É necessário voltar ao espírito
do tempo em que se queria construir um país mais solidário e justo. Precisamos
de um SNS universal, geral e gratuito, sem taxas moderadoras e devidamente
financiado.
Jorge Seabra | AbrilAbril |
opinião
No dia em que se comemoram 40 anos
da promulgação da lei que estabeleceu o Serviço Nacional de Saúde (SNS), e
juntando-me à homenagem a todos os que contribuíram para a sua construção e
lutam pelo reforço do seu espírito original de serviço público universal, de
qualidade e gratuito, aqui deixo o texto da minha comunicação ao Grupo de
Trabalho da Comissão Parlamentar da Saúde, aquando das audições prévias à
discussão e aprovação da nova Lei de Bases da Saúde.
Ela reflecte e traduz alguns
aspectos da minha experiência como profissional do SNS e uma visão resumida dos
graves problemas com que ele se tem deparado no seu desenvolvimento, para os
quais a nova Lei de Bases de Saúde recentemente aprovada, embora com
significativas melhorias no seu enunciado, não constitui garante de resolução.
Excelentíssima Coordenadora do
Grupo de Trabalho, Senhores deputados e deputadas, restantes convidados:
Ao contrário de muitos dos que
foram ou serão aqui ouvidos, nunca ocupei cargos de relevo na administração ou
no governo, com responsabilidades na orientação da política de Saúde do país.
Fui e sou apenas um médico,
aparentemente competente, a julgar por algumas distinções dadas pelos meus
pares, que teve a feliz coincidência temporal – formei-me em 1972 – de ter
participado desde o início na construção do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Nele trabalhei durante quarenta anos, trinta dos quais como Responsável ou
Director de um Serviço diferenciado, mais de vinte em tempo prolongado e
dedicação exclusiva, depois de ter atingido o topo da carreira fazendo todos os
concursos.
Álvaro Carvalho, no livro Médicos
e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal no século XX (2017),
descreve o que se passava na primeira metade desse século, que se manteve até
aos anos 70, quando comecei a minha prática clínica:
«A população rural era votada ao
abandono e dependia de gestos de caridade…Algumas zonas dispunham de pequenos
hospitais das Misericórdias. (...) Os doentes deslocavam-se à vila a pé ou de
burro. Uma visita ao domicílio era um luxo ao alcance de poucos».
Só em Lisboa, Porto e Coimbra
havia grandes hospitais ligados ao ensino médico-cirúrgico onde chegavam pontas
da medicina moderna. Nas outras cidades e vilas, para além de pequenos e mal
equipados hospitais geralmente ligados a Misericórdias, havia as «Caixas de
Previdência», «Casas do Povo», pagas pelos beneficiários, e os «médicos de
partido» pagos pelos municípios, convivendo com obras de «benfeitores» ligados
ao regime, numa filosofia caritativa que não reconhecia a Saúde como um direito
dos cidadãos.
Lembro-me bem de, a altas horas
da noite, baterem à porta da minha casa por causa de doentes em asfixia com o
«garrotilho» (difteria) que o meu pai (otorrinolaringologista) procurava salvar
com uma traqueostomia, uma situação que hoje parece quase pré-histórica.
Depois passei a vivê-la como
médico. Dei os primeiros passos como Interno Geral no velho Hospital da
Universidade de Coimbra (HUC), com enfermarias frias e húmidas onde doentes
desnutridos se estendiam nas camas entre pratos de lata amolgada e o cheiro a
vomitado e a urina.
Depois da manhã aí passada, era
nos bares das bombas de gasolina das saídas de Coimbra que se organizavam os
grupos de médicos, cada um enchendo um carro (despesas divididas), para irem
«fazer Caixas» numa mesma região.
O contrato era individual, com a
distância paga em quilómetros e em tempo perdido. Por isso, quanto mais longe
melhor, porque o pagamento-base era baixo e o que valia eram os acrescentos. Se
houvesse um colega da localidade disponível para aí trabalhar, o pagamento (sem
extras) não compensava «ver» a multidão de doentes.
Assim se estabelecera uma
(des)organização acéfala e gastadora, que nos parecia tão enviesada como
imutável. Estranhamente, a administração das Caixas preferia esse absurdo
dispêndio de dinheiro a subir a remuneração-base, como se estivesse mais
interessada em pagar viagens do que consultas.
Tudo isso começou a mudar depois
dos cravos, em 1975, nas áreas abrangidas pelo Serviço Médico à Periferia
(SMP).
Pertenci ao primeiro curso a
fazer o SMP em 1975-76 na região Centro, passo inicial para a implantação no
terreno do Serviço Nacional de Saúde, ainda antes da Lei Arnaut (1979).
Pouco falado e pouco estudado, o
arranque do Serviço Médico à Periferia deu-se em poucos meses, com jovens
médicos, empenhados em construir um país melhor, a auto-organizarem-se e a
definirem os locais em que se iriam fixar, nos concelhos mais pobres e
carenciados do interior, muitas vezes em condições precárias, enquanto abriam urgências
e consultas onde antes pouco ou nada existia.
Posteriormente, o SNS e o
desenvolvimento das Carreiras Médicas (Hospitalares, de Saúde Pública e de
Clínica Geral /Medicina Geral e Familiar) veio congregar o trabalho médico numa
só organização coerente e pública, alargando a prevenção e assistência a toda a
população, possibilitando a progressiva adaptação da prática médica isolada –
própria de uma profissão liberal – a uma medicina moderna, multidisciplinar e
tecnicamente avançada, que exigia cada vez maiores investimentos e unidades bem
apetrechadas.
O trabalho no serviço público,
apesar pior remunerado do que «cá fora», foi-se alargando no horário,
estabelecendo-se como actividade nuclear, mais diferenciada, interdisciplinar e
sofisticada, que permitia a progressão na carreira por concurso.
O SNS era onde se ensinava e se
aprendia, se fazia o melhor e se traçavam planos num trajecto de constante
ascensão técnica e científica, com estabilidade e uma melhor reforma garantida.
A criação, no início dos anos 90,
da opção de «dedicação exclusiva», constituiu um importante passo para uma
progressiva separação do «público» do «privado», evitando desperdício de tempo
e conflitos de interesse.
Nessas primeiras décadas, ainda
impulsionado pelos ventos de Abril e com uma gestão democrática e eleição dos
cargos directivos dos Hospitais, o progresso do SNS foi enorme.
Comecei, em Coimbra, como único
especialista «fixo», no Serviço de Ortopedia do Hospital Pediátrico, num país
atrasado, com índices de mortalidade infantil do terceiro mundo (cerca de 40
/1000 nascimentos), operando muitas vezes numa mesa da cozinha (de madeira)
porque a mesa cirúrgica que existia não tinha um tampo radiotransparente que
permitisse o RX.
Vinte anos depois, no virar do
século, os indicadores da mortalidade infantil eram semelhantes aos da Suécia
(cerca de 4/1000), a esperança de vida aumentara quase uma década, no Serviço
havia um «quadro» de seis ortopedistas diferenciados em áreas específicas, a
qualidade dos cuidados de enfermagem melhorara imenso, o Serviço estava mais
bem equipado e era uma referência nacional, fazendo praticamente tudo o que se
fazia nos grandes centros estrangeiros.
Em 2001, o SNS português foi
considerado pela Organização Mundial de Saúde o 12º do mundo, bem à frente do
«invejado» NHS inglês (18º), da Alemanha (25º) e dos Estados Unidos (37º),
atingindo talvez o seu ponto mais alto antes de entrar em perda.
Paradoxalmente (ou talvez não),
em Portugal – como na Inglaterra de Tatcher e Blair –, foi quando o aumento da
riqueza do país tornou apetecível o negócio da Saúde que a sustentabilidade
financeira do serviço público passou a ser questionada por uma direita política
ávida de privatizações, um pretexto para estrangular o SNS dizendo que o iam
«salvar».
Não vos vou cansar com números,
porque aqui já todos os sabem. Basta ver o gasto per capita de
Portugal, em 2017 (2734 dólares americanos) e a média dos países da OCDE (4007
dólares), para se perceber que o SNS português é demasiado barato, demasiado
subfinanciado, com metade do seu orçamento a ser drenado para o sector privado.
Também o que sai directamente dos bolsos dos cidadãos é demasiado (28%), bem
mais que a média dos outros países europeus (18%).
Com o falso argumento do gasto
excessivo e da ineficácia, os sucessivos governos PS, PSD e CDS, levaram a cabo
encerramentos e fusões (como a desastrosa fusão dos dois grandes hospitais de
Coimbra), fragmentação de serviços e equipas, destruição das carreiras com
baixa de salários e mais horas de trabalho, fim do regime de dedicação
exclusiva.
Procedeu-se à entrega de
hospitais às Misericórdias, à introdução de taxas «moderadoras» e exportação de
doentes para a grande privada, «exteriorização» de áreas assistenciais e
logísticas para empresas intermediárias, gestão de grandes unidades
hospitalares em parcerias público-privadas (PPP), e tudo o mais que tem
contribuído para o doloso declínio do SNS.
Com o fim dos governos amigos
da troika parou-se o pior mas não se reverteu o sentido, e faltam
médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, equipamento, segurança, estímulo.
Muitos, exaustos e desanimados, fogem para a privada ou emigram.
Quando, em 2012, eu e outro
especialista do Serviço nos reformámos do SNS, mais de quatro anos se passaram
sem sermos substituídos. Os cinco especialistas restantes foram obrigados a um
esforço sobre-humano para aguentarem o barco, com menos descanso, menos
formação e menos salário.
Infelizmente, estes factos não
representam exemplos isolados, antes definem uma política generalizada de
estrangulamento e desnatamento do SNS, da responsabilidade de alguns que aqui
estão presentes. Na realidade, nem esta nem outras gravosas situações foram
criadas pela Lei de Bases de 1990 que, por má que seja – e é –, não obrigou a
tudo o que de mal foi feito por decisões políticas complementares.
Ver importantes áreas do país sem
a cobertura assistencial de especialidades que já tiveram, populações
revoltadas com o encerramento de extensões e Centros de Saúde, médicos a
saltitarem de Trás-os-Montes ao Algarve, de Coimbra à Madeira, do Porto a
Cantanhede, da «pública» para a «privada», com urgências e consultas
asseguradas por empresas de trabalho temporário assentes em mão-de-obra barata
e paga à tarefa, assume o sabor amargo de um regresso ao triste passado das
«Caixas» atrás descrito.
Quando se discute a nova Lei de
Bases da Saúde, e se repetem os argumentos dos que ajudaram a emagrecer e
degradar o SNS a favor de um sector privado, procurando reduzir o Estado ao
papel de mero financiador, torna-se necessário voltar ao espírito da época
fundadora do SNS, quando se queria construir um país mais solidário e justo.
Precisamos de um SNS prestador
universal, geral e gratuito, sem taxas moderadoras e devidamente financiado.
Um SNS com uma gestão democrática
e participação activa dos seus profissionais, remunerações dignas e carreiras
profissionais estáveis que estimulem a fixação e dedicação exclusiva, sem PPP
nem administração privada das suas unidades.
Um SNS que tenha como prioridade
a prevenção e o tratamento de doentes, a formação e o ensino, e não o lucro
virtual conseguido com números criativos.
Um SNS que apenas contrate com o
sector social e privado o que transitoriamente ainda não possa garantir,
investindo para o fazer no futuro mais próximo, assegurando a expansão da
prestação de cuidados primários, continuados e paliativos, que torne fácil e
organizado o seu acesso e a sua harmónica ligação com cuidados hospitalares
diferenciados e de qualidade.
É isso que o país necessita.
Lisboa, 29 de Março de 2019
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