Em crise civilizatória aguda,
velhas estratégias e táticas não servem. Surgiram dois horizontes. Num, é
preciso proteger a democracia. Noutro, acolher novos projetos de política,
afeto, produção e consumo, que emergem em especial entre os jovens
Apesar de haver máquinas de secar
roupa, a maioria das pessoas do mundo (quase sempre mulheres) secam a roupa em
varais de metal, de corda de cânhamo ou de madeira. Ramos de árvore também
podem servir de varal. A técnica de estender a roupa varia de país para país,
mas há certas regras de observância geral. Assim, a roupa tem de ser bem
estendida para garantir a maior exposição ao sol e ao vento, o peso da roupa
tem de ser calibrado com a resistência do varal, no caso de a roupa poder cair
com alguma turbulência é conveniente segurá-la com um prendedor ou algo
semelhante. Estender a roupa no varal é um trabalho minucioso que obriga a ter
bem presente a roupa e o varal para a operação ter sucesso. Mas quem se
habituou a estender a roupa no varal sabe que, ao mesmo tempo que se olha com
atenção para o que está na frente dos olhos, é preciso ter presente a época do
ano, a meteorologia, a incidência do sol, a força e a direção do vento, a
poluição atmosférica e até a segurança do varal, se há a possibilidade de
ladrões roubarem a roupa.
Todos os democratas do mundo,
sobretudo os que têm o coração duplamente do lado esquerdo (físico e político),
os que se sentem insultados com o enriquecimento exorbitante de uns e o
empobrecimento injusto de outros, os que ficam revoltados com o crescimento
desordenado do armamentismo e todas as outras faces da guerra, sejam elas os
embargos, as sanções econômicas, o tráfico de drogas, de humanos e de órgãos, o
assassinato de líderes sociais e políticos, o feminicídio, os que ficam
assustados com o possível colapso ecológico, dado o ritmo do aquecimento
global, do desmatamento das florestas, da contaminação das águas e da cegueira
dos políticos a este respeito, os que ficam alarmados com o recrudescimento da
extrema direita e das ideologias reacionárias, nacionalistas,
hiperconservadoras, enfim todos os que não estão dispostos a desistir de lutar
por uma sociedade mais justa, mais decente e mais digna, todos eles deviam
aprender com as mulheres do mundo e a sua arte de estender a roupa nos varais.
Estamos num tempo em que o
pequeno e detalhado horizonte da roupa a ser estendida tem de ser articulado
com o horizonte mais amplo da meteorologia social, econômica, política e
cultural da época em que vivemos. Para as forças políticas de esquerda este
esforço de articulação de horizontes é mais difícil do que para as forças de
direita. Porque vivemos há séculos em sociedades capitalistas,
colonialistas e patriarcais e porque as injustiças e discriminações que elas
produzem, apesar de terem mudado de forma, não têm mudado de intensidade e de
letalidade, as forças políticas de esquerda têm-se treinado para existir e
resistir contra a corrente e para centrar as suas energias na preparação da
sociedade do futuro. Em outras palavras, têm-se preocupado menos com o estender
da roupa do que com a meteorologia que a envolve. Sempre que procuraram
articular as duas preocupações, fizeram-no seio do mesmo horizonte político e
procuraram vê-lo, ora com os óculos para ver de perto (a tática), ora com óculos
para ver ao longe (estratégia). Durante muito tempo esta articulação funcionou,
ainda que, na maioria dos casos, uma parte das esquerdas se tenha habituado a
ver só com os óculos de ver de perto e a outra se tenha habituado a ver só com
os óculos de ver ao longe. Se isto tivesse acontecido às mulheres e ao seu
varal, talvez hoje andássemos nus.
Acontece que quarenta anos de
neoliberalismo tornaram este hábito político inviável. O horizonte político
tornou-se tão asfixiantemente pequeno que levou o mercado ótico-político a
especializar-se em óculos de ver de perto. Quem quer teimar em ver com óculos
de ver ao longe usa lentes velhas e corre o risco de ser considerado míope ou
lunático. Os democratas com coração político à esquerda têm demorado a dar-se conta
desta mudança de época e de meteorologia e, enquanto não se derem conta, põem
em sério risco, não só a roupa deles como a roupa de todos nós. Mas o esforço é
urgente e ouso sugerir algumas das vias que ele deve tomar.
O que antes eram duas escalas do mesmo
horizonte político são agora dois mundos distintos e é por isso que para os ver
adequadamente no plano político é agora preciso muito mais que dois pares de
óculos. É preciso toda uma nova visão de cultura política. Simbolicamente, a
queda do Muro de Berlim, combinada com o disparo da concentração da riqueza e o
aprofundamento da crise ecológica, fez com que a aspiração e a luta por uma
sociedade melhor passassem a ter de ser pensada e realizada em dois horizontes
muito distintos: o horizonte político e o horizonte civilizatório. O primeiro é
o horizonte convencional da luta política. Continua ser dividido entre táticas
e estratégias mas a sua escala diminuiu desde o momento em que o horizonte
civilizatório começou a ser discutido na sociedade. Com isso, a própria
diferença entre tática e estratégia foi miniaturizada. O horizonte político
passou a ser o horizonte próprio do estender a roupa no varal. Chamamos ao
conjunto do varal de agenda política.
O horizonte civilizatório é
conjunto dos temas que estão para além do horizonte político, mas que no
entender de um número crescente de pessoas, sobretudo de jovens, é decisivo
para o futuro da humanidade: outros modelos de consumo, de convivência
democrática, de relacionamento cordial entre humanos e entre estes a natureza.
Essa será a única maneira de evitar o colapso ecológico e a superveniência de
novas ditaduras e a multiplicação de guerras irregulares e suas vítimas
privilegiadas, civis inocentes. O horizonte civilizatório é constituído por
duas inquietações políticas, uma negativa, outra positiva. A inquietação
negativa é a sensação de que a roupa no varal pertence toda a um corpo, um
estilo, uma história do passado. A inquietação positiva é que, apesar de
os temas civilizatórios não poderem, pelo menos por agora, ser processados pelo
sistema político, são cada vez mais discutidos pelos cidadãos e presentes na
sua vida: no modo como mudam os hábitos de consumo, na revolta ante políticas
públicas que negam ou minimizam a importância dos temas civilizatórios, no
desconforto ante a magnitude do que está em causa no horizonte civilizatório e
a pequenez dos debates que ocupam o varal da roupa política. Perante isso,
muitos e muitas afastam-se da política convencional, o que os políticos
ocupados no varal confundem com despolitização, mas que no fundo é apenas o
desejo acrisolado de outras políticas.
Esta disjuntiva entre horizonte
político e horizonte civilizatório é nova e o drama do nosso tempo é que ela
exige uma nova e fundamental distinção entre esquerda e direita e a classe
política não está preparada para ela. As forças políticas de direita, por mais
que digam o contrário, não se interessam pelo horizonte civilizatório e
desprezam quem o quer discutir. Afinal, o mundo tal como está foi em grande
medida obra delas e são elas as que mais beneficiam com o status quo. Não
pensam no horizonte civilizatório porque, segundo dizem, isso é longo prazo e a
longo prazo estamos todos mortos. Ao contrário, as forças de esquerda só terão
viabilidade no futuro se souberam articular os dois horizontes. Se não o
fizerem, são elas que a longo prazo estarão mortas. Têm, pois, um interesse
vital em introduzir na discussão o horizonte civilizatório. Só que isso não é
possível a curto prazo nem sequer nos termos da temporalidade dos processos
eleitorais. Perante isto, a solução só pode ser a seguinte. As forças de
esquerda têm de aprender a exercer a sua atividade dentro e fora do horizonte
político. Dentro dele, o seu objetivo deve ser o de o reconverter para que ele
amplie o seu carácter democrático (haja roupa mais colorida e diversa no
estendal). Ela sabe que o horizonte político vai ser cada vez mais pressionado
a partir de fora pelos cidadãos sobretudo interessados no horizonte
civilizatório e que, perante isso, as forças de direita vão responder
repressivamente e tudo fazer, inclusive sacrificar a democracia para
salvaguardar o status quo. Por isso, para as forças de esquerda a defesa
da democracia deve ser o novo centro do horizonte político e a única razão
porque participam nele.
Mas têm igualmente de trabalhar
fora dele, ao nível do horizonte civilizatório. A esse nível, os instrumentos
políticos são: a educação popular para a democracia intercultural
ecossocialista, o exemplo pessoal e coletivo como testemunho de vida, e formas
novas de organização. Quanto à educação: a democratização global da vida, a
diversidade intercultural das possibilidades pós-capitalistas,
pós-colonialistas e pós-patriarcais e os direitos da natureza. Isto implica
virar do avesso as universidades de verão e as escolas de formação organizadas
pelos partidos: serão os cidadãos a ensinar aos políticos o horizonte
civilizatório. Quanto ao testemunho de vida: os políticos de esquerda têm de
dar testemunho pessoal das preocupações civilizatórias e têm de conviver mais
com as periferias pobres e discriminadas das cidades, aprender de novo a falar
com as classes que lhes deram historicamente a razão de ser e, sempre que
possível, ir viver com elas. Quanto à forma de organização: a esquerda tem de
ser partido e movimento porque nem um nem outro isoladamente sobreviverão à
degradação da democracia causada pelas forças de direita. Articulando-se
poderão começar a pensar conjuntamente o horizonte político e o horizonte
civilizatório e a transformar o primeiro em função do segundo. Estarão aí para
garantir o seu futuro, um futuro promissor e urgente.
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS -- Doutorado em Sociologia do
Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade
de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa.
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