas em Bruxelas, nem mesmo quando por essa Europa
fora repercute - como diria Camilo - “o eco atroador de um terramoto moral que
convulsiona Lisboa”. É certo que Rangel já se aventurou a disputar, em pura
perda, a liderança do PPD-PSD, mas certamente já terá recalcado o infeliz
episódio no gavetão do esquecimento. Quanto a Nuno Melo, não sendo tão histrião
como Rangel - será mais Bracara Augusta, mais sacristão -, nem por isso é menos
impiedoso no ódio que alimenta e demonstra por tudo quanto lhe cheire a
“esquerdas encostadas”, além de não revelar grande vontade de disputar a
liderança do CDS--PP à sua tão encantadora chefe, Assunção Cristas, que não se
cansa de lhe passar a mão p’lo pêlo, não vá o diabo tecê--las e ele lhe sair ao
caminho.
É isso mesmo, o diabo! Se Paulo
Rangel e Nuno Melo se atrevessem a ler Nietzsche, concretamente Assim Falava
Zaratustra, deparariam com uma cena - “A criança com o espelho” - que poderia
impeli-los a tomarem o lugar de Zaratustra. Vou citar para que se perceba: “‘Ó
Zaratustra - disse-me a criança -, vê-te a este espelho!’ Quando, porém, olhei
para o espelho, soltei um grito e deu-me um baque o coração, porque não era a
mim que via, mas a cara contorcida e o ricto de um diabo”.
Em todo o caso, é óbvio que
nenhum dos dois eurodeputados veteranos aceitará ser a encarnação do diabo.
Porque, para eles, o diabo autêntico só pode ser encarnado pelas malvadas
“esquerdas encostadas”. E daí a grande contradição que atormenta a direita
portuguesa: para quê ameaçar as esquerdas com o diabo, como o fez Passos
Coelho, se ao mesmo tempo se diz que as esquerdas é que são o diabo?! Ser ou
não ser o diabo, eis a questão! Coisas do demo são sempre muito complicadas!
Para Paulo Rangel e Nuno Melo -
tal como para Savonarola, há pouco mais de 500 anos, em Florença -, é preciso
acabar com o permanente carnaval financeiro em que vivem as “esquerdas
encostadas”, praticando um desperdício intolerável. Claro que isto não é
verdade, mas dá-lhes muito jeito. Porque só assim eles poderão erguer-se contra
o caos, a anarquia, a confusão, o mal-estar e a miséria que lubrificam as suas
imaginações delirantes. Só assim eles podem armar-se em detentores da verdade,
só assim poderão causticar e castigar, rindo dos maus costumes, as esquerdas
infames que se atrevem a pôr em causa esta nação e os seus princípios, a
família e os bons costumes, a raça e as suas virtudes. Cada um deles é um
“Amigo da Verdade”! Como aquele a quem Frei Justino de Padornelos respondeu, no
Eusébio Macário, numa das muitas fatias de prosa memoráveis que podemos ler nos
romances facetos de Camilo, que escreveu assim acerca do frade:
“Ele tinha as calosidades
judiciosas dos estadistas experimentados, a linha recta dos galopins veteranos;
arquivava as gazetas que o insultavam numa estante da latrina, e dizia que as
correspondências da oposição, naquele sítio, conseguiam o seu fim de utilidade
pública. De resto, uma só vez escrevera num jornal, em resposta a um político,
estes seráficos dizeres: ‘Apareça o ‘Amigo da Verdade’ e traga três focinhos,
se quiser levar um direito para esfoçar no lamaçal da calúnia. Eu não costumo aparar
a pena; mando estonar o fueiro de carvalho-cerquinho, e prefiro desancar-lhe o
palaio a ensinar-lhe a gramática, senhor ‘Amigo da Verdade’, senhor pedaço de
besta’. Saiu isto assim num periódico de Braga; parecia-se com um trecho das
Epístolas de S. Cipriano devotado ao martírio”…
Não tenho ilusões. Estou convicto
de que, durante esta última semana de campanha eleitoral para o Parlamento
Europeu (e o que será quando se tratar das eleições para o Parlamento
nacional?!), os dois eurodeputados mais ou menos vitalícios da direita vão
continuar a despejar cargas de trotil - em sentido figurado, claro! - sobre
Pedro Marques, cabeça-de-lista do PS, e sobre António Costa, primeiro-ministro.
Não tanto sobre as outras esquerdas, porque esperam que essas também ajudem à
festa. Mas a realidade estará sempre muito distante da ficção, dos discursos de
campanha e da propaganda eleitoral. Bem longe destes dois “Amigos da
Verdade”…
*Escreve sem adopção das regras do
acordo ortográfico de 1990
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