O caso do medicamento da bebé
Matilde, que os técnicos julgam poder melhorar de uma doença rara se for
utilizado um medicamento de que uma empresa americana detém o registo da
patente e que apenas vende a troco de 2 milhões de dólares, ficará como o marco
da indignidade fundamental de um sistema que só salva a vida de um bebé a troco
de um resgate de 2 milhões de dólares. E esta empresa parece que está cotada
nas grandes bolsas do capitalismo com acções muito lucrativas!
Carlos de Matos
Gomes* | Jornal Tornado | opinião
Alexander Fleming, médico,
microbiólogo e farmacologista britânico, notabilizou-se como o descobridor da
proteína antimicrobiana lisozima, e da penicilina, obtida a partir do fungo Penicillium
notatum, esta em 1928, há noventa anos. Fleming trabalhou no Hospital de St.
Mary, Londres. Durante a Primeira Guerra Mundial foi médico militar nas frentes
de batalha da França e ficou impressionado pela grande mortalidade nos
hospitais de campanha causada pelas feridas de arma de fogo que resultavam em
gangrena gasosa. Regressou ao Hospital St. Mary e procurou um novo anti-séptico
que evitasse a dura agonia provocada pelas infecções durante a guerra.
Chegou à descoberta da penicilina
ao observar uma cultura de bactérias do tipo estafilococo. Publicou os
resultados desses estudos no British Journal of Experimental
Pathology em 1929. Mas Fleming não patenteou sua descoberta, pois entendeu
que assim seria mais fácil a difusão de um produto necessário para o tratamento
das infecções.
Conhecemos a importância da
descoberta da penicilina para a medicina, que deu inicio à chamada “Era dos
antibióticos”.
Hoje estamos na era dos abutres,
das hienas. Na era dos ciclopes da medicina, da indústria farmacêutica, dos
monstros que chantageiam os doentes e os frágeis. Estamos na era dos ciclopes,
dos monstros de um só olho, a do lucro sem qualquer limite moral.
A raça dos ciclopes foi retratada
nos poemas de Homero, na antiguidade grega, como constituída por gigantescos e
insolentes pastores fora da lei, que habitavam a Sicília, a pátria da Máfia
moderna, recorde-se. Os ciclopes não trabalhavam a terra, preferiam invadir os
terrenos cultivados e assaltar rebanhos. Homero registou que, por vezes, comiam
até mesmo carne humana. Como os actuais ciclopes da medicina e da farmácia. Por
este motivo eram considerados seres sem leis ou moral.
Aqui em Portugal as greves dos
médicos e enfermeiros à babugem dos tempos pré-eleitorais, propícios à
chantagem, revelam como a moral e ética estão arredados do exercício da
actividade destes novos mercadores da vida dos seus semelhantes.
O capitalismo utiliza hoje a
saúde dos humanos como os ciclopes utilizavam na mitologia as forjas onde
fabricavam as armas para os seus deuses, como uma arma para obter lucro. A
produção e venda de medicamentos é hoje, um negócio de patentes. Devia ser um
serviço público. Um bem público. Em 90 anos passámos da generosidade e
consciência social de Fleming e da penicilina sem patente ao Zolgensma apenas
disponível nos EUA, um bem exclusivo de uma empresa, um factor de lucro no
farol do capitalismo, do império do mercado. Da barbárie, se pensarmos um
pouco.
O caso do medicamento da bebé
Matilde, que os técnicos julgam poder melhorar de uma doença rara se for
utilizado um medicamento de que uma empresa americana detém o registo da
patente e que apenas vende a troco de 2 milhões de dólares, ficará como o marco
da indignidade fundamental de um sistema que só salva a vida de um bebé a troco
de um resgate de 2 milhões de dólares. E esta empresa parece que está cotada
nas grandes bolsas do capitalismo com acções muito lucrativas!
Numa reportagem, um médico de uma
organização de apoio sanitário na Síria, confessou que chorou quando uma
criança ferida na consequência da guerra de desestabilização que o “império” de
que somos dependentes desenvolve no Médio Oriente lhe pediu um medicamento não
para tratar das feridas, mas para lhe tirar a dor da fome.
O laboratório do Zolgensma fabrica
fome, vive da fome, e não fabrica remédios para crianças com fome.
A normalidade com que hoje
aceitamos as invasões dos ciclopes da saúde, aqui em Portugal, com as greves
imorais e no farol do capitalismo, a América grande outra vez, através dos
“comerciais” da empresa que só fornece o medicamento que pode salvar a vida de
um bebé a troco de 2 milhões de dólares, porque “registou a patente”, é a
imagem do estado de podridão a que chegou o capitalismo.
Contra estas infecções não há
penicilina nem Fleming que consiga salvar a civilização em que ainda vivemos. A
morte, a necrose, é o fim de um sistema imoral, que deixou de ter defesa.
* Militar, investigador de
história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz
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