segunda-feira, 17 de junho de 2019

China | Macau: A “grande farsa” da eleição do Colégio Eleitoral do CE


Uma “farsa”, uma “piada”, “um espectáculo orquestrado” executado por “marionetas”, é assim que a eleição de ontem de 344 dos 400 membros do Colégio Eleitoral que vai eleger o Chefe do Executivo foi descrita, tanto pelo deputado e vice-presidente da Associação Novo Macau, Sulu Sou, como por António Katchi, professor do IPM.

Ontem, na Areia Preta, à porta da Escola Luso-Chinesa Técnico-Profissional, que serviu de assembleia de voto para os eleitores dos sub-sectores cultural e do trabalho, membros da Associação Novo Macau repetiram ao longo do dia palavras de ordem como: “Sou cidadão de Macau, quero o sufrágio universal, quero escolher o meu Governo, quero votar para o Chefe do Executivo”. Os eleitores, ora chegavam em camionetas, ou em grupos mais pequenos, alguns aceitavam o folheto que lhes era distribuído. Outros contornavam o grupo de activistas, fugindo como o diabo da cruz.

Sobre o apelo ao voto lançado na noite anterior pela presidente da Comissão de Assuntos Eleitorais do Chefe do Executivo (CAECE), a juíza Song Man Lei, o mais jovem deputado à Assembleia Legislativa riu-se, e disse: “só pode ser uma piada”. “Ontem, a presidente Song apelou aos eleitores para votarem activamente, isso é outra piada, quando a maioria dos eleitores não tem o direito de vir aqui participar na eleição. Também nós, da Associação Novo Macau, gostávamos de responder ao apelo da presidente da comissão, mas não temos direito a voto, tal como os cidadãos comuns, até a polícia, os jornalistas, não têm direito a voto. Essa é a razão principal porque estamos aqui”, afirmou ao PONTO FINAL Sulu Sou. Num comunicado, a Novo Macau descrevia o processo como “um espectáculo orquestrado” executado por “marionetas”.

A meio da manhã, os cerca de uma dezena de activistas haviam sido convidados pelas autoridades policiais a deslocaram-se para mais longe da assembleia de voto. O deputado desvalorizou a acção, considerando-a, perfeitamente “previsível”, já que a polícia tentou deslocá-los unicamente para tentar satisfazer os queixosos, “eleitores incomodados”. “Alguns eleitores de algumas associações querem proteger aquilo que acham que é o seu direito especial, e as associações são uma classe especial em Macau, pelo que a sua oposição às nossas reivindicações é muito normal”, afirmou Sulu Sou. Segundo o deputado, a Polícia explicou que alguns eleitores e cidadãos “queixaram-se do barulho e disseram que o grupo estava a criar obstáculos na rua, afectando o processo de votação”. Mas, acrescentou, “mantivemos contacto com a Polícia, explicámos que estamos aqui numa situação legal, estamos a manter um protesto autorizado e que os direitos não podem ser prejudicados”, afirmou. O grupo acabou por se manter no mesmo lugar. No entanto, por volta das 14h, após um aviso formal da Polícia, os manifestantes acabariam por se deslocar alguns metros para além de onde estavam, indicou mais tarde Sulu Sou ao PONTO FINAL.

Ontem votaram cerca de 5735 eleitores, provenientes de 567 associações, o maior de dois “pequenos círculos” que escolhem o Chefe do Executivo, para eleger 344 dos 400 membros do Colégio Eleitoral. Em Agosto vota o “círculo mais pequeno”, de 400 membros, descreveu Sulu Sou. Para o deputado é evidente que as queixas dos “eleitores” não são mais do que evidências de embaraço. “Penso que a polícia ou a comissão de assuntos eleitorais, ou o mesmo o Governo ou as associações não querem o nosso protesto perto da assembleia de voto, acho que eles sentem-se embaraçados, porque estamos contra a eleição com base num pequeno circulo eleitoral, estamos a indicar-lhes que eles não nos representam”.

O “grande teatro”

Enquanto de um lado da rua se votava e se manifestava, do outro, a vida seguia normal para os residentes da Areia Preta.

Mas, afinal, será que as pessoas em Macau percebem a importância do sufrágio universal, perguntámos. Para António Katchi, professor do Instituto Politécnico de Macau (IPM), que se juntou aos manifestantes depois do meio-dia, é evidente que sim, até porque “as pessoas, pela experiência que têm na eleição da Assembleia Legislativa de 14 deputados por sufrágio directo, sabem a diferença entre poder participar directamente na escolha de determinados titulares de cargos políticos daquelas situações em que são de facto excluídas e substituídas por uma pequena minoria”, afirmou. “Essa minoria, o que faz é participar num grande teatro, numa grande farsa, fingindo que escolhe, mas na verdade vai simplesmente legitimar quem for previamente escolhido pelo Governo Central”.

Ora, prosseguiu o professor, “estas 5700 pessoas que estão aqui a participar na eleição dos 400 membros da comissão eleitoral, elas próprias estão a participar nessa farsa. Digamos que elas fazem parte da primeira fase da farsa, e depois os 400 membros da comissão eleitoral vão desempenhar o seu papel na segunda fase desta farsa”, acrescentou o professor.

Para Sulu Sou, a aparente indiferença e apatia das pessoas em Macau na promoção do sufrágio eleitoral tem a ver com uma cultura enraizada de obediência aos superiores. “Tem a ver com a cultura, somos apenas o mexilhão, cidadãos comuns que apenas esperam ordens do Governo ou do superior, é parte da cultura, não é possível mudar no curto termo”, afirmou o deputado. Por outro lado, há que considerar o papel adquirido pelas associações. “As associações existem e construíram o seu poder e dos seus representantes a partir dos anos 1960, nessa altura a sociedade era muito pobre e as associações é que ajudavam a melhorar a vida dessas pessoas”, acrescentou. Outra questão é “o sistema educacional, na escola, na universidade e também através dos meios de comunicação social, o Governo de Macau controla muito seriamente os conteúdos escolares, as pessoas não alcançam informação para o seu desenvolvimento político. Isso fez a cultura ser mais forte”. Há, também, a pressão social. “A sociedade é muito pequena, conhecemo-nos todos, e sabemos ou temos medo que os nosso actos possam afectar a nossa vida”, acrescentou.

“Uma pessoa, um voto”

António Katchi, que se descreve como um “espectador que também participa nas manifestações quando se identifica com as causas”, lembra que nos anos 2000 quem erguia a bandeira do sufrágio universal nas manifestações do 1 de Maio eram as associações operárias, nomeadamente da construção civil. “Denunciavam o conluio entre Governo e empresários, e exigiam claramente ‘uma pessoa, um voto’”, afirmou. Entretanto, essas pessoas parece que se tornaram invisíveis, o que tem uma explicação: os cheques pecuniários, complementos salariais, subsídios, introduzidos pelo Governo a partir da manifestação de 2007, que “contribuíram para melhorar as condições de vida das franjas mais pobres da população”, referiu. Por outro lado, a antiga classe operária envelheceu, reformou-se, na construção civil foram substituídos por trabalhadores não-residentes, “e esses não se sentem tão à vontade para virem participar em manifestações”. No entanto, os trabalhadores da indústria do jogo, organizados “em associações muito combativas”, podem vir a desempenhar o papel que já teve a construção civil, referiu o académico.

Katchi admitiu, também, que essa apatia se pode dever ao sentimento de impotência de Macau perante “o Governo Central todo poderoso”, sobretudo olhando para Hong Kong onde o movimento civil Occupy Central não conseguiu “um genuíno sufrágio universal”.

Em todo o caso, se houvesse em Macau uma consulta pública ou um referendo sobre a eleição do Chefe do Executivo e a eleição da totalidade dos deputados à Assembleia Legislativa por sufrágio universal directo, Katchi está convencido que uma maioria votaria a favor.

Sulu Sou faz uma leitura mais cautelosa. “Tenho ouvido muitas opiniões sobre o sufrágio universal, penso que a maioria receia a mudança, estão preocupados que isso afecte a estabilidade social e o desenvolvimento económico. Ou seja, não discordam, mas ficam preocupados. As pessoas têm medo de mudar”. Por isso, no entender de Sulu Sou, é preciso continuar a “educar”.

Cláudia Aranda | Ponto Final | Foto: Eduardo Martins

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