sábado, 29 de fevereiro de 2020

Portugal | O chumbo de Vitalino


Inês Cardoso | Jornal de Notícias | opinião

Deve ser humilhante, para alguém que de coração aberto confessou ter andado 40 anos a preparar-se "para ser juiz do Tribunal Constitucional", ver o Parlamento chumbar o seu nome de forma categórica.

Tão categórica que a lista, que carecia de uma maioria de dois terços para a eleição, não conseguiu sequer convencer toda a bancada do PS, o partido responsável pela proposta. São 108 os deputados socialistas, mas os nomes para o TC obtiveram apenas 93 votos favoráveis.

Vitalino Canas, conotado não apenas com José Sócrates mas também com o mundo dos negócios, recebeu neste caso um cartão vermelho que vale a pena aplaudir. Não especificamente pelas amizades passadas ou presentes de Vitalino, mas porque a importância do Tribunal Constitucional não se compadece com ligações políticas perigosas.


Trata-se de um tribunal superior, de cujas decisões não há recurso, com uma intervenção relevante em situações de conflitualidade política (como se viu durante o período de resgate financeiro) e um papel ativo na fiscalização dos partidos. Ser juiz do Tribunal Constitucional, ao contrário do que afirmou Vitalino Canas, deveria ser muito mais do que "um bocadinho diferente" de exercer funções políticas.

Em segundo lugar, porque casos graves como o que recentemente envolveu o juiz Vaz das Neves, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, minam por completo a confiança na Justiça e restaurá-la é absolutamente vital.

Há ainda uma terceira lição que o PS deve retirar. A tentação da autossuficiência paga-se caro. Há decisões demasiado importantes para não serem devidamente negociadas e houve avisos mais do que evidentes do que iria ser a votação.

Espantoso, para usar o adjetivo escolhido pela líder da bancada socialista, é reagir com ar ofendido ao funcionamento democrático do Parlamento. Espantoso, ainda recorrendo ao adjetivo de Ana Catarina Mendes, é invocar "acordos de cavalheiros" em decisões de sentido único. A palavra negociar tem mudado, e muito, no dicionário do PS.

*Diretora-adjunta

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