sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

As duas faces do processo contra Trump


Seria ótimo derrubar proto-fascista instalado no posto de maior poder do planeta. Porém, ação aberta ontem pode ser atalho para frear a avanço da esquerda e recompor o casamento do Partido Democrata com a plutocracia americana

Paul Street | Outras Palavras

O processo de impeachment contra Donald J. Trump está aberto. O que fazer dele? É difícil não gostar de ver o Perverso contorcer-se e atacar como uma fera ferida. Não há humilhação pública suficiente para essa caricatura patética de ser humano, esse ser racista, sexista, ecocida e fascista que coloca o mundo em risco com sua presença no cargo mais poderoso. O regime racista, sexista, xenófobo e plutocrático de Trump causou grandes danos às regras básicas democráticas e humanas, à decência civilizacional, à justiça social e perspectivas de um futuro decente. Tudo isso torna impossível a qualquer pessoa de esquerda ou progressista que se preze não querer vê-lo cair em desgraça e ser removido do poder. O regime Trump-Pence deve ser forçado a deixar o cargo o mais rápido possível.

Mas como, por que razões, e com que tipo de visão do futuro? O impeachment requer dois terços do Senado, majoritariamente republicano. As chances de remoção são baixas. E ela teria de ser precedida ou seguida da remoção do vice-presidente Mike Pence, um fascista cristão que está programado para ascender à Casa Branca depois da saída de Trump, segundo as regras da Constituição dos EUA.

A melhor maneira de remover Trump não é meramente através de procedimentos projetados por uma elite de ricos proprietários de escravos do século XVIII, negociantes capitalistas e publicitários para quem a democracia era o maior pesadelo. É através de uma rebelião de massa, sustentada por aquilo que a classe dominante norte-americana mais teme: Nós, o Povo, a maioria trabalhadora. Deveríamos nos mobilizar para derrubar esse regime da mesma maneira que o povo de Porto Rico expulsou seu governador corrupto e racista, Ricky Rosello; da mesma forma que o povo de Hong Kong obteve a revogação de uma lei de extradição autoritária e as massas da Argélia derrubaram um regime autoritário no ano passado.

Não podemos deixar que o espetáculo do impeachment mantenha milhões sentados diante de telas brilhantes para saber como o desastroso sistema bipartidário dos EUA, a mídia corporativa e uma Constituição ultrapassada “trabalham” pela democracia e pelo bem comum. Eles não fazem tal coisa.


As eleições presidenciais a cada quatro anos, centradas em candidatos muito ricos e na grande mídia, alimenta uma desmobilização de massa fatal. O carnaval do impeachment poderia ser até pior para manter as pessoas fora das ruas, coladas na tevê e apegadas à falsa crença de que podemos construir um futuro decente sem mobilizar e organizar o que Martin Luther King identificou corretamente como o “verdadeiro problema a ser enfrentado” – “a reconstrução radical da própria sociedade”.

Trata-se de uma sociedade à beira de uma catástrofe ambiental irreversível e da conquista autoritária final, graças à desigualdade selvagem do capitalismo de Estado, tão extrema que os três norte-americanos mais ricos possuem fortuna maior do que os recursos da metade da população do país.

Impeachment apenas pelo UcrâniaGate? Pelo fato de Trump usar o apoio militar norte-americano para chantagear um governo estrangeiro e desenterrar sujeiras daquele que ele imagina ser seu próximo concorrente à presidência, o magnata de direita Joe Biden? A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, parece querer fazer desta a única causa para impeachment, porque o UcrâniaGate parece fácil de entender, ao contrário do RussiaGate. Mas os republicanos e a máquina barulhenta da direita irão assegurar que não será simples assim. Contra-atacarão com teorias da conspiração sobre Biden e seu filho, e-mails de Hillary e o Dossiê Steele, etc. Limitar o escopo do impeachment ao UcrâniaGate é um mascaramento. Um site ativista fornece a seguinte lista assustadora de ofensas pelas quais Trump merece um impeachment: violação à Constituição sobre emolumentos domésticos; violação à Constituição sobre emolumentos estrangeiros; incitamento à violência; interferência nos direitos de voto; discriminação com base em religião; guerra ilegal; ameaça ilegal de guerra nuclear; abuso do poder de perdão; obstrução de justiça; politização da justiça; conspiração contra os EUA junto a um governo estrangeiro; fracasso na razoável preparação de resposta aos furacões Harvey e Maria; separação de crianças e bebês das famílias; tentativa de influenciar ilegalmente uma eleição; fraude fiscal e declaração pública falsa; ataque à liberdade de imprensa; apoio a um golpe na Venezuela; declaração inconstitucional de emergência; instrução à patrulha de fronteira para violar as leis; recusa a cumprir intimações; declaração de emergência sem fundamento para violar o desejo do Congresso; proliferação ilegal de tecnologia nuclear; remoção ilegal dos Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário.

Todas essas são questões legítimas para impeachment e remoção do cargo. Eu acrescentaria uma: a aceleração criminosa do Ecocídio, a maior questão do nosso e de qualquer tempo. Trump violou descaradamente seu juramento de servir ao Bem-Estar Geral, fazendo todo o possível para transformar o mundo o mais rápido possível numa gigantesca Câmara de Gases do Efeito Estufa.

Medhi Hasan, no site Intercept, levanta uma excelente questão, sugerindo como o impeachment de uma nota só “pode acabar em derrota”. Ele explica:

“Esperar tanto tempo para impedir, apenas por sua interação com o presidente da Ucrânia, um presidente imprudente, descumpridor da lei, racista e que evade impostos seria como a Câmara democrata dar efetivamente a Trump um atestado de saúde em tudo o mais … Esses democratas acham que o público é idiota? Poucos contestariam a singularidade ou seriedade dessas revelações sobre a Ucrânia. Mas estão de fato dizendo que ‘todo mundo entende’ o toma-lá-dá-cá de Trump com o presidente de um país estrangeiro e os detalhes do caso específico que envolve Hunter Biden, mas não o pagamento ilegal e secreto de dinheiro a uma estrela pornô? Todo o comportamento corrupto exposto diante de seus olhos? As ações descaradas em benefício próprio? Leia qualquer pesquisa. A maioria dos norte-americanos concorda com os 1.000 ex-promotores federais, para os quais o presidente obstruiu a justiça. Também não acredita que o relatório Mueller tenha inocentado Trump. A maioria ainda concorda que Trump é um racista e um mentiroso, e que a corrupção aumentou sob seu governo. Trump é um presidente historicamente impopular e antipatizado – e por várias razões. ”

Nunca se deve esquecer da crítica de Noam Chomsky, sobre impeachment de fato e a renúncia de Richard Nixon: Watergate tratava da quebra das regras da classe dominante por Nixon ao assaltar desnecessariamente a sede das candidaturas do outro grande partido imperial. As audiências de Watergate omitiram os bombardeios assassinos em massa de Nixon e Kissinger no Camboja, Laos e Vietnã, o apoio criminoso de Nixon e Kissinger a um golpe fascista no Chile e a cruel repressão do Estado policial de Nixon aos movimentos antirracistas e contra a guerra. Os maiores crimes de Nixon não foram ventilados e permaneceram impunes. Não é apenas que Nancy Pelosi deseje afastar Trump por apenas uma de suas muitas ofensas. É também o enquadramento profundamente conservador e imperial do crime de Trump, segundo ela e seus colegas democratas corporativos-imperiais: pôr em risco a assim denominada segurança nacional dos Estados Unidos ao introduzir desajeitadamente o seu próprio interesse político na tarefa, supostamente nobre, de “defender” os Estados Unidos e o Ocidente ao armar o regime de direita da Ucrânia, repleto de elementos neofascistas escandalosos e desonestos.

Há muito os Estados Unidos usam assistência militar e econômica para praticar extorsão e suborno de outros países. “Faça o que dizemos”, diz a mensagem mafiosa, “ou o tio Sam o elimina”. Isso sempre foi praticado pelos democratas e não menos que pelos republicanos. Em janeiro de 2018, o então vice-presidente (de Barack Obana) Joe Biden gabou-se ao Conselho de Relações Exteriores por ter, como vice-presidente dos EUA, suspendido o empréstimo de US $ 1 bilhão à Ucrânia até que o país concordasse em demitir um promotor que os europeus, juntamento com o Fundo Monetário Internacional e Washington, consideravam corrupto (isto é, contrário dos interesses neoliberais).

Trump não está encrencado por coagir a Ucrânia: os Estados Unidos intimidam e pressionam nações mais fracas o tempo todo. Trump não caiu em desgraça porque introduziu tão obviamente seus próprios interesses políticos na coerção costumeira. Suborno e extorsão, armas padrão da política imperial dos EUA, não devem ser usados para autopromoção política e para estimular influência estrangeira nas eleições dos EUA. A política externa dos EUA tem a ver com o domínio burguês e imperial, e não com um avanço pessoal neofeudal ou fascista.

Mas mesmo se seu escopo fosse ampliado, o impeachment não representaria uma revolta popular contra as estruturas de opressão do nosso tempo, que agora colocam uma grave ameaça existencial à sobrevivência humana (observe como a história do impeachment derrubou completamente, do circuito da mídia, a questão ambiental levantada pela gigantesca Greve Global pelo Clima). Muito pelo contrário: é um processo de elite projetado pelos “pais fundadores“ dos EUA – proprietários de escravos que consideravam a política uma reserva especial dos proprietários, não da “ralé”.

Nós, do lado de fora da porteira, queremos colocar a “multidão” em massa nas ruas para enfrentar não apenas Trump e Pence, mas também o sistema bipartidário mais amplo, do qual o regime de Trump e o trumpismo são parte e sintoma. Trump é detestável, claro. Mas também o fascista cristão Pence e o sistema bipartidário de dominação de classe e imperial que propicia o crescimento de forças monstruosas brancas-nacionalistas. Os democratas, descritos com precisão por Upton Sinclair em 1904 como uma das “duas asas da mesma ave de rapina”, não são anjos. Observe este relato da rede de negócios corporativos CNBC:

“Os doadores democratas de Wall Street advertem o partido: ‘Iremos cair fora, ou apoiar Trump, se vocês designarem Elizabeth Warren candidata. Em entrevistas recentes com vários doadores democratas muito ricos e arrecadadores de fundos entre empresários, a CNBC descobriu que essa opinião está se generalizando, à medida em que Elisabeth Warren cresce contra Joe Biden. Os doadores de Wall Street e das grandes corporações estão preparados para sair da campanha de arrecadação de fundos para a campanha presidencial – ou até mesmo para apoiar o presidente Donald Trump – se a senadora Elizabeth Warren vencer a disputa interna do partido’. ‘Quero ajudar o partido, mas ela vai me prejudicar, então vou ajudar o presidente Trump’ “, disse um executivo-sênior do mercado financeiro, que falou sob condição de anonimato com medo de retaliação.

Leia novamente esse relato e pense bem nele: “vários” financiadores de eleições do Partido Democrata estão com o neofascista Trump não só contra Bernie Sanders, mas até mesmo contra a autodeclarada “capitalista” e democrata de centro-esquerda Elizabeth Warren!

Ao mesmo tempo, não se deve permitir que o impeachment espalhe ou reforce a lealdade popular a uma Constituição ultrapassada e autoritária criada por ricos proprietários de escravos, negociantes capitalistas, advogados e publicistas de elite para quem a soberania popular era um anátema. Sob esse documento, antigo e propositalmente antidemocrático, “Nós, o Povo” nem sequer elegemos o presidente dos Estados Unidos por meio de uma votação popular majoritária direta. Nossa palavra sobre quem ocupa o posto mais poderoso do mundo está restrita a dois minutos uma vez a cada quatro anos. É quando os cidadãos altamente suspeitos fazem marcas ao lado dos nomes que foram geralmente selecionados com antecedência pelos poucos ricos. A Constituição dos EUA, profundamente conservadora, requer dois terços de maioria do Senado para remover o presidente depois do impeachment do Congresso. Essa é uma barreira extremamente alta, e por isso nenhum presidente jamais foi removido através da cláusula de impeachment (Nixon, abertamente criminoso, teria sido, se não renunciasse antes). Também por isso, é muito difícil imaginar o atual Senado (dominado pelo Partido Republicano, xenófobo e branco) removendo o Trump antes que ele seja exibido na TV comendo crianças imigrantes vivas.

Alterar a Constituição é propositadamente muito difícil, sem guerra ou revolução (já passou muito tempo desta última). Este texto antigo e autoritário não merece mais legitimação do que o sistema capitalista e imperial norte-americano, que há muito protege quem o ajudou a incubar.

Não se pode permitir que o impeachment se torne aquilo que o grupo de esquerda Recuse o Fascismo (RF) chama corretamente de “um outro meio pelo qual os milhões que odeiam o que está acontecendo sejam sugados para outro jogo de espera, à medida em que o regime Trump/Pence aterroriza mais gente”. O RF está certo: “não será possível nenhuma visão de futuro positivo para a humanidade enquanto esse regime permanecer no poder. Esperar até 2020 é inadmissível. Protestos não violentos e contínuos precisam ser organizados e iniciados o mais rápido possível.”

Aqui é importante notar que o impeachment é um mobilizador para a massa horrenda e armada dos nacionalistas brancos Amerikaners. É também um grande incentivo para o próprio Trump fazer algo asqueroso: iniciar uma guerra com o Irã, invadir a Venezuela, inventar uma nova ameaça terrorista, estimular alguém de seu exército de sniperes racistas e/ou flertar com “fogo e fúria” termonucleares. Devemos todos ficar de olho em como esse monstro pode se comportar. Ele está enlouquecido e ferido, mas tem cartas horríveis em seu baralho diabólico.

Sentar e esperar que os senhores e sua santa Constituição consertem as coisas é um grande erro. Precisamos urgentemente mobilizar o povo para derrubar esse regime neofascista e o terrível sistema capitalista e imperial que o originou.

Antes do “escândalo da Ucrânia” estourar, pensei que poderia chegar um momento muito esperado de mobilização em massa, se Trump se recusasse a sair depois de ser derrotado nas eleições de 2020. Agora, acho que talvez possa ocorrer o mesmo se o líder do Senado, Mitch McConnell recusar-se a abrir um julgamento contra Trump, depois da Câmara abrir o impeachment. Se Mitch estava disposto a encerrar uma audiência sobre uma nomeação de Obama à Suprema Corte, ele certamente tentará evitar o julgamento de Donald Trump no Senado, após a decisão da Câmara.

Mas não se trata de bola de cristal ou de esperar que as elites se mexam. A hora é agora para organizar e agir contra esse regime e o sistema letal que o produziu. Na ausência de pressão mobilizada de baixo, as maquinações das elites manterão as coisas como estão, com consequências desastrosas.

Chore pelo que os senhores fizeram deste mundo e então organize, organize, organize. Precisamos levar a divisão atual entre ao decrepitude do país e o establishment ecocida do que quer o reinado dos investidores financeiros. Eles estão literalmente arruinando os Estados Unidos e o planeta inteiro. Somente um movimento grande e persistente, de milhões de pessoas, pode provocar a crise política real de que necessitamos.

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