sábado, 10 de agosto de 2019

Ebola, doença do colonialismo


Epidemia que assombra África tem origem em intervenções muito ocidentais: agronegócio mercantilizou cultivo do dendê e submeteu camponeses a convívio com morcegos. Destruição da Saúde Pública completou o trabalho

Rob Wallace e Rodrick Wallace | no New Left Review | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz | Imagem: Owen Davey

As epidemias constituem, na mesma medida, marcos da civilização moderna e ameaças contra ela. Tudo que consegue evoluir e se expandir depende da matriz de barreiras e oportunidades que determinada sociedade dá aos patógenos que a circundam. Durante grande parte de sua história, por exemplo, o vibrião colério [Vibrio cholerae] alimentou-se do plâncton que existia no delta do Rio Ganges.

Somente depois que muitas camadas da população adotaram um modo de vida urbano e sedentário e, posteriormente, integraram-se cada vez mais graças ao comércio e aos sistemas de transporte do século XIX, é que as bactérias do cólera viraram um específico e exclusivo ecótipo humano. Os vírus que causam a imunodeficiência (AIDS) em primatas surgiram em macacos, na forma de HIV, quando a expropriação colonial converteu o consumo de animais exóticos para a subsistência e o comércio sexual nas cidades em mercadorias de escala industrial.

O gado domesticado tem se tornado uma fonte tremenda de difteria, gripe, sarampo, caxumba, pragas, coqueluche, tuberculose, rotavírus A, doença do sono e leishmaniose para os seres humanos. As mudanças ecológicas provocadas no entorno, pela intervenção humana, têm facilitado a transmissão de malária das aves e de dengue e febre amarela dos primatas selvagens. Os novos agentes patógenos adaptaram-se às melhorias da tecnologia médica e da saúde pública, enquanto as inovações nos métodos agrícolas e industriais têm acelerado as mudanças demográficas e as novas formas de habitar, concentrando potenciais populações hospedeiras e, desse modo, promovendo novas rodadas de transmissão.

As políticas destinadas a redesenhar a economia local em benefício das multinacionais impactam drasticamente o ambiente e os ecossistemas, e, portanto, influenciam do mesmo modo no destino das doenças infecciosas. Como testemunha a história epidemiológica, o contexto é muito mais que um simples cenário de colisão entre agentes patogênicos e

Os impactos agroeconômicos regionais do neoliberalismo mundial podem ser percebidos em todos os níveis da ordem biocultural, inclusive nas proporções do vírus e da molécula. A investigação de tais conexões pode se tornar uma questão decisiva para o século XXI. Não deixa de crescer a bibliografia sobre saúde pública e animal que sugere que os padrões atuais de exploração agroeconômica aumentam o risco de uma nova pandemia, seja provocada pelos vírus RNA, como o ebola ou a síndrome respiratória aguda grave (SARS), ou por qualquer outro patógeno.

Ecossistemas nos quais os vírus “silvestres” eram controlados pelas alternâncias da estocasticidade ambiental (variações ao acaso nas condições ambientais, como catástrofes, etc.) estão sendo radicalmente reestruturados pelo desmatamento e pelas plantações de monocultivo. As transmissões de patógenos que antes desapareciam com relativa rapidez, hoje descobrem cadeias de vulnerabilidade, gerando surtos de maior extensão, duração e impulso. Existe a possibilidade de que algum desses surtos chegue a igualar a escala da pandemia de gripe de 1918, de alcance global e com altas taxas de mortalidade e de invalidez.

O agronegócio capitalista transforma cada vez mais o Planeta Terra em Planeta Fazenda. 40% da superfície terrestre destina-se à agricultura, e espera-se que muitos milhões de hectares passem a ser de produção daqui ao ano de 2050. O gado, que representa 72% da biomassa animal, está, ao mesmo tempo, muito concentrado e amplamente disperso pela superfície do planeta.

A pecuária usa um terço da água doce disponível e um terço das colheitas do mundo para sua alimentação. Com sua expansão global, a agricultura mercantilizada atua como a ponte através da qual os agentes patogênicos de diversas origens migram, inclusive das reservas selvagens mais isoladas até os centros populacionais mais globalizados.

Quanto mais longas as cadeias de suprimento associadas, e quanto maior for o rastro do desmatamento, mais variados — e exóticos — serão os patógenos zoonóticos a entrar na cadeia alimentar. Entre os patógenos emergentes, encontram-se os Campylobacter industriais, o vírus Nipah, a febre Q, a hepatite E, a Salmonella enteritidis, a febre aftosa e diversas novas variantes da gripe (1)

As deseconomias de escala da agricultura intensiva vão muito além das consequências epidemiológicas acidentais que decorrem do transporte e da distribuição globalizados. Os ciclos de produção deste modelo debilitam a resistência dos ecossistemas às doenças e aceleram a difusão e a evolução dos agentes patogênicos, devido ao aumento dos monocultivos genéticos, à alta densidade populacional e à expansão das exportações.

Neste ensaio, descrevemos o surgimento de um ebola urbanizado na África Ocidental, no fim de 2013, como exemplo fundamental de tal transição.

AS ORIGENS

O surto do Zaire ebolavírus (zebov) na África Ocidental, o maior e mais extenso já registrado, começou nas aldeias selváticas de quatro distritos ao sudeste de Guiné, em dezembro de 2013. A epidemia se estendeu posteriormente para Guiné, Libéria e Serra Leoa — incluindo as capitais Conakry e Monróvia — antes de penetrar na Nigéria e no Senegal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a epidemia como emergência de saúde pública de importância internacional. No final de 2015, já se registravam 28 mil casos de infecção e 11 mil mortes. Muitos dos milhares de doentes que sobreviveram à infecção, sofrem sequelas prolongadas, como doenças oculares, perda de audição, artralgia, anorexia, dificuldade para dormir e transtorno de estresse pós traumático (3).

Os primeiros casos documentados do surto na África Ocidental, parecem ser os de duas crianças de uma aldeia, um menino de dois anos e sua irmã, de três, ao norte de Guéckédou, uma cidade guineana de 200 mil habitantes. Um grupo de pesquisadores sugere que a transmissão inicial do zebov teria tido início quando crianças da aldeia guineana de Meliandou capturaram e brincaram com morcegos de uma espécie insetívora (Mops condylurus), que já havia sido identificada antes como portadora do ebola (4).

Porém, focar somente no “paciente número zero” inicial pode ser um erro: é provável que o ebola já levasse anos circulando pela região (5). Diversos estudos acharam anticorpos contra várias espécies do ebola, especialmente da cepa zairense, em pacientes da Serra Leoa, muitos anos antes — enquanto as análises filogenéticas do próprio genoma do vírus remontam o limite inferior da entrada do zebov na África Ocidental para uma década atrás (6). Nosso próprio grupo de pesquisa propõe que essa estirpe tenha surgido quando a produção de dendê — pelo qual os morcegos frugívoros portadores do ebola se sentem atraídos — passou por um processo de consolidação, cerco e proletarização na Guiné selvática (7). A mudança na produção agroflorestal restringiu a produção artesanal e possivelmente expandiu o campo de interação humano-morcego pelo qual o vírus atravessa.

Independentemente da fonte específica, as mudanças no contexto agroeconômico parecem ser um dos principais fatores causais. Daniel Bausch e Lara Schwarz sugerem que o vírus tenha se propagado inicialmente na Guiné devido a uma combinação de impactos econômicos e políticos nacionais, sobre a comunidade silvestre do primeiro epicentro (8). A pobreza fomenta a invasão da selva, os infectados procuram tratamento em instalações médicas inadequadas, ampliando o contágio, e os países pobres passam a se ver afetados por uma série de falhas logísticas, que vão desde o surgimento da epidemia em si, até as bases de uma sociedade em funcionamento, incluindo a incapacidade de proporcionar alimentos suficientes. Pesquisas anteriores demonstram que a espécie de morcegos Mops — espécie proposta por outra equipe de investigação como a fonte da cepa que produziu o surto — também era atraída por outras produções de cultivo comercial na África Ocidental, como cana de açúcar, algodão e macadâmia (9). O capital investido na região parece insignificante em comparação com o cenário econômico mundial, mas as novas epizootias (doença que apenas ocasionalmente se encontra em uma comunidade animal, mas que se dissemina com grande rapidez e apresenta grande número de casos) podem surgir inclusive de pequenas mudanças na forma em que se utiliza o solo.

As transformações na Guiné selvagem em que se originou o vírus têm relação com as políticas de “ajuste estrutural” do governo de Alpha Condé, que abriu a produção de alimento aos circuitos mundiais do capital e, ao mesmo tempo, reduziu os já precários serviços de saúde pública. A região selvagem cobre quase um quarto do território de Guiné e faz fronteira com Libéria e Costa do Marfim, ao sudeste do país. As florestas naturais e semi-silvestres de diferentes tipos de dendê — dura, pisifera e tenera — são utilizados há muitos anos na Guiné para obter azeite. Os agricultores silvestres cultivam a espécie há centenas de anos, de uma forma ou de outra.

Durante o transcurso do século XX, os períodos de descanso da terra foram reduzidos de vinte anos, na década de 30, para dez, na década de 1970 — e ainda mais no novo milênio, acrescentando o efeito de ter aumentado a densidade dos bosques. Nos terrenos agroflorestais cultivam-se também outras espécies, desde café e cacau, até arroz, milho, amendoim e mandioca. A rotatividade dos cultivos cumpre objetivos sociais maiores do que a sucessão funcional, e acaba influenciando a segurança alimentar, a posse da terra, a disponibilidade da mão de obra e as flutuações de preços da região. Mas a floresta está mudando.

Com 2 milhões de hectares de sítios naturais e de cultivo tradicional, Guiné começou recentemente a fomentar a mercantilização do dendê para compensar as baratas importações da Ásia. Os planos traçados pelo governo em 2007, ao fim do longo reinado de Lansana Conté como presidente, incluíam a expansão da produção familiar e industrial para 15 mil hectares e 84 mil toneladas de azeite de dendê em 2015. Mais da metade delas deveria ser produzida nas plantações da Guiné selvática.

A Sociedade Guineana da Palma de Óleo (Société Guinéenne de Palmier à Huile et d’Hévéa – SOGUIPAH), fundada em 1987, começou como uma espécie de cooperativa paraestatal antes de virar uma empresa pública para todos os efeitos. Hoje, ela lidera os esforços regionais pelo desenvolvimento de plantações intensivas de palma híbrida para exportação. A empresa comercializou a produção de palma na prefeitura de Yomou, ao sul da área onde se produziu o surto, negociando requisições de terras, organizando cadeias de suprimentos, criando uma franquia de modo de produção e expropriando terrenos agrícolas, com o apoio das forças de segurança contra a oposição local. Em 2011, sob o novo governo de Alpha Condé, os camponeses que cultivavam arroz, café e borracha foram expulsos de suas chácaras e obrigados a se refugiar numa igreja em Nzarakora, capital da província (10).

A Farm Land of Guinea, uma empresa de capital britânico cuja sede social fica em Nevada, obteve a concessão por 99 anos, de dois terrenos de quase 9 mil hectares, em conjunto com as aldeias de N’Dema e Konindou, no município de Dabola — que se tornaria o segundo epicentro do ebola — e de 98 mil hectares junto à aldeia de Saraya, no município de Koursoussa. Nos terrenos recém adquiridos, a ideia era cultivar milho e soja. O ministério de Agricultura encomendou à empresa a medição e o mapeamento de outro milhão e meio de hectares para a exploração de terceiros.

REMODELANDO ECOSSISTEMAS

Estes acordos internacionais são os mais recentes de uma série de esforços “pós”-coloniais para aumentar a produção agrícola na Guiné. A área pode ser caracterizada como um mosaico de povoados pequenos e isolados, habitados por diversos grupos étnicos que possuem escassa influência política e quase não recebem investimento social (11). Suas economia e ecologia têm sido também submetidas a tensões devido à chegada de refugiados de guerras civis que ocorrem nos países vizinhos, como Serra Leoa.

A selva está submetida ao duplo processo de aceleração da decadência da infraestrutura pública e de iniciativas do setor privado que desapropriam os pequenos proprietários e eliminam os terrenos de colheita tradicionais em favor da mineração, da extração de madeira e dos grandes produtores agrícolas. O apoio internacional acelerou a transição. Uma fábrica de óleo de palma financiada pelo Banco Europeu de Investimentos permitiu à SOGUIPAH quadruplicar a capacidade de sua fábrica anterior e deu um fim à extração artesanal que, ainda em 2010, fornecia pleno emprego aos povos locais.

O aumento decorrente da produção sazonal faz com que a fábrica fique sobrecarregada em plena temporada e funcione abaixo de sua capacidade quando o período acaba. Isso vem produzindo conflitos entre a empresa e seus produtores e colhedores, agora parcialmente proletarizados. Os trabalhadores temporários independentes, que insistem em elaborar seu próprio óleo durante a temporada de chuva, agora correm o risco de ser presos.

A nova geografia econômica é um clássico caso do cerco de terras, que elimina a tradição do uso comum dos terrenos florestais com a expectativa de que os colhedores informais que trabalham os terrenos em descanso fora de suas chácaras familiares tenham de pedir permissão ao proprietário antes de fazer a colheita nas palmeiras de dendê. Alguns desses pequenos proprietários que mantiveram sua independência, conseguiram se adaptar ao novo ambiente. Agricultores entrevistados próximos à aldeia de Nienh, ao sul de onde teve início o primeiro surto do ebola, preferem plantar palmas híbridas em monocultivos com sistema de queimada (prática destinada à limpeza do terreno para o cultivo de plantações ou formação de pastos com uso do fogo de forma controlada) para aumentar a produção de óleo e a renda — e para adquirir o controle privado do recurso e da terra que o sustenta (12).

Uma agricultura semelhante caracteriza o epicentro de Kailahun, na Libéria. Porém, o vizinho meridional de Guiné apresenta uma trajetória diferente na sua consolidação agrícola, que remonta aos primeiros investimentos da Firestone Rubber Company, em 1925, e a uma política pós-bélica de portas abertas à privatização de terras e de setores como o da borracha, da madeira, do minério de ferro e dos diamantes (13). Recentemente, em conjunto com uma tradição nacional mais antiga do trabalho assalariado, as empresas internacionais madeireiras, de mineração e agroindustriais — que englobam as produtoras de óleo de palma como a Sime Darby (Malásia), a Equatorian Palm Oil (Inglaterra) e a Golden Veroleum (Indonésia) — tem se visto envolvidas nas expropriações em grande escala que já atingem um terço do território do país, com concessões planejadas que aumentariam esse total a quase 45% (14).

Os planos de desenvolvimento aspiram à regionalização desse modelo (15). O “ponto de acesso” do surto do ebola compreende, em sua totalidade, uma parte da grande região da savana de Guiné, que o Banco Mundial definiu como “uma das maiores reservas agrícolas subutilizadas do mundo” (16).

Estas mudanças agroeconômicas, com toda a sua complexidade, parecem ter um impacto significativo na epizoologia selvagem. A pesquisa detectou uma variedade do morcego da fruta, atraído pelas plantações de palma de dendê (17). Os morcegos migram para os dendezeiros em busca de alimento e abrigo para enfrentar o calor, enquanto as largas trilhas das plantações facilitam o movimento entre os espaços para pousar e os espaços para se alimentar.

A colheita nos dendezeiros da região acontece no ano todo, mas o maior impulso ocorre no começo na estação seca, momento no qual os múltiplos surtos do ebola começaram, na região subsaariana (18). É provável que os morcegos da fruta apresentem o mesmo tipo de biogeografia que vemos nas aves aquáticas migratórias, que se alimentam dos grãos remanescentes centenas de quilômetros ao norte de seu destruído hábitat natural (19). Atribui-se a transmissão do ebola na República Democrática do Congo à caça em grande escala durante a migração anual rumo ao alto curso do rio Lulua — caça esta que inclui morcegos cabeça de martelo (Hypsignathus monstrosus) e morcegos frugívoros de Franquet (Epomops franqueti), duas das três espécies que provavelmente funcionam como reservatórios do ebola (20).

Os morcegos ocuparam a área do surto por várias semanas, pendurando-se nas frutas e nas palmas.

A caça de animais selvagens para a alimentação não tem motivo para ser uma explicação direta para qualquer surgimento de doenças, porém, o desmatamento — inclusive o causado pelo plantio de palmas de dendê — tem modificado o comportamento alimentar dos morcegos da fruta, que agora direcionam sua atenção aos cultivos hortícolas e, assim, expandem as áreas de contato entre morcegos, humanos e gado (21). À medida em que a selva desaparece, inúmeras espécies de morcegos recorrem à comida e ao refúgio que lhes resta. A caça de animais selvagens para alimentação é um dos meios pelos quais pode ocorrer o contágio, mas só a produção agrícola é um mecanismo eficiente.

Em Bangladesh, os morcegos da fruta transmitiram o vírus do Nipah aos humanos urinando nos frutos das palmas que eram cultivadas pelos aldeões (22). Mais de um terço dos entrevistados em Gana já foram mordidos ou arranhados por morcegos, ou já foram expostos à urina deles (23).

Num artigo de pesquisa, as estruturas em que os morcegos se penduram foram identificadas como elementos que levam à transmissão indireta de vírus por gotas ou pulverização, e adverte que a exposição contínua “pode levar a uma alta probabilidade de infecção” (24). Inclusive a transmissão mediante caça pode ser relacionada com a agricultura, mas por efeitos secundários. Um pouco antes do surgimento do ebola numa dessas aldeias, havia acontecido uma grande caça de morcegos transmissores do vírus ao longo do rio Lulua, no Congo, entre as palmeiras de uma enorme plantação abandonada que os morcegos vinham visitando havia mais de meio século (25).

OS LIMITES DA VACINAÇÃO

Os primeiros resultados indicam que os pesquisadores desenvolveram uma vacina eficaz contra o ebola makona, uma variação do zaire ebolavírus que ocasionou o surto regional na África Ocidental (26). Um teste realizado em quase 8 mil pessoas concluiu que todos os contatos, e os contatos dos contatos, vacinados imediatamente após a confirmação de um novo caso, não foram infectados. Porém, entre os vacinados 21 dias depois de um caso registrado, houve 16 contágios.

São boas notícias, mesmo com a vacina se mostrando menos eficaz em testes clínicos posteriores. As vacinas são uma intervenção sanitária fundamental quando não ficam limitadas por falhas de mercado — falhas que são uma barreira tão eficiente à disponibilidade das tecnologias sanitárias quanto qualquer tipo de campanha antivacina. Diversas fusões e aquisições fizeram com que somente quatro companhias farmacêuticas (GlaxoSmithKline, Sanofi-Pasteur, Merck y Pfizer) possam produzir vacinas para doenças diferentes da gripe — e elas acabam fabricando para mercados desenvolvidos, principalmente.

Com pouca concorrência, muitas dessas vacinas têm um preço excessivo e não estão realmente ao alcance dos países mais pobres. O teste da vacina contra o ebola na África Ocidental foi financiado por um esforço não-comercial conjunto entre a Organização Mundial da Saúde, Wellcome Trust, Médicos sem Fronteiras e os governos norueguês e canadense.

Contudo, há um risco. A vacinação baseia-se num modelo molecular da etiologia de uma doença. Para muitos, o descobrimento de uma vacina eficaz significa que esse método é suficiente. Um entusiástico editorial da Nature, por exemplo, afirmava o seu valor:

A extensão da vacina a mais pessoas irá proporcionar dados para confirmar sua eficácia. Mas ao vacinar familiares, amigos, trabalhadores do setor sanitário e outros que possam vir a ter contato com pacientes infectados, os surtos do Ebola poderiam ficar paralisados em seu estágio inicial, com a mesma estratégia que foi utilizada para erradicar a varíola na década de 1970. Isso significa que esta vacina pode, a princípio, distribuir-se imediatamente para ajudar a pôr um fim na epidemia de Ebola na África Ocidental. Como o próprio nome do ensaio já transmite muito claramente em francês “Ebola, ça suffit!” (Ebola, já basta!), é hora de finalizar a tarefa (27).

Porém, talvez não seja tão simples assim. Muitos agentes patógenos não tratáveis por meio de vacina — como o HIV, a malária e a tuberculose — são muito diferentes da varíola e de outras doenças que respondem a esse modelo de intervenção reducionista. Num mundo em que os vírus e as bactérias evoluem em resposta às múltiplas faces das infra estruturas capitalistas — agrícolas, farmacêuticas e políticas, entre outras — talvez nossas dificuldades epistemológicas e epidemiológicas estejam, de fato, relacionadas.

Os patógenos sócio-ecologicamente mais complexos podem evoluir a estágios populacionais que poucos pesquisadores conseguem caracterizar (28). As exigências econômicas às quais é submetida a pesquisa científica multiplicam as dificuldades. Os modelos de biologia e a doutrina econômica sob a qual se produz, frequentemente, estão estreitamente relacionados, inclusive em suas formalidades matemáticas (29). Muitos agentes patógenos encontram uma solução à intervenção num nível da organização biocultural com adaptações em outro (30). Como resultado, a evolução dos patógenos não colabora nem com as expectativas de mercado, nem com as hipóteses científicas.

O ebola é um exemplo arquetípico dessa disjunção entre método e fenômeno médico. O vírus zebov, que provocou o surto na África Ocidental, parece ter sido um fenótipo muito comum, se é que podemos dizer isso sobre um patógeno tão perigoso, com taxas específicas de mortalidade, período de incubação e intervalo serial (31).

O vírus era transmitido há anos entre animais e humanos da região e, no início, a variante do surto de makona não tinha nenhuma anomalia molecular, com as taxas de substituição de nucleotídeos características dos surtos do ebola em toda a África. Com o tempo, o makona iria se diversificar e adaptar (32). Estes resultados exigem uma explicação para a transformação ecotípica do ebola, de assassino selvagem intermitente, que atacava uma ou outra aldeia, para uma infecção proto-pandêmica, que matou milhares de pessoas na região.

Embora o vírus não tenha mudado muito, essencialmente, a África Ocidental, tem, sim. As transformações no uso da terra na região, realizadas por razões econômicas, parecem ter alterado as matrizes agroeconômicas através das quais a estocasticidade ambiental atuava como freio inerente à força patogênica em toda a população.

A expansão da agricultura mercantilizada pode excluir muitos agentes patogênicos por meio do desmatamento e do monocultivo. Todavia, ao eliminar o atrito agroecológico que as diversas geografias funcionais impõem, tal produção poderá também liberar muitos mais, especialmente aqueles que circulam entre os hospedeiros que se adaptam à nova agricultura, como é o caso das aves, dos primatas e dos morcegos.

Os sistemas que diminuem o impacto da estocasticidade ambiental sobre o crescimento da população de patógenos têm de suportar custos explosivos quando surgem novas e bem sucedidas variações: calcula-se que as perdas econômicas diretas, causadas pelos casos de ebola na Guiné, Libéria e Serra Leoa, no final de 2014, variam entre os 82 e os 356 milhões de dólares (33).

A estocasticidade ambiental em determinadas áreas pode representar outro valioso serviço ao ecossistema que as agroempresas vem eliminando pelos benefícios no curto prazo, um pedaço de selva de cada vez. Efetivamente, quase todos os surtos de ebola até hoje têm relação com alguma mudança no uso da terra, motivada pelo capital. Por exemplo, a extração de madeira, a mineração e a agricultura, incluindo o primeiro surto registrado, que ocorreu em 1976 em Nzara, Sudão, onde uma fábrica financiada por capital britânico fiava e tecia algodão local (34).

No fim da guerra civil do Sudão, em 1972, a área voltou a ter população rapidamente, e boa parte da selva local de Nzara foi eliminada para dar espaço à agricultura de subsistência. Com isso, o algodão voltou a ser predominantemente cultivado na região (35). Na própria fábrica onde foram infectados vários trabalhadores, foram descobertas centenas de morcegos suspensos. Evidentemente, tais surtos têm uma origem social além das mudanças nas ecologias locais, provocadas pelas ações de certas empresas.Alguns distritos continuam sendo os principais entre os circuitos locais de produção e intercâmbio; outros, produzem exportações agrícolas tradicionais. Mas as selvas e os campos da África Ocidental estão, globalmente, muito mais integrados pelo investimento e acumulação de capital — em grande medida, estrangeiros — que comportam, seja direta ou indiretamente (36).

Se os circuitos de capital globalizam os ambientes e, por extensão, os patógenos associados a eles, as origens de uma doença talvez não estejam somente dentro das fronteiras do país em que apareceu o patógeno. A paisagem mais ampla inclui fundos soberanos, empresas públicas, governos, empresas de capital de risco, bancos, fundos de pensão e fundações universitárias que financiaram o desenvolvimento e o desmatamento que conduziram à aparição da emergência.

As repercussões não são de natureza meramente técnica. A geografia das doenças, que raramente se limitam às fronteiras de um “ponto de acesso”, é relacional (37). Este novo ponto de vista faz referência às campanhas de saúde pública. A resposta atual ao ebola parece estar baseada, majoritariamente, em operações de segregação de emergência e em amplas intervenções estruturais (38). As respostas de emergência são fundamentais, é claro, mas tal logística pode ser também um meio indireto (embora na maior parte dos casos seja acidental) para evitar abordar os contextos mais amplos que ocasionam a eclosão de doenças.

1. Assim, por exemplo, o aumento explosivo da produção de aves domésticas em explorações comerciais da província de Guangdong, o uso extensivo de vacinas em aves domésticas de produção industrial e os laços fortalecidos com o comércio internacional após a reintegração de Hong Kong à China, facilitaram o surto do vírus da gripe aviária H5N1 no sul da China, a partir de 2013. (Robert Wallace et al., “A Statistical Phylogeography of Influenza A h5n1”, Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, vol. 104, núm. 11, marzo de 2007).
2. Estes temas são tratados de maneira mais completa por Robert Wallace e Rodrick Wallace (eds.), Neoliberal Ebola: Modeling Disease Emergence from Finance to Forest and Farm, Suiza, 2016.
3. Danielle Clark et al., “Longterm sequelae after Ebola virus disease in Bundibugyo, Uganda: A retrospective cohort study”, The Lancet Infectious Diseases, vol. 15, núm 8, 2015; Al Quereshi et al., “Study of Ebola Virus Disease Survivors in Guinea”, Clinical Infectious Diseases, 2015; Sara Reardon, “Ebola’s mental-health wounds linger in Africa”, Nature, vol. 519, 2015.
4. Almudena Mari Sáez et al., “Investigating the zoonotic origin of the West African Ebola epidemic”, embo Molecular Medicine, vol. 7, núm. 1, 2015.
5. Barry Hewlett y Richard Amola, “Cultural Contexts of Ebola in Northern Uganda”, Emerging Infectious Diseases, vol. 9, núm. 10, 2003.
6. Randal Schoepp et al., “Undiagnosed acute viral febrile illnesses, Sierra Leone”, Emerging Infectious Diseases, vol. 20, núm. 7, 2014; Gytis Dudas y Andrew Rambaut, “Phylogenetic analysis of Guinea 2014 ebov ebolavirus outbreak”, plos Currents Outbreaks; Stephan Gire et al., “Genomic surveillance elucidates Ebola virus origin and transmission during the 2014 outbreak”, Science, vol. 345, núm. 6202, 2014.
7. Robert Wallace et al., “Did Ebola emerge in West Africa by a policy-driven change in agro-ecology?”, Environment and Planning A, vol. 46, núm. 11, 2015.
8. Daniel Bausch y Lara Schwarz, “Outbreak of Ebola virus disease in Guinea: Where ecology meets economy”, plos Neglected Tropical Diseases, vol. 8, núm. 7, 2014.
9. Christina Noer et al., “Molossid bats in an African agro-ecosystem select sugar cane fields as foraging hábitat”, African Zoology, vol. 47, núm. 1, 2002; Derek Taylor, “Filoviruses are ancient and integrated into mammalian genomes”, bmc Evolutionary Biology, vol. 10, núm. 193, 2010; Christin Stechert et al., “Insecticide residues in bats along a land use-gradient dominated by cotton cultivation in northern Benin, West Africa”, Environmental Science and Pollution Research International, vol. 21, núm. 14, 2014.
10. Durante o surto, uma equipe médica que foi enviada pela SOGUIPAH para educar os moradores locais sobre o ebola e para distribuir cloro, foi recebida com pedras e feita refém (brevemente) em Bigmanou, Yomou, na fronteira com a Libéria; a confiança e o sumiço dela são variáveis eminentemente epidemiológicas: Kovana Saouromou, “Guinée Forestière: De nouvelles réticences à la little contre Ebola à Yomou”, disponível na internet.
11. D. Bausch y L. Schwarz, “Outbreak of Ebola virus disease in Guinea”, cit.
12. Cècile Madelaine et al., “Semi-wild palm groves reveal agricultural change in the forest region of Guinea”, Agroforestry Systems, vol. 73, 2008.
13. Lisa Fouladbash, Agroforestry and shifting cultivation in Liberia: Livelihood impacts, carbon trade-offs, and socio-political obstacles, tesis doctoral, Natural Resources and Environment, Universidad de Michigan.
14. Ruth Evans y Geoffrey Griffiths, Palm Oil, land rights and ecosystem services in Gbarpolu Country, Liberia, Research Note 3, Walker Institute for Climate System Research, Universidad de Reading, junio de 2013; James Murombedzi, “National and transnational land grabs in Africa: Implications for local resource governance”, en Grenville Branes y Brian Child (eds.), Adaptive cross-scalar governance of natural resources, Nueva York, 2012.
15. Bertram Zagema, Land and Power: The Growing Scandal Surrounding the New Wave of Investments in Land, Oxfam Briefing Paper 151, 2011.
16. Michael Morris et al., Awakening Africa’s sleeping giant: Prospects for comercial agriculture in the Guinea Savannah zone and beyond, Washington dc, 2009.
17. Nur Juliani Shafie, “Diversity pattern of bats at two contrasting habitat types along Kerian River, Perak, Malaysia”, Tropical Life Sciences Research, vol. 22, núm. 2, 2011.
18. Ricardo Carrere, Oil Palm in Africa: Past, Present and Future Scenarios, Montevideo, 2010; D. Bausch y L. Schwarz, “Outbreak of Ebola virus disease in Guinea”, cit.
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25. E. Leroy et al., “Human Ebola outbreak resulting from direct exposure to fruit bats”, cit.
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36. Luke Bergmann y Mollie Holmberg, “Land in motion”, Annals of the American Association of Geographers, vol. 106, 2016.
37. Com relação a isto, a epidemia de Zika, em 2016, foi específica, mas não atípica. O vírus recebe o nome da floresta de Uganda onde foi detectada pela primeira vez, em 1947 — inicialmente, isolada no mosquito Aedes africanus, e, mais tarde, em seus parentes Aedes aegypti y Aedes albopictus. Se propagou pelo Cinturão Equatorial até o Sudeste Asiático, e depois até a Polinésia Francesa, antes de chegar pelas cidades costeiras do norte do Brasil, em 2015. Nessa ocasião, as redes mundiais de viagens aéreas e de transporte de mercadorias, combinadas com uma série de fatores socioeconômicos, como uma rápida urbanização, saneamento escasso, água parada e tentativas intermitentes de eliminação dos mosquitos, possivelmente contribuíram para a transformação ecotípica de uma variedade do mosquito que os especialistas documentaram como um recém-chegado à região. As mudanças no uso da terra em áreas rurais — boa parte da vegetação nativa da Bahia foi transformada para a produção de soja, algodão e milho, em regime de monocultivo, além dos mais de 60 mil hectares de lavouras com irrigação por pivôs — talvez sejam fatores que contribuíram à sua difusão.
38. Michael Osterholm et al., “Public health in the age of Ebola in West Africa”, jama Internal Medicine, vol. 175, núm. 1, 2015.

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