Entre Bruxelas e Londres não
houve negociações, houve imposições unilaterais engendradas para que as
consequências da saída fossem avassaladoras para a população britânica.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Brexit ou a saga da saída do
Reino Unido da União Europeia é um episódio claro, e muito sério, de como é
tratada a democracia, ou o que dela resta, no Ocidente que se afirma como fiel
depositário dos direitos humanos e dos valores civilizacionais. A uma decisão
límpida e democrática, como a assumida pelos britânicos no referendo sobre a
permanência ou não na União Europeia, seguiu-se uma enxurrada de manobras,
chantagens, humilhações, golpes sujos e baixos – sempre desprezando os cidadãos
– para tentar reverter a decisão da consulta ou, pelo menos, tornar as suas
consequências exemplares para qualquer país que deseje seguir pelo mesmo
caminho.
Boris Johnson tem as costas
largas. Acompanhando a cobertura mediática dominante dir-se-á que foi com o seu
aparecimento em cena que o processo entrou num turbilhão de acontecimentos onde
se perdem as referências quanto à sua origem e legitimidade. É interessante
notar que, a propósito de Johnson, raramente se sublinha o facto realmente mais
controverso: o modo como essa personagem saída da reforçada componente fascista
do neoliberalismo chegou a chefe do governo de Londres.
Na verdade, na sempre tão
elogiada «mais antiga democracia parlamentar» é possível que um
primeiro-ministro seja apurado numas eleições «primárias» intercalares de um
partido sem que seja devolvida a voz ao povo, apesar de a situação geral no
país ter sofrido um verdadeiro terramoto desde as anteriores eleições gerais.
Mais inusitado ainda: quando, finalmente, voltou a falar-se na necessidade de
chamar o povo a votos a ideia partiu de quem antes não desejava eleições gerais
– Johnson – e foi contrariada pelos que tinham passado as últimas semanas a
pedi-las. Se algum leitor ou leitora encontrar a bússola da democracia em todo
este imbróglio fique ciente de que é alguém com uma invulgar capacidade para
encontrar agulha em palheiro.
A trama expõe um enxovalho da
democracia, apenas mais um e nem sequer o mais rocambolesco e antidemocrático
do processo de Brexit.
Estratégia de Calimero
Desde que Boris Johnson entrou em
cena o desfecho do Brexit estreitou-se para uma dicotomia elementar: saída sem
acordo – a preferida do primeiro-ministro britânico em funções; ou saída
renegociada garantida por um adiamento para lá da data fatal: 31 de Outubro. No
universo político parlamentar britânico esta segunda vertente contou com o
apoio oportunista dos activistas anti-Brexit, esperando tirar partido de um
ainda maior enovelamento do processo provocado por uma hipotética reentrada em
campo das instituições não eleitas da União Europeia. No horizonte têm sempre a
esperança de uma brecha para poderem invalidar a vontade popular.
A dicotomia é elementar mas
completamente falsa. E todos sabiam disso em Londres antes de a formularem,
porque muito dificilmente a componente autocrática e determinante da União
Europeia aceitaria novas negociações. Já adiara uma vez a data do Brexit, não
iria fazê-lo de novo. Coisa que, do outro lado do Canal, Macron se apressou a
confirmar.
Por linhas tortas, Johnson ficou
com a razão do seu lado ao cabo das mais recentes convulsões internas
britânicas: propôs que o melhor seria convocar eleições. Não por ser um
democrata, mas porque lhe convém para se manter no lugar, apostando o tudo ou nada
numa vaga de fundo nacionalista recorrendo à estratégia de Calimero1 –
a da vitimização e do injustiçado. Meios não lhe faltam: mediáticos e
financeiros, uma vez que se tornou claro o alinhamento da City londrina
com a componente fascista do neoliberalismo. Mais constrangedor para a
democracia é o facto de até a direcção trabalhista de Jeremy Corbin, defensora
de eleições gerais, ter dado o dito por não dito vendo-se enredada numa
amálgama onde pontificam os mais descarados manobrismos políticos.
Apostar na convocação de eleições
– e sua rejeição pelos adversários - foi também uma maneira que Johnson
encontrou para que o impasse se arraste sem outra escapatória até 31 de Outubro,
a da saída não negociada. É certo que existe um «acordo» de Brexit, imposto
violentamente pelas estruturas não eleitas da União Europeia ao governo de
Theresa May. O tal «acordo» que desencoraja qualquer país de se embrenhar num
processo de saída, por muito que o povo o deseje.
De qualquer modo, depois de 31 de
Outubro o governo de Londres é livre de aplicar o «acordo» estipulado por
Bruxelas ou de fazer vingar a opção não negociada. Johnson optará então por
esta, no caso de ser ainda primeiro-ministro. O que poderá acontecer – para já
conseguiu margem de manobra com mais um enxovalho da democracia: a suspensão do
Parlamento no país habitualmente reconhecido como o farol da democracia
parlamentar. E a rainha, que dizem não servir para nada, pelo menos para isto
serviu, como em qualquer monarquia absoluta.
A mão de Bruxelas
A actual fase britânica do
processo nasceu do fracasso total do governo May decorrente da humilhação
absoluta perante Bruxelas a que aceitou submeter-se.
A atitude dos órgãos não-eleitos da
União Europeia perante os resultados do referendo democrático no Reino Unido
foi a de os subverterem e virar as consequências contra quem tomou a decisão.
Uma lição para ficar sempre presente, uma jurisprudência capaz de inibir
qualquer tentação de retirada. Pois se uma das grandes potências da União foi
tratada desta maneira o que estaria reservado a qualquer outro Estado membro
sem o mesmo estatuto?
Entre Bruxelas e Londres não
houve negociações, houve imposições unilaterais engendradas para que as
consequências da saída fossem avassaladoras para a população britânica. May foi
consumida pelo enredo de humilhações e abriu caminho para o florescimento das
tendências populistas, alimentadas pelos meios políticos e financeiros a quem
são úteis. Este quadro fez degenerar o próprio conceito de Brexit, agora
propagandisticamente associado a um movimento nacionalista e populista que não
foi, de facto, o mais determinante nos resultados do referendo.
A mão de Bruxelas limitou-se a
espalhar ordens e a alimentar as discórdias latentes em Londres, dando gás aos
que pretendiam reverter os resultados do referendo ou promover uma segunda
consulta. Dentro do espírito de fazer pagar ao povo a ousadia da decisão que
assumiu.
Bruxelas, para que conste
enquanto a manipulação da história não consegue iludir totalmente a realidade,
foi a origem de todo o imbróglio do Brexit ao rejeitar e subverter os
resultados do referendo britânico, ou seja, a vontade popular.
Este foi, até ao momento, o maior
dos enxovalhos da democracia no folhetim do Brexit.
A origem nua e crua do Brexit
O povo britânico, como pode
acontecer com qualquer outro da União a quem seja dada a oportunidade de
manifestar opinião, teve razões para votar como votou.
É isso que pretende esconder-se
através da exploração mediática e institucional das convulsões políticas e das
contradições tácticas entre as elites político-financeiras.
A maior mistificação em torno da
saída britânica da União Europeia é a de que corresponde aos interesses dos
ricos da sociedade, assimilados na figura da City de Londres.
Ora os ricos não ganham eleições,
não obtêm maiorias em referendos se estiverem unicamente os seus interesses em
jogo.
A maioria do referendo britânico
não foi construída por comportamentos diletantes de castas, mas sim por razões
antagónicas: os sectores menos favorecidos do Reino Unido sabem que as suas
condições sociais difíceis, em muitos casos degradantes, resultam das políticas
gerais emanadas de Bruxelas. Os eleitores votaram contra a austeridade, o
aprofundamento das desigualdades, a deterioração das condições laborais, a
precariedade e outras imagens de marca da União Europeia.
No caso britânico, o início da
degradação das condições de vida e do aumento avassalador da pobreza coincidiu
com a entrada na Comunidade Económica Europeia e o início dos consulados
ultra-liberais de Margaret Thatcher, ocorrências que destruíram o Estado social
britânico.
Margaret Thatcher, é importante
lembrá-lo, foi uma dirigente fundamental na neoliberalização absoluta da
Comunidade Económica Europeia e nas incidências que conduziram ao Tratado de
Maastricht e à aplicação pura e dura das doutrinas económicas que formataram a
actual União Europeia.
Os britânicos são dos povos que
mais estão em condições de identificar a degeneração das suas condições de vida
com a convergência entre o neoliberalismo e a pertença à União Europeia. O
aumento avassalador da pobreza, a deterioração das condições de habitação, a
degeneração dos serviços públicos básicos, incluindo saúde e educação,
determinaram o resultado do referendo desfavorável à União Europeia. Acontece
que, na fase actual de luta entre as correntes fascistas e globalistas pela
sobrevivência do capitalismo neoliberal, os cavalheiros da City apostaram no
Brexit.
Ora as coincidências de voto não
determinam identificações de interesses. Essa é outra mistificação utilizada
para tornar ainda mais inextrincável o imbróglio do Brexit. O que determinou os
resultados do referendo foi a vida difícil da generalidade dos cidadãos, não os
caprichos dos especuladores. E se a guerra entre castas financeiras é exposta,
no fundo, como a razão de ser do Brexit, esse é outro dos enxovalhos da
democracia.
O referendo britânico foi uma
contundente derrota da União Europeia. É isso que Bruxelas está incapaz de
aceitar e cuja repetição tentará impedir através de todos os meios,
preferencialmente não-democráticos.
É isto que está em jogo no
Brexit: a União Europeia confrontada com a revolta popular perante as suas
políticas. O resto, Johnson, golpes políticos baixos, chantagens sobre
deputados, até a suspensão do Parlamento considerado o ex-libris da «democracia
parlamentar» são subprodutos dessa situação primordial.
Não existe, de facto,
compatibilidade entre a União Europeia e o funcionamento pleno dos mecanismos
democráticos. Daí os enxovalhos da democracia de que a novela do Brexit é uma
manifestação.
**********
1.Calimero é um
personagem infantil de animação televisiva, de origem italo-japonesa. Em
Portugal passou na RTP e foi muito popular, dos anos 70 aos 90. Calimero nasceu
um pintainho preto de uma família de galináceos amarelos e vive em permanente
consciência da sua condição de vítima de adversidades, retratada na sua frase
preferida: «É uma injustiça!». Por «síndroma de Calimero», ou «estratégia de Calimero», define-se
um estado de lamentação permanente de alguns indivíduos.
Foto: Europarlamento
Sem comentários:
Enviar um comentário