Uma “farsa”, uma “piada”, “um
espectáculo orquestrado” executado por “marionetas”, é assim que a eleição de
ontem de 344 dos 400 membros do Colégio Eleitoral que vai eleger o Chefe do
Executivo foi descrita, tanto pelo deputado e vice-presidente da Associação
Novo Macau, Sulu Sou, como por António Katchi, professor do IPM.
Ontem, na Areia Preta, à porta da
Escola Luso-Chinesa Técnico-Profissional, que serviu de assembleia de voto para
os eleitores dos sub-sectores cultural e do trabalho, membros da Associação
Novo Macau repetiram ao longo do dia palavras de ordem como: “Sou cidadão de
Macau, quero o sufrágio universal, quero escolher o meu Governo, quero votar
para o Chefe do Executivo”. Os eleitores, ora chegavam em camionetas, ou em
grupos mais pequenos, alguns aceitavam o folheto que lhes era distribuído.
Outros contornavam o grupo de activistas, fugindo como o diabo da cruz.
Sobre o apelo ao voto lançado na
noite anterior pela presidente da Comissão de Assuntos Eleitorais do Chefe do
Executivo (CAECE), a juíza Song Man Lei, o mais jovem deputado à Assembleia
Legislativa riu-se, e disse: “só pode ser uma piada”. “Ontem, a presidente Song
apelou aos eleitores para votarem activamente, isso é outra piada, quando a
maioria dos eleitores não tem o direito de vir aqui participar na eleição.
Também nós, da Associação Novo Macau, gostávamos de responder ao apelo da
presidente da comissão, mas não temos direito a voto, tal como os cidadãos
comuns, até a polícia, os jornalistas, não têm direito a voto. Essa é a razão
principal porque estamos aqui”, afirmou ao PONTO FINAL Sulu Sou. Num
comunicado, a Novo Macau descrevia o processo como “um espectáculo orquestrado”
executado por “marionetas”.
Ontem votaram cerca de 5735
eleitores, provenientes de 567 associações, o maior de dois “pequenos círculos”
que escolhem o Chefe do Executivo, para eleger 344 dos 400 membros do
Colégio Eleitoral. Em Agosto vota o “círculo mais pequeno”, de 400 membros,
descreveu Sulu Sou. Para o deputado é evidente que as queixas dos “eleitores”
não são mais do que evidências de embaraço. “Penso que a polícia ou a comissão
de assuntos eleitorais, ou o mesmo o Governo ou as associações não querem o
nosso protesto perto da assembleia de voto, acho que eles sentem-se
embaraçados, porque estamos contra a eleição com base num pequeno circulo
eleitoral, estamos a indicar-lhes que eles não nos representam”.
O “grande teatro”
Enquanto de um lado da rua se
votava e se manifestava, do outro, a vida seguia normal para os residentes da
Areia Preta.
Mas, afinal, será que as pessoas
em Macau percebem a importância do sufrágio universal, perguntámos. Para
António Katchi, professor do Instituto Politécnico de Macau (IPM), que se
juntou aos manifestantes depois do meio-dia, é evidente que sim, até porque “as
pessoas, pela experiência que têm na eleição da Assembleia Legislativa de 14
deputados por sufrágio directo, sabem a diferença entre poder participar directamente
na escolha de determinados titulares de cargos políticos daquelas situações em
que são de facto excluídas e substituídas por uma pequena minoria”, afirmou.
“Essa minoria, o que faz é participar num grande teatro, numa grande farsa,
fingindo que escolhe, mas na verdade vai simplesmente legitimar quem for
previamente escolhido pelo Governo Central”.
Ora, prosseguiu o professor,
“estas 5700 pessoas que estão aqui a participar na eleição dos 400 membros da
comissão eleitoral, elas próprias estão a participar nessa farsa. Digamos que
elas fazem parte da primeira fase da farsa, e depois os 400 membros da comissão
eleitoral vão desempenhar o seu papel na segunda fase desta farsa”, acrescentou
o professor.
Para Sulu Sou, a aparente
indiferença e apatia das pessoas em Macau na promoção do sufrágio eleitoral tem
a ver com uma cultura enraizada de obediência aos superiores. “Tem a ver com a
cultura, somos apenas o mexilhão, cidadãos comuns que apenas esperam ordens do
Governo ou do superior, é parte da cultura, não é possível mudar no curto
termo”, afirmou o deputado. Por outro lado, há que considerar o papel adquirido
pelas associações. “As associações existem e construíram o seu poder e dos seus
representantes a partir dos anos 1960, nessa altura a sociedade era muito pobre
e as associações é que ajudavam a melhorar a vida dessas pessoas”, acrescentou.
Outra questão é “o sistema educacional, na escola, na universidade e também
através dos meios de comunicação social, o Governo de Macau controla muito seriamente
os conteúdos escolares, as pessoas não alcançam informação para o seu
desenvolvimento político. Isso fez a cultura ser mais forte”. Há, também, a
pressão social. “A sociedade é muito pequena, conhecemo-nos todos, e sabemos ou
temos medo que os nosso actos possam afectar a nossa vida”, acrescentou.
“Uma pessoa, um voto”
António Katchi, que se
descreve como um “espectador que também participa nas manifestações quando se
identifica com as causas”, lembra que nos anos 2000 quem erguia a
bandeira do sufrágio universal nas manifestações do 1 de Maio eram as
associações operárias, nomeadamente da construção civil. “Denunciavam o conluio
entre Governo e empresários, e exigiam claramente ‘uma pessoa, um voto’”,
afirmou. Entretanto, essas pessoas parece que se tornaram invisíveis, o que tem
uma explicação: os cheques pecuniários, complementos salariais, subsídios,
introduzidos pelo Governo a partir da manifestação de 2007, que “contribuíram
para melhorar as condições de vida das franjas mais pobres da população”, referiu.
Por outro lado, a antiga classe operária envelheceu, reformou-se, na construção
civil foram substituídos por trabalhadores não-residentes, “e esses não se
sentem tão à vontade para virem participar em manifestações”. No entanto, os
trabalhadores da indústria do jogo, organizados “em associações muito
combativas”, podem vir a desempenhar o papel que já teve a construção civil,
referiu o académico.
Katchi admitiu, também, que essa
apatia se pode dever ao sentimento de impotência de Macau perante “o Governo
Central todo poderoso”, sobretudo olhando para Hong Kong onde o movimento civil
Occupy Central não conseguiu “um genuíno sufrágio universal”.
Em todo o caso, se houvesse em
Macau uma consulta pública ou um referendo sobre a eleição do Chefe do
Executivo e a eleição da totalidade dos deputados à Assembleia Legislativa por
sufrágio universal directo, Katchi está convencido que uma maioria
votaria a favor.
Sulu Sou faz uma leitura mais
cautelosa. “Tenho ouvido muitas opiniões sobre o sufrágio universal, penso que
a maioria receia a mudança, estão preocupados que isso afecte a estabilidade
social e o desenvolvimento económico. Ou seja, não discordam, mas ficam
preocupados. As pessoas têm medo de mudar”. Por isso, no entender de Sulu
Sou, é preciso continuar a “educar”.
Cláudia Aranda | Ponto Final |
Foto: Eduardo Martins
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