Familiares exigem abertura de
processos para localização, identificação e devolução dos restos mortais das
vítimas do 27 de maio em Angola, 43 anos depois, e insistem na identificação
dos responsáveis pelos assassinatos.
Não chega o projeto de
pacificação dos espíritos, um mero abraço de perdão ou ainda um memorial que
englobe todos os conflitos militares e políticos, quando os entes queridos
continuam desaparecidos. É com apreensão que os sobreviventes e familiares encaram
o processo de reconciliação e resgate da memória das vítimas dos acontecimentos
do 27 de maio de 1977 em Angola.
Dos sete pontos de um memorando
entregue ao Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, pedem a entrega dos
corpos às famílias, como conta José Fuso, um dos presos, libertado em agosto de
1979.
"Que implicaria
necessariamente a exumação dos corpos nos locais onde se encontrassem, testes
de ADN, perícias e no fim, certamente, a passagem das certidões", revela.
O sobrevivente angolano fala em nome
da plataforma 27 de Maio, que congrega um conjunto de organizações
não-governamentais, nomeadamente a Associação 27 de Maio, a Associação de
Órfãos M27 e a Associação de Sobreviventes de Familiares Desaparecidos e o
Grupo de Sobreviventes do 27 de Maio.
No memorando, pedem a libertação
dos arquivos e um pedido expresso de perdão pelos responsáveis da DISA, a
polícia política angolana, e do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA) que cometeram atentados contra os direitos humanos.
"O que estamos a discutir é
que, entre 1977 e 1980, houve três anos de repressão sangrenta. Inclusivamente,
houve pessoas que foram mortas um ano depois. E não foi suficiente que, em
2002, antes de o Presidente João Lourenço ter tomado esta posição da criação da
comissão, tinha havido também um comunicado do Bureau Político do MPLA em que
vieram dizer que tinham sido cometidos exageros, excessos de zelo dos agentes.
Ora, francamente, isso é inaceitável," dispara.
"Houve desaparecimentos
forçados. Há familiares que até hoje não receberam os corpos. Não sabemos onde
estão as pessoas. As pessoas eram levadas das cadeias e dos campos,
desapareciam. Eram enterradas em qualquer lado," acrescenta.
Edgar Francisco Valles, um dos
familiares que enviou uma carta em separado ao Governo de Angola, terá
discutido o assunto em novembro do ano passado, em Lisboa, com
o ministro angolano da Justiça e dos Direitos Humanos, Francisco
Queiroz, igualmente presidente da Comissão para Implementação do
Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas de Conflitos
Políticos.
"Nesse encontro, o meu
interlocutor prometeu-me dar a maior atenção ao teor da carta", relata.
Entrega dos restos mortais e
responsabilização
O irmão das vítimas,
respetivamente Ademar e Sita Valles, insiste na identificação e entrega dos
restos mortais aos familiares. No entanto, conta que o ministro da Justiça
angolano colocou algumas reservas no que respeita à identificação dos responsáveis
pelos assassinatos.
"Disse-me que isso era
extremamente difícil, porque iria expor pessoas que poderiam ser vítimas de
represálias e que uma modalidade semelhante à da África do Sul – em que os
opressores e as vítimas do apartheid se encontraram cara a cara e o perdão foi
um perdão pedido pelos opressores e expressamente concedido pelos familiares
das vítimas –não era possível em Angola pela tal possibilidade de
represálias", relata.
A Plataforma aponta, entre outros
responsáveis, os nomes de Ludy Kissasunda, Henrique Santos (Onambwé) e Carlos
Jorge, ainda vivos, os quais devem pedir perdão.
Na missiva, enviada em outubro de
2019, o advogado Edgar Valles pede também o total esclarecimento das
circunstâncias que rodearam os acontecimentos do 27 de maio, bem como a
reposição da verdade histórica.
Para Edgar Valles, não existe
nenhum perigo - uma vez que os familiares das vítimas não se movem por qualquer
sentimento de vingança, "mas sim porque aceitando o princípio da
reconciliação e do perdão promovido pelo Governo de Angola, entendemos que para
haver perdão tem que haver a identificação de quem deve ser perdoado e quem
pede o perdão," considera.
Pedido concreto de perdão
O Governo do Presidente João
Lourenço teve o mérito de reconhecer que foram cometidas violações dos direitos
humanos e que foram mortos cerca de 30 mil angolanos. "Isso, não há dúvida
que foi um passo muito positivo", afirma Edgar Valles. No entanto,
adverte, "é necessário ir mais além".
"Em vez de promover uma
reconciliação meramente abstrata com fias de propaganda política para depois
poder apresentar-se nas instâncias internacionais, nomeadamente na Comissão dos
Direitos Humanos da ONU como um governo de face limpa, é extremamente
importante para nós, para os angolanos, que se identifique os responsáveis e
que esses responsáveis assumam, no fundo, o que fizeram, peçam perdão e esse
perdão será certamente concedido," argumenta.
Segundo Edgar Valles não pode
haver perdão no abstrato.
"Por outro lado, os
responsáveis pela chacina são pessoas que estão na órbita do poder, estão
protegidos, e como tal não há razões para temerem. Além de que os familiares
das vítimas não têm sequer meios, são pessoas que não têm armas, não têm quaisquer
meios para se vingarem," avalia Valles.
Sem resposta
Segundo José Fuso, da Plataforma
27 de Maio, as cartas ainda não mereceram uma resposta oficial do Governo
angolano. O sobrevivente diz que os familiares não pedem julgamento dos
responsáveis pelos assassinatos mas sim um pedido de perdão com rigor histórico.
"Um pedido de perdão é uma
coisa que é absolutamente necessária e não se pode fugir a essa questão.
Portanto, essa teoria do perdoar e abraçar a qualquer preço não pode
ser," critica José Fuso.
Edgar Valles reconhece que o
combate das famílias para que se faça justiça será longo, mas está convencido
de que, com muita persistência, será possível alcançar algumas das batalhas
pelas quais lutam há vários anos. No entanto, o advogado angolano considera
que, este ano, não serão alcançados resultados assinaláveis no plano da
política de reconciliação porque o Governo de João Lourenço enfrenta uma
situação de fragilidade devido à conjuntura de crise económica.
A plataforma "27 de
Maio espera que o Presidente da República de Angola, João Lourenço, faça
uma meditação profunda deste processo e das propostas apresentadas, de modo a
satisfazer as expetativas dos que querem fazer o luto dos seus entes queridos.
Edgar Valles acredita que, mais
tarde ou mais cedo, saberá do paradeiro dos seus irmãos Ademar e Sita Valles.
João Carlos (Lisboa) | Deutshe
Welle
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