quinta-feira, 25 de junho de 2020

A um passo da grande crise do petróleo


Há dois séculos, ele é o emblema da industrialização e do capitalismo. Suas propriedades são notáveis, mas a lógica de infinitude associada a ele nos projetou em crise ambiental e civilizatória. Substituí-lo exigirá criar outra sociedade

#Escrito em português do Brasil

Juan Arellanes | na Foreign Affairs Latinoamérica | em Outras Palavras |Tradução: Simone Paz | Imagem: Sebastião Salgado

O petróleo bruto, convencional, tornou-se a substância mais decisiva e determinante na evolução da civilização humana. Não há outro recurso que possua a mesma densidade energética por unidade de massa e volume; nenhum é tão versátil e contínuo, nem tão fácil de transportar e armazenar: um litro de diesel contém a energia suficiente para fazer um caminhão de 40 toneladas andar ao longo de três quilômetros. Nenhuma bateria elétrica conseguiria fazer o mesmo.

Movimentar navios porta-contêineres e aviões sem energias fósseis requer converter mais uma vez a eletricidade produzida por fontes renováveis em combustíveis líquidos, o que é ineficiente do ponto de vista energético. Não sabemos produzir eletricidade a partir de fontes renováveis em escala industrial, sem recorrer às máquinas movidas pela energia fóssil. [Na maior parte dos países,] as redes elétricas abastecidas por energias renováveis são intermitentes e não funcionam sem o suporte da eletricidade produzida de forma estável por fontes fósseis. A ideia de estarmos abandonando os combustíveis fósseis e em transição para um mundo de energias renováveis não passa de uma grande ilusão.

Energia é economia: não existe produção de bens ou de serviços que não envolva o consumo de energia fóssil. O PIB é proporcional ao consumo de petróleo. A globalização não teria sido possível sem a potência energética do petróleo. A economia industrial moderna, em escala global, não funciona sem os hidrocarbonetos que movimentam sem parar bilhões de turbinas de combustão e motores diesel. Quando alguém fala sobre o fim da era dos combustíveis fósseis, essa pessoa está falando sobre o fim da globalização — mas, talvez, ela nem saiba disso. Sem petróleo não há globalização.

Os derivados do petróleo são absurdamente baratos: um litro de diesel custa menos do que um dólar (média mundial). É mais barato do que uma xícara de café! Se a potência de um galão de diesel, que custa menos do que US$ 4 dólares, tivesse de ser gerada por trabalho humano (pago com o salário mínimo dos Estados Unidos), custaria quase US$ 835 dólares. Como pode uma riqueza energética tão imensa custar tão pouco, como ocorre com o petróleo e seus derivados? Enquanto escrevo este texto, o West Texas Intermediate (WTI) [uma das variedades negociadas nos mercados globais], mantém-se abaixo dos 40 dólares. Apesar disso, os analistas falam do fim da era dos combustíveis fósseis como se estivessem tratando de um assunto qualquer. Como que a economia global poderia abandonar a substância mais importante e decisiva na história da civilização, se ela é tão barata? É claro! “Nossa consciência sobre as mudanças climáticas é tão forte, que decidimos parar de utilizar o petróleo, de forma voluntária”.

Se você prestou atenção aos quatro parágrafos acima, nada disso parece fazer sentido algum. Mas faz, sim.

O preço do petróleo está cada vez mais baixo

Mas o seu custo de produção é cada vez mais elevado. À medida em que o petróleo convencional e acessível vai se esgotando, a indústria do petróleo tenta extrair petróleo convencional inacessível debaixo do Ártico ou de áreas em conflito, petróleos não-convencionais (como o petróleo de xisto, areias betuminosas ou petróleo bruto pesado), outros combustíveis líquidos (de gás natural ou biocombustíveis), ou tenta contabilizar ganhos no volume do refinamento (graças a novos procedimentos) como aumentos de produção. Tudo isso ajuda a aparentar uma produção crescente. E até que é verdade, em termos de volume. Mas a questão mais importante na produção de petróleo, não é quantos barris podemos encher, e sim quanto trabalho ou quanta potência ele gera. Esses líquidos, que não servem do mesmo jeito que o petróleo convencional, estão saturando os mercados e gerando uma ilusão de superabundância.

Os petróleos não convencionais representam a produção com maior rapidez de crescimento nos últimos anos, mas só conseguem ser vendidos a preços rebaixados, por causa de sua má qualidade. Um barril de petróleo saudita tem um rendimento líquido de energia, expresso em unidades de trabalho (joules) ou potência (watts), muito mais alto do que um barril de óleo obtido a partir de areias betuminosas em Alberta, Canadá, ou o de um barril de óleo de xisto obtido por fraturamento hidráulico (fracking) em Eagle Ford, Texas. A diferença é tão grande quanto a que existe entre o café expresso e o café americano. A diferença de qualidade é tão grande que, nas palavras de Andrew Leach, “quase qualquer refinaria pode processar petróleo da Arábia Saudita, mas apenas uma grupo de elite das refinarias mais complexas do mundo pode converter o alcatrão de Alberta em gasolina”.

A indústria do petróleo vinha há anos na corda bamba

Nos primeiros anos do século XXI, as grandes empresas petrolíferas investiam cada vez mais dinheiro e produziam menos petróleo. Essa situação foi sustentável por certo tempo só porque a economia global conseguia pagar quase que US$ 150 dólares no barril, até o verão de 2008. Mesmo depois do colapso financeiro de 2008, os preços permaneceram na faixa de US$ 90 a 130 por barril, entre 2011 e 2014. Só então os preços começaram a cair e veio a espiral: uma volatilidade alternada de preços baixos, que destroem a oferta; e de preços altos, que destroem a demanda.

Finalmente, como prevaleceram os preços baixos, as petrolíferas acumularam dívidas e recordes negativos nos fluxos de caixa. Ainda assim, os “preços baixos” são “tão altos” do ponto de vista dos consumidores, que a demanda continua caindo. Existe um limite no preço que a economia pode pagar pelo petróleo antes de entrar em recessão. Se a economia paga uma conta petrolífera muito elevada, os consumidores tendem a diminuir o consumo de bens não essenciais e a economia fica estagnada.

A indústria de fracking endividou-se constantemente na última década. A queda do preço reduziu seus ingressos econômicos e as dívidas tiveram que ser refinanciadas, o que não seria possível sem as taxas de juros que banco central norte-americano (Federal Reserve) tem reduzido sistematicamente. O fracking é uma bolha financeira que funciona com a mesma lógica das hipotecas de alto risco ou subprime.

Mas não só o petróleo não convencional está em apuros. Com o aumento dos custos de produção e um cenário de preços baixos, o investimento de capitais na exploração e produção da indústria global de petróleo caiu em 2015 e 2016. Dada a gravidade da situação, a Agência Internacional de Energia (IEA) observou que o fornecimento de petróleo mundial poderia não atender à demanda em 2020, a menos que os investimentos aumentassem. Uma leve recuperação nos anos seguintes não impediu que o investimento em 2019 fosse ainda assim 36% menor do que em 2014.

E então, chegou a pandemia

A indústria global de petróleo vem experimentando um impacto inédito em sua história. A IEA calcula que até o final de 2020, o investimento ficará 30% abaixo do realiado em 2019. Sem investimento, a produção cairá e não haverá petróleo disponível quando a economia voltar a demandá-lo normalmente. Se o petróleo convencional já está sofrendo, o fracking está em colapso total. A Chesapeake Energy Corporation, considerada pioneira no setor, anunciou que pode ter de pedir proteção contra falência. E as demissões na indústria do petróleo estão na ordem do dia.

Em abril de 2020, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo chegou a um acordo com outros produtores para reduzir os níveis de produção em mais de 20% durante maio e junho. Muitos países exportadores de petróleo enfrentarão enormes dificuldades com a redução de seus gastos públicos. Os mais debilitados podem vir a sofrer uma “falência petrolífera“: uma situação de instabilidade e violência política derivada de uma redução drástica na renda obtida pelo petróleo.

“Novo normal”?

A pandemia de covid-19 tem atuado como o maior disruptor da história da humanidade, afetando um sistema que já estava em crise. O “coma induzido” da economia global pode ser visto como o “golpe de misericórdia” para a indústria petrolífera, e as consequências serão revolucionárias. A globalização, que tem uma dimensão metabólica inevitável, consiste, essencialmente, em estabelecer um padrão de fluxos globais de matéria e energia. Sem esse padrão de fluxos, a globalização não é possível, independentemente das intenções políticas, dos desejos do consumidor, dos planos de investimento empresarial ou das geoestratégias das grandes potências. A interrupção prolongada do fluxo pode levar a panes simultâneas em escala global.

Isto não é uma apologia ao petróleo. Estou convencido de que as mudanças climáticas em curso (em conjunto com os outros limites do planeta) podem nos levar, em poucas décadas, a atravessar o limiar de um planeta assolado pelo efeito-estufa, incompatível com a civilização humana. Devemos abandonar os combustíveis fósseis e nos refugiar em energias renováveis, apesar de todas as suas limitações. Mas, à medida em que o suprimento global de petróleo diminuir, a economia estará se desglobalizando. E se o processo é caótico, pode também ser violento. O vínculo entre economia e energia é tão próximo que as consequências econômicas da pandemia já causam uma escalada da violência, que já estava em andamento mesmo antes de o elefante entrar na loja de cristais.

O problema não é a pandemia. O problema é que atingimos os limites de produção da energia líquida e da biocapacidade do planeta. Nosso problema tem nome: crise civilizatória. Para sobreviver, precisaremos reinventar tudo: o modo de produzir alimentos, de construir habitação, de nos aquecermos, de nos locomovermos, de nos relacionarmos com a natureza e, principalmente, a forma de nos relacionarmos entre nós todos.

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*Juan Arellanes é professor de Geopolítica, Coordenador Acadêmico de Estudos Regionais e Coordenador do Centro Anáhuac de Investigação em Relações Internacionais da Faculdade de Estudos Globais da Universidad Anáhuac México. Membro fundador do Grupo de Estudos Transdisciplinários em Energia e Crise Civilizatória.

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