A revolta francesa nasce
sobretudo numa “pequena classe média” branca, que se viu afectada pelas
consequências sociais da globalização.
Teresa de Sousa | Público | opinião
1. É um clássico: os
franceses não fazem reformas, apenas revoluções. É também um exagero, que serve
apenas para descrever a particular identidade de um país com uma História que
olha como gloriosa, que se vê, em momentos de euforia, como sendo ainda o centro
do universo. Que alterna cada vez mais com uma profunda “malaise”, sempre
pronta a explodir numa fúria incontida que normalmente derruba governos, desfaz
reformas, mas raramente despede o ocupante do Palácio do Eliseu. É esta a
história da V República, moldada pela personalidade do General De Gaulle e pela
sua visão do poder – “La France c’est moi” -, onde a figura do Presidente da
República Francesa funciona com o centro da vida política da França em redor do
qual se organiza o poder, reservando ao primeiro-ministro o custo e a
impopularidade da governação, um lugar secundário que pode ser sacrificado em
caso de crise económica e social. Jaques Chirac, apesar do seu estilo caloroso
e afável, ainda cumpriu este figurino. Alain Juppé, o seu primeiro-ministro,
foi sacrificado quando a reforma das pensões levou milhões de franceses às
ruas. Lionel Jospin, primeiro-ministro socialista que governou com Chirac em
coabitação, tentou enfrentá-lo sem grande resultado. Quando resolveu desafiá-lo
nas presidenciais de 2002, sofreu a tremenda humilhação de não passar à segunda
volta, abrindo espaço a um confronto dramático entre o Presidente e o líder da
Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen. O resultado mostrou ainda uma França firme
perante o desafio do nacionalismo e do extremismo. A disciplina republicana
funcionou em pleno dando a Chirac uma vitória de 82% dos votos e anulando
qualquer ambiguidade perante a ascensão da Frente Nacional.
2. Nicolas Sarkozy quis
quebrar o molde, com uma presidência combativa e irreverente e um estilo que se
afastava da figura que tinha o dever de encarnar a grandeza da França. Foi um
Presidente de um só mandato. Acabou derrotado por um candidato socialista sem
brilho e sem carisma, que chegou ao Eliseu com o propósito expresso de ser um
“Presidente normal”. Mudou o estilo, mudaram os rituais, não mudou a sorte.
François Hollande cumpriu apenas um mandato, com alguns actos simbólicos para
agradar à esquerda mas de muito pouca substância. Não conseguiu reequilibrar a
aliança franco-alemã, que está na base da integração europeia. Não conseguiu
reformar. O seu “ministro-prodígio” haveria de impedir a sua recandidatura,
fundar um partido a partir do zero, avançar para o Eliseu prometendo um
“centrismo radical”, sem qualquer cedência à extrema-direita de Marine Le Pen
ou à extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon, destruindo pelo caminho o Partido
Socialista e abanando fortemente a direita de Os Republicanos. Tudo em menos de
um ano. Macron foi eleito numa onda de euforia. Prometeu uma revolução em
França e uma refundação da Europa. Animou os governos europeístas da União
Europeia. Berlim saudou-o como a oportunidade de ter finalmente o parceiro que
tanto desejava: reformista, aberto e europeu. A boa e velha Europa, amarfanhada
pela ascensão dos populismos e dos nacionalismos, dividida pela crise do euro e
sobre o seu destino, rejubilou. Emmanuel Macron, 40 anos, intelectual
brilhante, Júpiter de regresso ao Eliseu para restaurar o prestígio da França,
acaba de descer à Terra. A esperança durou um ano. Não há a menor razão para
regozijo. Quando Paris se incendeia, a Europa sofre um abalo profundo. Um
desastre político e social em França seria, porventura, um golpe mortal.
3. O alcance europeu da
crise francesa é evidente. Macron é o inimigo jurado dos movimentos e dos
governos populistas, de Viktor Orbán a Matteo Salvini. Aliás, o próprio nunca
enjeitou esse papel. “Macron deixou de ser meu adversário. Deixou de ser um problema
meu. É um problema para os franceses”, disse Salvini. A popularidade do líder
da Liga e vice-primeiro-ministro de Roma está em alta. A do Presidente francês
em queda. Há um ano, a sua juventude e o seu dinamismo eram saudados por banhos
de multidão na Europa. Trump é, ele próprio, a voz dos populistas, incluindo de
muitos “coletes amarelos”. Disse ele: “Os contribuintes americanos [ao
contrário dos franceses] não têm de pagar para limpar a poluição dos outros.”
Antes tinha tweetado que o seu “amigo Macron” já tinha percebido “as razões
pelas quais ele se tinha oposto ao Acordo de Paris [sobre o clima].” De Moscovo
e de Ancara, suprema ironia, chegam os apelos para que a França “se abstenha de
qualquer tipo de recurso excessivo à força”.
Sarkozy prometeu melhorar o nível
de vida dos “franceses que trabalham”. Hollande prometeu a penalização dos
ricos para uma melhor distribuição da riqueza. O imposto sobre as fortunas que
decretou não enchia os cofres do Estado, mas tinha um efeito psicológico.
Macron aboliu-o, justamente porque era apenas simbólico e afastava o
investimento. Não basta dizer que o Presidente francês é arrogante, distante
das pessoas, indiferente à realidade em que vivem. A arrogância pode alimentar
momentaneamente a cólera e unificar os protestos. Mas há uma diferença: os
manifestantes exigem a sua demissão. No primeiro ano de mandato, Macron fez
aprovar todas as reformas que prometeu, depois de as negociar com patrões e com
sindicatos. A sua ideia era libertar a economia e a sociedade francesa de
espartilhos que cerceavam o crescimento e mantinham o desemprego elevado. A
contestação nas ruas foi menor do que a que enfrentaram alguns dos seus
antecessores quando quiseram mudar alguma coisa. Mas as percepções passaram a
contar cada vez mais. De repente, o que muitos franceses viram foi um
Presidente que “governa para os ricos”. As redes sociais desempenham o seu
papel: dispensam a comunicação social, os partidos políticos, os sindicatos, o
poder local, as organizações sociais. “Hoje é a palavra directa que se impõe
como forma democrática; mas é, ao mesmo tempo, uma expressão confusa, que
dificilmente se unifica e que é extraordinariamente vulnerável às teorias do complot e
às fake news”, diz Rosanvallon. Um vídeo de disseminação veloz no Facebook
diz que o Pacto Global para as Migrações, que a França se prepara para
subscrever, visa “abolir as fronteiras para os imigrantes e promover a mistura
racial em proveito de um supergoverno mundial”. “Macron prepara-se para vender
a França à ONU e para aceitar a vinda de 480 milhões de imigrantes para a
Europa.” Outros falam de um “governo paralelo” que ninguém vê, ou reivindicam a
VI República (uma ideia de Mélenchon), uma democracia directa (como o 5
Estrelas de Di Maio). Outros ainda querem “uma mão de ferro para governar a
França”. De novo Rosanvallon: “O termo ‘desigualdade’ não chega para traduzir
este enorme passivo social e moral. (…) Esta revolta obriga-nos a olhar para a
sociedade com um novo olhar. Precisamos de indicadores de dignidade e de
desprezo, de guetização e de afastamento social, de apreensão dos medos e dos
fantasmas, para apreender a realidade.” A heterogeneidade é tanto sociológica
como ideológica. Há os activistas e os que os seguem. Mas há também “a câmara
de eco e uma câmara de escuta”, muito mais ampla – a que permite que 70% dos
franceses apoiem, em maior ou menor grau, esta revolta. O que vem a seguir
ninguém sabe.
5. Entretanto, a elite
europeia parece anestesiada. Em Bruxelas, os eurocratas preocupam-se com uma
situação de excepção que leve Paris a não cumprir as regras do Pacto de
Estabilidade. Um amigo contou-me que participou há três dias numa conferência
em Bruxelas sobre a “autonomia estratégica” da Europa. O que se passa em Paris
não constou de nenhuma das intervenções.
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