Somos o que temos. Temos o que somos.
Prestes a atingir o centenário,
a Seara Nova propôs aos colaboradores desta edição, os que fizeram e
viveram a Revolução de Abril e os que sempre e só conheceram a democracia, uma
reflexão sobre os 45 anos decorridos num país em mudança num mundo acelerado.
Ao apresentar a Seara, em
Outubro de 1921, Raul Proença, numa reflexão sobre todo o século anterior, e
não apenas sobre os tempos difíceis que a República então atravessava, dizia:
“A Seara Nova não comunga no sofisma de que são os políticos os únicos culpados
da nossa situação. A verdade é que os políticos não são melhores nem piores do
que o permitem as condições gerais da mentalidade portuguesa. Todo o país tem
de aceitar a responsabilidade que lhe cabe; todo o país, e em especial a sua
élite.”
Entre 25 de Abril/1.º de Maio de
1974 (golpe militar do MFA e excelsa festa popular) e 2 de Abril de 1976
(sessão da Assembleia Constituinte em que foi aprovada pela Constituinte e
promulgada pelo Presidente Costa Gomes a Constituição da República), Portugal e
os portugueses viveram intensamente o profundo corte histórico que a revolução
democrática provocou.
Cumprido o programa que se tinham
proposto, no que respeita ao D do termo da guerra colonial e das colónias, os
militares do MFA regressaram a quartéis, num tempo e num modo por vezes
discutíveis, deixando os destinos da Pátria à democracia e aos democratas que,
com as formações partidárias que a liberdade viabilizara, trataram de pôr de pé
o país possível, levando por diante a democratização e o desenvolvimento dos DD
em falta.
A concretização desses objectivos
veio a coincidir, a partir de meados dos anos oitenta, com profundas alterações
na Europa e no Mundo. A integração do país no espaço político-económico
europeu, o crescente predomínio de um poder económico-financeiro transnacional
sobre o poder político, o desenvolvimento aparatoso das novas tecnologias, das
comunicações e dos transportes, a alteração das relações de poder entre nações
e estados, a desinquietação de populações inteiras, tudo faz de um mundo
efervescente, que encolhera, uma realidade pouco consentânea com o biorritmo de
outras eras.
É então para este outro mundo
que a nossa atávica ruralidade e as persistentes taxas de pobreza têm
de encontrar resposta, num quadro constitucional que baliza e define os
objectivos e os meios que condicionam as práticas para os atingir. Apesar das
sete revisões que já sofreu (significativas, em boa parte, da hipocrisia de uma
quase unanimidade na aprovação do seu conteúdo progressista e libertador – só o
CDS votou contra) a Constituição de 1976 mantém potencial bastante para dar
corpo às políticas necessárias à construção de um país decente, desenvolvido e
moderno, em que a dignidade das pessoas, a dignidade de todos os seus cidadãos,
seja a prioridade das prioridades.
Só a distorção, quando não a
perversão, do texto constitucional tem possibilitado a prática de políticas
que, ao longo deste anos de democracia directa, participativa, mantiveram o
país longe das metas para que apontavam os alvores do regime democrático. A
definição das linhas divisórias entre o público e o privado, com a privatização
obscena, quando não criminosa, em sectores estratégicos da economia e da
finança, as políticas ostensiva e concebidamente erradas, escandalosamente
ofensivas do interesse nacional, o deficiente funcionamento de sectores
decisivos, como a educação, a saúde e a justiça, o descaso da política do
território e da defesa eficaz do ambiente, o dinheiro fácil e abundante
conseguido pela via da pouca-vergonha do compadrio, do amiguismo e da partidice
– tudo chagas que fazem descrer na democracia e dão alento a manifestações
patológicas de sociedades sem norte.
Há muito a fazer para completar o
projecto de Abril, que continua ao nosso alcance. Para tanto a Seara Nova mantém
a confiança de sempre na sabedoria do nosso povo miúdo.