Por trás da brutal repressão no
Equador e no Chile, o desespero: crise de 2008 escancarou modelo insustentável,
calcado nas desigualdades. Agonizante, busca sobrevida no autoritarismo.
América Latina será o início da insurgência?
Almir Felitte | Outras Palavras | Imagem: Caio
Gomez
Na última década, o mundo inteiro
parece ter entrado em um momento conturbado de sua história. Desde a grande
Crise de 2008, instabilidades políticas e económicas vêm tomando conta de uma
série de países, de potências do centro global a nações mais periféricas,
causando convulsões sociais que, por vezes, parecem prenunciar um novo momento
revolucionário mundial.
E a Crise de 2008 não foi, aqui,
citada à toa. O choque económico, que se sente até hoje, para muitos, foi um
verdadeiro divisor de águas em nossa história, colocando em xeque todo o
ideário liberal político-económico. Autores como Wolfgang Streeck, por exemplo,
chegam a colocar a Crise como o marco temporal do derradeiro divórcio entre o
capitalismo liberal e a própria democracia. As cenas de repressão policial a
manifestações contra a agenda liberal ao redor do globo parecem corroborar bem
com essa tese.
Porém, toda essa resposta
violenta e autoritária de uma ordem liberal capenga contra o povo nos coloca
uma pergunta: em algum momento da história o pensamento liberal e a ideia de
expansão democrática realmente caminharam lado a lado?
No livro Liberalismo e
Democracia, analisando a construção histórica destes dois conceitos, Norberto
Bobbio já introduz uma premissa que vai acompanhar o restante de sua obra:
“Um Estado liberal não é
necessariamente democrático: ao contrário, realiza-se historicamente em
sociedades nas quais a participação no governo é bastante restrita, limitada às
classes possuidoras. Um governo democrático não dá vida necessariamente a um
Estado liberal: ao contrário, o Estado liberal clássico foi posto em crise pelo
progressivo processo de democratização produzido pela gradual ampliação do
sufrágio até o sufrágio universal”.
De fato, a tese de Bobbio fica
mais clara quando analisamos o discurso de célebres e históricos liberais, como
Benjamin Constant que, em 1818, proferiu um discurso no Ateneu Real de Paris em
que diferia a “liberdade dos antigos”, pautada na distribuição do poder
político entre todos os cidadãos, da “liberdade dos modernos”, baseada na
segurança das fruições privadas. Constant teria concluído: “Não podemos mais
usufruir da liberdade dos antigos, que era constituída pela participação ativa
e constante no poder coletivo. A nossa liberdade deve, ao contrário, ser
constituída pela fruição pacífica da independência privada”.
À época, com a ideia de que os
direitos individuais eram verdadeiros direitos naturais do homem, o pensamento
liberal conceituava a liberdade como uma espécie de antítese do poder. Ou seja,
a fundação do Estado de Direito Liberal tinha como base, não só a
constitucionalização desses direitos individuais (vistos como naturais), mas
também a limitação ao poder do Estado de interferir nesses direitos e
liberdades. Casava-se, assim, com a ideia de Adam Smith de que os poderes do
Estado deviam limitar-se à defesa contra inimigos externos e a proteção de todo
indivíduo das ofensas que este poderia sofrer de outro indivíduo.
Desse modo, a partir desse
conceito de liberdade altamente ligado ao laissez faire, o pensamento
liberal convencionou trabalhar com a ideia de um Estado mínimo, visto como um
mal necessário que deve ter suas funções sempre limitadas, sob o risco de que o
aumento de seu poder ameace as liberdades e os direitos naturais dos homens.
Porém, não era só o poder de um “soberano” que era visto pelos liberais como
uma ameaça.
Bobbio conceitua que o
igualitarismo típico dos democratas é uma espécie de antítese ao conceito de
igualdade liberal. Para o autor, o conceito liberal de igualdade limita-se às
ideias de igualdade perante a lei e de direitos, prevendo a “equalização dos pontos
de partida, mas não dos pontos de chegada”, ao contrário do ideal democrata,
preocupado com a equalização económica.
Numa sociedade marcada por uma
série de estruturas de opressão como a nossa, estratificada em classes, raças,
géneros e regionalismos, é de se esperar que um conceito de igualdade tão pobre
como o liberal acabasse por ter resultados de desigualdade extrema altamente
antidemocráticos. Desigualdade essa, aliás, que é bem demonstrada pelos estudos
de Piketty, (tanto em sua obra O Capital no Século XXI, quanto em sua
plataforma de pesquisa Wealth and Income Database), os quais mostram uma
curva de desigualdade que atinge picos, justamente, no pré-Crise Liberal dos
anos 20 e após a onda neoliberal dos anos 70.
Mesmo com a evolução do pensamento
liberal, abandonando as ideias de direito natural para abraçar a visão chamada
utilitarista, na qual o legislador deveria emanar leis que buscassem a
felicidade do maior número possível de cidadãos, os conceitos liberais de
igualdade e liberdade ainda continuaram a ser bem questionáveis aos olhos de
democratas.
É através dessa visão, por
exemplo, que Stuart Mill, ainda que propondo a expansão do sufrágio, sugere que
o direito de voto se limite àqueles que pagam algum imposto (excluindo
miseráveis), bem como propõe o chamado “voto plural”, segundo o qual os votos
de pessoas tidas como “mais instruídas” poderiam ter maior peso eleitoral do
que as “menos instruídas”. Além disso, o próprio conceito de liberdade, para
Mill, é reduzido a “sociedades civilizadas”, sendo que, para ele, “o despotismo
é uma forma legítima de governo quando se está na presença de bárbaros, desde
que o fim seja o progresso deles e os meios sejam adequados para sua efetiva
obtenção”.
Mas é a partir do advento dos
ideais socialistas e, por consequência, dos partidos socialistas, que
liberalismo e democracia passam a tomar caminhos mais separados. Isso porque,
para Bobbio, os democratas mais radicais acabam por se aliar aos movimentos e
agremiações socialistas, com uma forte visão de buscar a igualdade de fato e a
liberdade não só como meio, mas como “substância”, contrapondo-se à mera
igualdade do ponto de partida e à liberdade como meio, ambas típicas dos
liberais.
É nesse momento que o conceito de
Estado Social passa a ganhar mais força, com direitos sociais sendo
constitucionalizados com o mesmo ímpeto de proteção que os direitos individuais
tradicionalmente liberais, formando o conceito dos Estados Social-Liberais de
Direito.
Para Bobbio “não há dúvida de que
a emergência e a difusão das doutrinas e dos movimentos socialistas, bem como a
correspondente e explicitamente declarada aliança desses movimentos com os
partidos democráticos, reabriram o contraste histórico entre liberalismo e
democracia, exatamente no momento em que, caminhando os países mais avançados
rumo ao sufrágio universal, parecia que entre liberalismo e democracia teria
havido uma conciliação histórica definitiva”.
O autor ainda conclui:
“Precisamente na reação contra o presumido avanço do socialismo, com seu
programa geral de economia planificada e de coletivização dos meios de
produção, a doutrina liberal foi cada vez mais se concentrando na defesa da
economia de mercado e da liberdade de iniciativa económica (bem como da
correspondente tutela da propriedade privada)”.
Em outras palavras, as conquistas
do socialismo dentro do próprio Estado de Direito, ainda que sem subverter
totalmente o sistema capitalista, acabaram por afastar ainda mais o pensamento
liberal do pensamento democrático, vez que a expansão dos valores democráticos,
como a maior participação popular, acabou por ameaçar os valores liberais e a
proteção destes pelo Estado de Direito. Desse modo, o pensamento liberal passou
a se preocupar mais com seus interesses económicos do que com valores políticos
democráticos, vez que havia certo antagonismo entre ambos.
É dessa separação entre os
valores políticos e os valores econômicos que viria a se desenvolver o que,
hoje, se convém chamar de neoliberalismo, para Bobbio, uma defesa intransigente
da liberdade económica para a qual a liberdade política nem sempre é necessária.
E, ora, convenhamos, não faltam
experiências políticas no mundo que corroborem para essa tese. O que dizer, por
exemplo, das ditaduras militares da América do Sul, com exceção da brasileira,
todas altamente influenciadas pelos ideais neoliberais, tendo como grande
expoente o sanguinário ditador chileno Pinochet? Do mesmo modo, neste momento
que, para alguns, pode estar marcando o fim da ordem liberal, vemos medidas
desesperadas, violentas e autoritárias em defesa do liberalismo económico em
países como Equador, Chile, França, Hungria e Brasil.
Com todos os recentes
acontecimentos, não é de se jogar fora a tese de que a ordem liberal realmente
tenha chegado a seu fim. E, analisando historicamente a construção do
pensamento liberal, sempre em conflito com os princípios igualitários
tipicamente democráticos, bem como o estremecimento de sua relação com a
democracia a partir das conquistas do socialismo no próprio Estado de Direito,
é de se perguntar: seria o socialismo a natural evolução da democracia?
Talvez o século 21 e a América do
Sul sejam a hora e o lugar propícios para falarmos sobre isso.
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