sábado, 17 de agosto de 2019

As contradições de Christine Lagarde


Alejandro Nadal [*]

O clima da economia mundial é inquietante. As tormentas são sempre precedidas por um período de calmaria e nuvens negras vislumbram-se no horizonte. O mais grave é que não se percebe um novo motor que permita reactivar a economia mundial. A guerra é uma realidade, o investimento na economia real continua letárgico e a ameaça de uma nova recessão continua em vigor.

Neste contexto, o que significa a passagem de Christine Lagarde do Fundo Monetário Internacional (FM) para o Banco Central Europeu (BCE)? Para apreciar esta pergunta é importante observar as contradições de Lagarde frente às políticas de austeridade que o FMI tanto promoveu no passado.

Durante décadas o FMI aplicou uma desapiedada política de austeridade orçamental nos países subdesenvolvidos. O objectivo foi sempre gerar um superávite primário nas finanças públicas para assegurar o pagamento da dívida externa, ainda que isso significasse condenar economias inteiras ao estancamento, ao desemprego e à pobreza. Em países como o México os programas centrados na redução da pobreza foram o paliativo, outra fórmula preferida do FMI. Os resultados estão à vista: desigualdade desenfreada e pobreza para 60 por cento da população. 

A ajuda do FMI sempre teve o efeito de prolongar a agonia económica para assegurar a servidão financeira de países inteiros. Mas na crise financeira de 2008 tudo mudou. O FMI descobriu os benefícios da política fiscal quando se trata de resgatar bancos e grandes corporações; e também acabou por aceitar que os bancos centrais injectassem quantidades astronómicas de dinheiro de alto poder no sistema bancário e financeiro.

A gestão de Christine Lagarde à frente do FMI foi marcada desde o começo pelos efeitos dessa crise. A princípio, o FMI viu com boa vontade os pacotes fiscais de resgate e de estímulo activados por Paulson (secretário do Tesouro sob George W. Bush) e Geithner (sob Obama). Mas as vozes contra a ampliação do défice fiscal travaram-na.

Depois a Reserva Federal percebeu que tinha de colmatar o vazio deixado pela retirada dos apoios fiscais. E o Fed inaugurou sua política de flexibilidade quantitativa, que acabou por injectar mais de 4 milhões de milhões de dólares no sistema financeiro estado-unidense [NT] . Novamente o FMI aprovou este enfoque de política monetária que ia contra os dogmas que o organismo exaltara durante décadas.

Estes movimentos na política macroeconómica tiveram sua réplica na Europa, com os resgates operados por vários países quando o contágio levou à crise da UE. E quando Mario Draghi anunciou que o BCE faria tudo o que fosse necessário para manter o valor e a integridade do euro, o FMI mais uma vez esteve de acordo.

Dez anos depois do desastre financeiro, tanto o Fed como o BCE continuam atolados nesta postura de generosidade extrema com o mundo financeiro e fria indiferença com a economia real. Assim, anunciaram a manutenção de taxas de juro baixas para o futuro previsível. Enquanto isso, a bolha mais espectacular de todos os tempos continua em crescendo na Bolsa de Valores de Nova York.

O fundo de tudo isto é que tanto os bancos centrais dos países desenvolvidos como dos subdesenvolvidos não têm o controle da política monetária. Que Lagarde ou Draghi sejam directores do BCE não muda as coisas. Os bancos comerciais privados na Europa, tal como em todo o mundo, são os que controlam a oferta monetária. O papel do banco central é proporcionar a base monetária de acordo com o funcionamento dos bancos comerciais privados. Se estes se excedem na criação de dinheiro (através das suas operações de crédito), ao banco central não resta outro remédio senão acomodar-se à procura de reservas proveniente dos bancos privados. O BCE sabe que quando o sistema bancário necessita reservas, ao banco central não resta outro remédio senão emprestá-las (fixando a taxa de juro de curto prazo sobre essas reservas). O mecanismo não é suficiente para manter o controle sobre a oferta monetária. E a crise do euro é a melhor prova.

A designação de Lagarde para dirigir o BCE coincide com a vitória eleitoral da Nova Democracia na Grécia. Este partido representa os interesses da oligarquia corrupta e rentista nesse país e este resultado eleitoral é a consequência directa da política de austeridade imposta pela troika a partir do estourar da crise. O FMI desempenhou um pouco menos terrível do que a Comissão Europeia em Bruxela e o BCE. Para a senhora Lagarde era relativamente fácil aconselhar um pouco mais de comedimento ao tratar da economia grega porque sabia que, no final das contas, Bruxelas e Frankfurt tinha mais peso na decisão. A partir do seu novo posto, para Christine Lagarde será difícil aplicar uma política monetária menos hostil aos povos da eurozona que ainda sofrem os efeitos da crise que estourou há 10 anos.
10/Julho/2019

[NT] Note-se que injectar no sistema financeiro não é o mesmo que injectar na circulação corrente (o que teria provocado uma hiper-inflação). A injecção foi sobretudo para sanar os balanços dos bancos. 

[*] Economista, Twitter: @anadaloficial

O original encontra-se em www.jornada.com.mx/2019/07/10/opinion/023a1eco  Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

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