Em entrevista exclusiva à DW, o
Presidente de Angola fala oficialmente pela primeira vez sobre o "Luanda
Leaks". João Lourenço assegura que não se está nem se vai negociar
processos nos quais Isabel dos Santos é acusada.
O Governo de Angola não está e
nem vai negociar com a empresária Isabel dos Santos os alegados casos de
corrupção dos quais é acusada no país. A afirmação é do Presidente João
Lourenço, que falou pela primeira vez sobre o "Luanda Leaks" numa entrevista
exclusiva ao enviado especial da DW a Luanda, Adrian Kriesch.
João Lourenço lembrou ainda a
imunidade do ex-Presidente José Eduardo dos Santos e do ex-vice-presidente
Manuel Vicente para justificar o facto de ambos não estarem a sentir o peso da
Justiça angolana, mas garantiu a imparcialidade e independência dos órgãos de
Justiça em Angola.
Quanto às reformas no Estado
angolano, que incluem o combate à corrupção, o Presidente João Lourenço
afirmou: "Somos nós, do partido que sempre governou o país, que estamos a
fazer as reformas que eram absolutamente necessárias que fossem
feitas".
DW África: Há algumas semanas,
uma investigação global revelou um esquema através do qual centenas de milhões
de dólares [de recursos do Governo] foram canalizados para empresas privadas,
possivelmente por causa de conexões. Uma das principais suspeitas é Isabel dos
Santos, filha do ex-Presidente. Agora há rumores de que ela está a negociar um
acordo para devolver parte do dinheiro. Essas negociações estão a acontecer?
João Lourenço (JLo): Essas
informações são infundadas. Nós gostaríamos de deixar aqui garantias muito
claras de que não se está a negociar. Mais do que isso, não se vai negociar, na
medida em que houve tempo, houve oportunidade de o fazer. Portanto, as pessoas
envolvidas neste tipo de atos de corrupção tiveram seis meses de período de
graça para devolverem os recursos que indevidamente retiraram do país. Quem não
aproveitou esta oportunidade, todas as consequências que puderem advir daí são
apenas da sua inteira responsabilidade. Esse período de graça terminou em
dezembro de 2018. Estamos hoje em fevereiro de 2020. Portanto, pensamos ser
bastante extemporânea a possibilidade de negociação. Para além de que,
processos que estão em tribunal não são negociáveis fora do tribunal.
DW África: Os documentos
divulgados foram bastante claros. O senhor quer ver Isabel dos Santos atrás das
grades?
JLo: Eu prefiro nem
responder a isso. É uma decisão da Justiça. Eu não sou juiz.
DW África: Isabel dos Santos
disse considerar um regresso a Angola para concorrer à Presidência. O que é que
acha disto?
JLo: Nas próximas eleições,
que ainda estão bastante distantes, nenhum candidato está no direito de
escolher os seus adversários. Portanto, que apareçam os adversários que
aparecerem. Não conheço mais ninguém que, nesta altura, dois anos antes, se
tenha apresentado já como candidato. Porque, de facto, não é normal. Mas cada
um é livre de expressar os seus desejos e as suas ambições.
DW África: Muitos dos documentos
indicam que aquilo que aconteceu foi com o conhecimento, ou por vezes até
ordem, do ex-Presidente. Por exemplo, decretos presidenciais para dar terras
subvalorizadas a empresas de Isabel dos Santos. Porque não se investiga o ex-Presidente?
JLo: Tem de conhecer a nossa
legislação.
DW África: O que quer dizer com
isso?
JLo: Os antigos Presidentes
gozam de imunidade durante pelo menos cinco anos.
DW África: Mas consideraria
investigá-lo depois desse período?
JLo: Quem abre os processos
crime na Justiça não são os políticos. É a própria Justiça quem vai atrás
de possíveis crimes. Portanto, todos aqueles que estão a contas com a Justiça
que não pensem que é o poder político quem os empurrou para a Justiça. Os
políticos têm a missão de traçar políticas que deixem aos órgãos de Justiça as
mãos livres para poderem atuar dentro das suas competências. Portanto, não se
pode pensar que é o Presidente da República quem mandou para tribunal A, B ou
C. Nem teria tempo para isso. São muitos casos no país. Todos os dias, a
Justiça, os tribunais aqui em Luanda, nas províncias, julgam e em alguns casos
condenam casos de corrupção.
DW África: Mas alguns membros da
oposição dizem que o sistema de Justiça não é tão independente como está a
dizer. Dizem que é muito controlado pelo Governo. Qual é a sua resposta a isto?
JLo: Talvez fosse assim no
passado. Hoje não. Hoje eles têm absoluta liberdade. Só isso justifica o facto
de estar a haver "n” casos de julgamentos diversos, e particularmente
nesta matéria da luta contra a corrupção. Se a Justiça fosse conduzida pelo
poder político, o lógico seria o poder político proteger os seus. Proteger
ministros e outras figuras com grandes responsabilidades na sociedade e no
Governo em particular. Portanto, esta é a lógica. O que está a acontecer é
precisamente o contrário, o que significa dizer que a Justiça tem as mão livres
para atuar.
DW África: Ainda assim, pessoas
como Isabel dos Santos dizem que é uma "caça às bruxas" por ganhos
políticos. É o que a empresária afirma. Foi o que ela também disse e algumas
pessoas com quem conversei aqui em Angola também têm a sensação de que alguns
poderosos permanecem intocáveis. Um exemplo: o ex-vice-Presidente Manuel
Vicente, acusado de pagar quase um milhão de euros de suborno a um procurador
português. O senhor pessoalmente pressionou para que esse caso fosse
transferido de Portugal para Angola, onde nada aconteceu desde então. Agora
Manuel Vicente é basicamente seu conselheiro...
JLo: Ninguém pode dizer
"eu não posso ser ouvido, ser constituído arguido, porque o meu vizinho
também não foi." A Justiça não funciona assim. E se quer falar no
caso Manuel Vicente, o que aconteceu é que nós pedimos, de facto, que o
processo fosse transferido para Angola, e foi. E isso não significa absolvição.
O caso está a ser tratado pela PGR, que há dias veio a público defender que
quer o ex-Presidente da República, quer o ex-vice-presidente da República
gozam de imunidade durante os primeiros cinco anos [após o mandado]. Daí o
facto de eu ter dito há bocado que convém procurar conhecer um pouco a
legislação angolana.
DW África: Talvez não tenha
tentado, mas está a aconselhá-lo.
JLo: É falso. Eu não tenho
esse senhor como meu conselheiro. Os meus conselheiros são conhecidos. Alguém
acordou bem disposto e inventou isto. (...) Ele não é meu conselheiro para área
nenhuma. O que se diz é que é meu conselheiro para o setor dos petróleos, mas
isso é absolutamente falso. Não trabalha para mim, nem de forma remunerada, nem
de forma gratuita. E há formas de se checar isso. Portanto, quem quiser checar
tem a liberdade de o fazer. E há-de chegar à conclusão de que quem está a dizer
a verdade sou eu. Aqueles que não queriam que o processo fosse transferido de
Portugal para Angola é que inventaram esta mentira. Há quem não tivesse
gostado da posição firme que Angola tomou no sentido de solicitar a
transferência de Portugal para Angola. Mas, repito, a simples transferência de
um processo de um país para o outro não constitui absolvição. Quem absolve são
os tribunais. E que dizem se a pessoas cometeram crimes ou não
cometeram crimes.
DW África: O senhor foi
secretário-geral e ministro da Defesa também. Conheceu o ex-Presidente e
trabalhou com ele durante um bom tempo. Porque não fez essas críticas durante
aquele período?
JLo: Não, de facto eu
trabalhei debaixo da orientação do Presidente José Eduardo dos Santos. Todos
nós trabalhamos. Um Presidente que ficou quase 40 anos no poder. Ninguém pode
dizer que não fazia parte do sistema. Todos nós fizemos parte do sistema. Mas
quem está em melhores condições de corrigir o que está mal e melhorar o que
está bem são precisamente aqueles que conhecem o sistema por dentro. Isso foi
assim em todas as revoluções, se assim quisermos chamar.
Quem fez as grandes mudanças não
são pessoas de fora, são as que conhecem o sistema. Quem fez as reformas na
Rússia foram os russos; quem fez as reformas na China foram os chineses. Quem
fez as reformas em todos os países da antiga Europa do leste foram os povos e
políticos desses países. Os de fora começam por conhecer mal a realidade dos
países e dos povos. Isso é assim em todo o mundo, quem fez a Revolução dos
Cravos em Portugal foram os portugueses e aqueles que eram do regime de Marcelo
Caetano.
É evidente que as oposições
gostariam muito que fossem elas a fazer essas grandes reformas e transformações
na sociedade, mas, no caso de Angola, não é assim que está a acontecer. Somos nós,
do partido que sempre governou o país, que estamos a fazer as reformas que eram
absolutamente necessárias que fossem feitas.
DW África: Disse que
faz parte do sistema há muito tempo. Então, deve ter percebido que é um
sistema bastante corrupto e é isso que os documentos [do "Luanda
Leaks"] mostram.
JLo: Mas é precisamente pelo
facto de eu ter assistido ao longo desses anos a esses níveis de corrupção, e
por não concordar que a situação continuasse, é que hoje estamos a combater
aquilo que vimos ao longo de décadas. Talvez fosse cómodo para nós deixar que a
coisa continuasse como era antes. Mas seria correto? Seria em benefício do
povo? Hoje temos a oportunidade de mudar esse estado das coisas, pensamos
que é o momento de fazê-lo, Sabemos que é preciso muita coragem. Encontramos
alguma resistência. Preferimos lutar contra ela do que nos acomodarmos e deixar
que as coisas continuem como antes.
DW África: Algumas pessoas nos
meios de comunicação social já lhe deram as alcunha de
"exterminador" devido à sua dura postura contra a corrupção.
Gosta desta alcunha?
JLo: Não, não gosto. Eu não
estou a fazer mais do que deve ser feito, e é preciso que fique claro que os
louros do combate contra a corrupção não devem recair apenas sobre o Presidente
da República. Não seria justo que assim fosse. Os louros devem recair sobre
todas as pessoas e instituições que se encontram em posições, das mais variadas
possíveis, e que contribuem para que a luta contra a corrupção tenha sucesso,
que em muito curto espaço de tempo estamos a ver que começa a ter. Estou-me a
referir também a pessoas e a instituições que, antes de 2017, de forma muito
corajosa, apontaram o dedo a práticas muito nefastas que prejudicaram o nosso
Estado e o nosso povo de forma significativa. E até algumas pessoas foram parar
nà prisão. Estou a referir-me a grupo de ativistas, jornalistas e fazedores de
opinião que, de forma muito corajosa, enfrentaram o poder naquela altura. E o
reconhecimento da sociedade a essas pessoas e instituições já chegou. Não
podemos condecorar todos, mas, em nome dos outros, condecoramos ao menos um -
estou-me a referir a Rafael Marques.
Adrian Kriesch (Luanda) |
Deutsche Welle
Sem comentários:
Enviar um comentário