Jamil Chade, em Genebra | swissinfo.ch
Jean Ziegler é uma ave rara na cena política suíça, encarnando há quase meio século a figura do intelectual público de projecção global. Seu activismo político e actuação internacional, como relator especial da ONU, rendeu-lhe uma extensa gama de inimigos, não só entre os bancos, empresários e lideranças conservadoras, mas até mesmo no campo mais progressista. Mas Ziegler continua um observador activo, e nota que os cidadãos das grandes democracias vivem um “desespero silencioso e secreto”.
Jean Ziegler é uma ave rara na cena política suíça, encarnando há quase meio século a figura do intelectual público de projecção global. Seu activismo político e actuação internacional, como relator especial da ONU, rendeu-lhe uma extensa gama de inimigos, não só entre os bancos, empresários e lideranças conservadoras, mas até mesmo no campo mais progressista. Mas Ziegler continua um observador activo, e nota que os cidadãos das grandes democracias vivem um “desespero silencioso e secreto”.
Ele, porém, não perde a esperança
e insiste que a resposta à actual crise está no fortalecimento de uma sociedade
civil planetária. Para Ziegler, os acontecimentos nos últimos anos e a
impotência do sistema político em dar respostas mostram que a “democracia
representativa está esgotada”.
swissinfo.ch: Vemos em diferentes
partes do mundo uma reacção popular contra partidos tradicionais e contra
a política. Também vemos a vitória de políticos como Orban, Trump, Salvini e
Bolsonaro. Por qual motivo o sr. acredita que estamos vendo essa onda?
Jean Ziegler: O mundo se tornou
incompreensível para o cidadão, que não mais consegue ler o mundo. As 500
empresas multinacionais privadas têm 52% do PIB do mundo (todos os sectores
reunidos, bancos, serviços e empresas). Elas monopolizam um poder
económico-financeiro, ideológico e político que jamais um imperador ou papa
teve na história da humanidade. Eles escapam de todos os controles de estado,
parlamentares, sindicais ou qualquer outro controle social. Eles tem uma
estratégia só: maximização dos lucros, no tempo mais curto e não importa a qual
preço humano.
Elas são responsáveis, sem
dúvida, por um processo de invenção científica, electrónica e tecnológica sem
precedentes, e de fato extraordinário. Até o fim da URSS, um terço dos
habitantes do mundo vivia sob algum tipo de regime comunista. Havia a
bipolaridade da sociedade dos Estados. O capitalismo estava regionalmente
limitado.
A partir de 1991, o capitalismo
se espalhou como fogo de palha por todo o planeta e instaurou uma só instância
reguladora: a mão invisível do mercado. Isso também produziu uma ideologia que
totalmente alienou a consciência política dos homens. Há, hoje, uma ideologia
que dá legitimidade a uma só instância de regulação: o neoliberalismo. Esse
sistema sustenta que não são os homens, mas os mercados que fazem a história e
que as forças do mercado obedecem as leis da natureza.
As forças do mercado trabalham com as forças da natureza e o homem é dito que não é mais o sujeito da história. No neoliberalismo, não é mais o homem que é o sujeito da história. Cabe ao homem se adaptar a esse mundo.
De fato, entre o fim da URSS no
começo dos anos 1990, e o ano de 2000, o PIB mundial dobrou. O volume do
comércio se multiplicou por três e o consumo de energia dobrou em quatro anos.
Isso é um dinamismo formidável. Mas isso tudo ocorreu de uma forma concentrada
e nas mãos de um número reduzido de pessoas.
Se considerarmos a fortuna
pessoal dos 36 indivíduos mais ricos do mundo, segundo a OxfamLink externo,
ela é igual à renda dos 4,7 biliões de pessoas mais pobres da humanidade. A
cada cinco segundos, uma criança com menos de dez anos morre de fome ou de suas
consequências imediatas.
E no mesmo relatório sobre a
insegurança alimentar no mundo da FAOLink
externo (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura)
diz: no actual estado de seu desenvolvimento, a agricultura mundial poderia
alimentar normalmente 12 biliões de seres humanos. Ou seja, quase o dobro da
humanidade - somos 7,7 biliões de pessoas hoje. Não há fatalidade. A fome é
feita pelas mãos do homem e pode ser eliminada pelos homens. Uma criança que
morre de fome é assassinada.
Isso é sustentável?
De forma alguma. A desigualdade
não é só moralmente vergonhosa. Mas ela também faz com que o estado social seja
esvaziado. Os mais ricos não pagam impostos como deveriam. Os paraísos fiscais,
o sigilo bancário suíço - que continua - isso tudo ainda permite uma enorme
opacidade. Empresas são contratadas para criar estruturas que impedem que os
reais donos do dinheiro sejam encontrados em sociedades offshore. Os documentos
revelados pelos Panama
Papers mostram muito bem isso. Portanto, podemos dizer que as maiores
fortunas do mundo e as maiores multinacionais pagam os impostos que querem.
E qual a consequência disso?
O fato que os mais ricos pilham o
país e não pagam impostos gera duas situações: esvaziam a capacidade social de
resposta dos governos e impedem contribuições obrigatórias dos países mais
ricos às organização especializadas da ONU que lutam contra a miséria no mundo.
Portanto, esse sistema mata.
No fundo, essa ditadura do
mercado faz com que os cidadãos entendam que não é o governo pelo qual eu votei
que tem o poder de definir o destino. Isso cria uma insegurança completa e a
desigualdade não é controlável. Se não bastasse, o cidadão é informado que seu
emprego passa por um período profundo de flexibilização. A França, a segunda
maior economia da Europa, tem 9 milhões de desempregados e três quartos dos
empregos no sector privado são contratos de duração limitada (CDD, contrato de
duração determinada). Outros milhões vivem de forma precária, como a maioria
dos aposentados.
Quem são, portanto, os actores
que influenciam o destino económico de um país?
Vou dar um exemplo. As sociedades
multinacionais privadas são as verdadeiras donas do mundo. Nos EUA, sob a
administração Obama, foi criado uma lei que proibia o acesso ao mercado
americano de minerais que tenham sido extraídos por crianças em suas minas,
principalmente do Congo. O cobalto, por exemplo, foi um deles.
Essa lei gerou a mobilização de
Glencore, RioTinto e tantas outras, denunciando que era inaceitável, pois era
contra a liberdade dos mercados. Uma das primeiras medidas que Donald Trump
tomou ao assumir o governo, em Janeiro de 2017, foi a de acabar com essa lei.
Como este, existem muitos outros exemplos no meu livro.
Em quais sectores?
A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi à televisão e declarou que iria propor que a especulação nas bolsas e no mercado financeiro fosse proibida, principalmente sobre o arroz, milho e trigo e outros produtos agrícolas de base. Isso seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres.
A agricultura é outro. Em 2011, três semanas antes da reunião do G7 em Cannes, o então presidente da França, Nicolas Sarkozy, foi à televisão e declarou que iria propor que a especulação nas bolsas e no mercado financeiro fosse proibida, principalmente sobre o arroz, milho e trigo e outros produtos agrícolas de base. Isso seria uma forma de lutar contra o aumento de preços dos alimentos básicos, especialmente nos países mais pobres.
Faltando poucos dias para o G7, a
França retirou sua proposta, depois de ter sido pressionada pelas grandes
empresas do sector, como Unilever, Nestlé e outras. Essa mobilização impediu
uma acção do presidente da França.
Portanto, voltando ao ponto
inicial: o capitalismo é o modo de produção que mais mostrou vitalidade nos
avanços tecnológicos e de inovação e tem uma produtividade muito superior a
qualquer outro do passado, incluindo o da escravidão. Mas, ao mesmo tempo, o
modelo capitalista escapa de todo o controle político, sindical ou da ONU. Eu
insisto: ele funciona sob apenas um princípio, que é o da maximização dos
lucros, no tempo mais curto possível e a qualquer preço.
E o que isso significa para uma
democracia?
É um sistema que priva o cidadão,
mesmo numa democracia, de todo tipo de resposta efectiva à precariedade, à
desigualdade que destrói o estado social. E é nesse contexto que se cria uma
espécie de desespero silencioso e secreto entre os cidadãos. E, como sempre
ocorreu na história e como ocorreu nos anos 30 na Alemanha, é neste momento que
vêm os grupos de extrema-direita com sua estratégia de criar um bode
expiatório.
De que forma?
O discurso é simples. Eles chegam a declaram ao cidadão: sim, sua situação é insuportável. Você tem razão. Não falam como outros que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, eles são os imigrantes e os refugiados.
O discurso é simples. Eles chegam a declaram ao cidadão: sim, sua situação é insuportável. Você tem razão. Não falam como outros que tentam dar esperanças ou dizer que as coisas vão melhorar. Mas, num segundo momento, o que fazem? Apresentam um bode expiatório para essa crise. Na Europa, eles são os imigrantes e os refugiados.
Justamente, em comum, esses
movimentos denunciam a entrada de estrangeiros em seus países. Como o senhor
avalia?
São governos europeus que cometem
crimes contra a humanidade, ao recusar de examinar os pedidos de asilo dos
refugiados. O direito a pedir asilo é uma convenção internacional de 1951,
ratificada por todos os países, e os governos são obrigados a receber os
pedidos.
Os eslovacos, por exemplo,
aceitaram apenas 285 refugiados, sob a condição de que sejam cristãos. Em
outros locais, como na Hungria, crianças estão na prisão. Mas mesmo assim esses
governos continuam sendo sancionados pela UE, que continua a lhes enviar
dinheiro. Só Viktor Orban (primeiro-ministro húngaro) recebeu 18 biliões de euros
no ano passado em fundos de solidariedade da Europa. As sanções, portanto, são
inexistentes.
E qual tem sido o resultado dessa
estratégia desses grupos populistas na Europa?
Eles mudam de paradigma e ganham força. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Hoje, eles tem o mesmo número de representantes no Parlamento que o tradicional SPD, o partido social democrata alemão que já nos deu políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu com Matteo Salvini na Itália, Viktor Orban na Hungria, e ainda na Holanda, na Áustria. A estratégia do bode expiatório é uma estratégia que tem funcionado. Além disso, a consciência colectiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.
Eles mudam de paradigma e ganham força. Basta ver os resultados do partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Hoje, eles tem o mesmo número de representantes no Parlamento que o tradicional SPD, o partido social democrata alemão que já nos deu políticos como Willy Brandt. O mesmo ocorreu com Matteo Salvini na Itália, Viktor Orban na Hungria, e ainda na Holanda, na Áustria. A estratégia do bode expiatório é uma estratégia que tem funcionado. Além disso, a consciência colectiva está sendo cimentada por uma ideologia neoliberal de que o homem não é mais o sujeito da história e que apenas pode se adaptar à situação e às forças do mercado, que obedecem às leis naturais.
Mas, voltando ao ponto da representatividade, tal cenário não ameaça minar a própria democracia?
Jean Jacques Rousseau publicou seu livro "O Contrato Social" em 1762, que foi a Bíblia para a revolução francesa. Ele descreveu a soberania popular e o fato de dar a voz a alguém para me representar. A delegação é um pilar do contrato social. Mas esse contrato social, que é a fundação da República, está esgotado. Essa democracia representativa está esgotada.
O povo não acredita mais nela. O
povo vê que, ao votar em um deputado, não é ele que toma decisões, mas a
ditadura mundial das oligarquias do capital financeiro globalizado. Portanto,
há uma percepção de que ela não serve para nada. Não é ele quem vai garantir
meu trabalho.
Ao mesmo tempo, esse povo não
está disposto a abrir mão de seu poder e nem de sua capacidade de intervenção.
No caso dos Coletes Amarelos, na França, um dos pontos principais é o apelo por
um referendo popular como mecanismo. O que eles estão dizendo: o Parlamento faz
o que quer. Queremos ter o direito de propor leis, de votar por elas. Hoje, a
democracia representativa não funciona, num período de total alienação.
Quais são as respostas possíveis?
Retirar essa placa de cimento das
consciências, que foi imposta. Liberar a consciência dos homens que é, por
natureza, uma consciência de identidade. Se uma pessoa, seja de qual classe
social ele for ou de qualquer religião, vir diante dele ou dela uma criança
martirizada, algo de si afunda. Ele se reconhece imediatamente nela. Somos a
única criatura na terra com essa consciência de identidade. E é por isso que
milhões de jovens na Europa e na América do Norte se mobilizam em imensos
cortejos, todas as semanas, pela sobrevivência do planeta e contra o
capitalismo. O que eles estão dizendo aos seus governos? Que assim não podemos
continuar. Façam algo contra essa ordem canibal do mundo.
A questão climática pode ser
decisiva nesse contexto para modificar a forma de pensamento?
Pelo Acordo de Paris, cada um dos
190 estados que assinaram assumiu obrigações precisas para limitar as emissões
de CO2 na atmosfera. 85% do CO2 emitido vem de energias fosseis. O acordo pede
que as cinco maiores empresas de petróleo reduzam 50% de suas emissões até 2030
e de dar parte dos lucros ao desenvolvimento de energia alternativas, como
solar, eólia e outras.
Mas o que é que ocorreu desde
2015? As cinco grandes empresas de petróleo do mundo aumentaram, em média, sua
produção em 18%. E financiaram energias alternativas somente em 5%. Os jovens
dizem: isso não funcionará.
Então, existe esperança?
Por anos, fui membro do Conselho Executivo da Internacional Socialista. Seu presidente, Willy Brandt, dizia a nós jovens, como eu, Brizola e Jospin: não se preocupem. A cada votação, vamos avançar aos poucos e as pessoas vão se dar conta. Lei por lei, vamos instaurar uma democracia social, igualdade de oportunidades e justiça social. Mas isso não ocorreu. No lugar do progresso da democracia social, o que vimos foi a instauração da ditadura mundial de oligarquias do capital financeiro globalizado que dá suas ordens, mesmo aos estados mais poderosos.
Desde a queda do Muro de Berlim
em 1989, a
liberalização do mercado e a perda do poder normativo dos estados avançou mais
que nunca e, ao mesmo tempo, a desigualdade social aumentou. Mas Brandt também
nos dizia: quando vocês falarem publicamente, é necessário dar esperança. O
discurso deve ser analiticamente exacto. Mas ele precisa ser concluído com um
afirmação de esperança. Caso contrário, é melhor ficar em casa.
Mas onde está essa esperança?
É a sociedade civil planetária. É
a misteriosa fraternidade da noite, a miríade de movimentos sociais -
Greenpeace, Anistia Internacional, movimento anti-racista, de luta pela terra -
que lutam contra a ordem canibal do mundo, cada qual em seu domínio. São
entidades que não obedecem a um comité central ou a uma linha de partido, e que
funcionam por um só princípio: o imperativo categórico.
Emmanuel Kant dizia: “a
desumanidade infligida a um outro humano destrói a humanidade em mim”. Eu sou o
outro e outro sou eu. Essa consciência, em termos políticos, cria uma prática
de solidariedade entre os indivíduos e reciprocidade entre povos. Mas essa
sociedade é invisível. Não tem uma sede. Ela é visível cinco dias por ano, no
Fórum Social Mundial, organizado pelos brasileiros em Porto Alegre.
O escritor francês George
Bernanos escreveu: “Deus não tem outra mão que seja a nossa”. Ou somos nós que
mudaremos essa ordem canibal do mundo, ou ninguém o fará.
Foto: Em frente à sede da ONU em
Genebra, preparando-se para uma conferência de imprensa em 2003. Ziegler teve
diversos postos na organização, onde continua ativo até hoje, aos 85 anos de
idade / Keystone / Martial Trezzini
Fonte: swissinfo.ch
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