Há dois séculos, ele é o emblema
da industrialização e do capitalismo. Suas propriedades são notáveis, mas a
lógica de infinitude associada a ele nos projetou em crise ambiental e
civilizatória. Substituí-lo exigirá criar outra sociedade
#Escrito em português do Brasil
Juan Arellanes | na Foreign Affairs Latinoamérica | em Outras Palavras |Tradução: Simone
Paz | Imagem: Sebastião Salgado
O petróleo bruto, convencional,
tornou-se a substância mais decisiva e determinante na evolução da civilização
humana. Não há outro recurso que possua a mesma densidade energética por
unidade de massa e volume; nenhum é tão versátil e contínuo, nem tão fácil de
transportar e armazenar: um litro de diesel contém a energia
suficiente para fazer um caminhão de 40 toneladas andar ao longo de
três quilômetros. Nenhuma bateria elétrica conseguiria fazer o mesmo.
Movimentar navios
porta-contêineres e aviões sem energias fósseis requer converter mais uma vez a
eletricidade produzida por fontes renováveis em combustíveis líquidos, o que é ineficiente do ponto de
vista energético. Não sabemos produzir eletricidade a partir de fontes
renováveis em escala industrial, sem recorrer às máquinas movidas
pela energia fóssil. [Na maior parte dos países,] as redes elétricas
abastecidas por energias renováveis são intermitentes e
não funcionam sem o suporte da eletricidade produzida de forma estável por
fontes fósseis. A ideia de estarmos abandonando os combustíveis fósseis e em
transição para um mundo de energias renováveis não passa de uma grande ilusão.
Energia
é economia: não existe produção de bens ou de serviços que não envolva
o consumo de energia fóssil. O PIB é proporcional ao consumo de petróleo. A
globalização não teria sido possível sem a potência energética do petróleo. A
economia industrial moderna, em escala global, não funciona sem os
hidrocarbonetos que movimentam sem parar bilhões de turbinas de combustão
e motores diesel. Quando alguém fala sobre o fim da era dos combustíveis
fósseis, essa pessoa está falando sobre o fim da globalização — mas, talvez,
ela nem saiba disso. Sem
petróleo não há globalização.
Os derivados do petróleo são
absurdamente baratos: um litro de diesel custa menos do que um dólar (média
mundial). É mais barato do que uma xícara de café! Se a potência de um galão de
diesel, que custa menos do que US$ 4 dólares, tivesse de ser gerada por trabalho
humano (pago com o salário
mínimo dos Estados Unidos), custaria quase US$ 835 dólares. Como pode uma
riqueza energética tão imensa custar tão pouco, como ocorre com o petróleo e
seus derivados? Enquanto escrevo este texto, o West Texas Intermediate (WTI)
[uma das variedades negociadas nos mercados globais], mantém-se abaixo dos 40
dólares. Apesar disso, os analistas falam do fim da era dos combustíveis
fósseis como se estivessem tratando de um assunto qualquer. Como que a economia
global poderia abandonar a substância mais importante e decisiva na história da
civilização, se ela é tão barata? É claro! “Nossa consciência sobre as mudanças
climáticas é tão forte, que decidimos parar de utilizar o petróleo, de forma
voluntária”.
Se você prestou atenção aos
quatro parágrafos acima, nada disso parece fazer sentido algum. Mas faz, sim.
O preço do petróleo está cada vez
mais baixo
Mas o seu custo de produção é
cada vez mais elevado. À medida em que o petróleo
convencional e acessível vai se esgotando, a indústria do petróleo tenta
extrair petróleo convencional inacessível debaixo do Ártico ou de áreas em
conflito, petróleos não-convencionais (como o petróleo de xisto, areias
betuminosas ou petróleo bruto pesado), outros combustíveis líquidos (de gás natural
ou biocombustíveis), ou tenta contabilizar ganhos no volume do refinamento
(graças a novos procedimentos) como aumentos de produção. Tudo isso ajuda a
aparentar uma produção crescente. E até que é verdade, em termos de volume. Mas
a questão mais importante na produção de petróleo, não é quantos barris podemos
encher, e sim quanto trabalho ou quanta potência ele gera. Esses líquidos, que
não servem do mesmo jeito que o petróleo convencional, estão saturando os
mercados e gerando uma ilusão de
superabundância.
Os petróleos
não convencionais representam a produção com maior rapidez de
crescimento nos últimos anos, mas só conseguem ser vendidos a preços
rebaixados, por causa de sua má qualidade. Um barril de petróleo saudita tem um rendimento
líquido de energia, expresso em unidades de trabalho (joules) ou potência
(watts), muito mais alto do que um barril de óleo obtido a partir de areias
betuminosas em Alberta, Canadá, ou o de um barril de óleo de xisto obtido por
fraturamento hidráulico (fracking) em Eagle Ford , Texas. A
diferença é tão grande quanto a que existe entre o café expresso e o café
americano. A diferença de qualidade é tão grande que, nas palavras de Andrew
Leach, “quase qualquer refinaria pode processar petróleo da Arábia
Saudita, mas apenas uma grupo de elite das refinarias mais complexas do mundo
pode converter o alcatrão de Alberta em gasolina”.
A indústria do petróleo vinha há
anos na corda bamba
Nos primeiros anos do século XXI,
as grandes empresas petrolíferas investiam
cada vez mais dinheiro e produziam menos petróleo. Essa situação foi
sustentável por certo tempo só porque a economia global conseguia pagar quase
que US$
150 dólares no barril, até o verão de 2008. Mesmo depois do colapso
financeiro de 2008, os preços permaneceram na faixa de US$ 90 a 130 por barril, entre
2011 e 2014. Só então os preços
começaram a cair e veio a espiral: uma volatilidade alternada de
preços baixos, que destroem a oferta; e de preços altos, que destroem a
demanda.
Finalmente, como prevaleceram os
preços baixos, as petrolíferas acumularam dívidas e recordes negativos nos
fluxos de caixa. Ainda assim, os “preços baixos” são “tão altos” do ponto de
vista dos consumidores, que a demanda continua caindo. Existe um limite no
preço que a economia pode pagar pelo petróleo antes de entrar em recessão. Se a
economia paga uma conta petrolífera muito elevada, os consumidores tendem a
diminuir o consumo de bens não essenciais e a economia fica estagnada.
A indústria de fracking endividou-se
constantemente na última década. A queda do preço reduziu seus ingressos
econômicos e as dívidas tiveram que ser refinanciadas, o que não seria possível
sem as taxas de juros que banco central norte-americano (Federal Reserve) tem
reduzido sistematicamente. O fracking é uma bolha financeira que funciona
com a mesma lógica das hipotecas de alto risco ou subprime.
Mas não só o petróleo não
convencional está em
apuros. Com o aumento dos custos de produção e um cenário de
preços baixos, o investimento de capitais na exploração e produção da indústria
global de petróleo caiu em 2015 e 2016. Dada a gravidade da situação, a Agência
Internacional de Energia (IEA) observou que
o fornecimento de petróleo mundial poderia não atender à demanda em 2020, a menos que os
investimentos aumentassem. Uma leve recuperação nos anos seguintes não impediu
que o investimento
em 2019 fosse ainda assim 36% menor do que em 2014.
E então, chegou a pandemia
A indústria global de petróleo
vem experimentando um impacto inédito
em sua história. A IEA calcula que até o final de 2020, o investimento ficará 30% abaixo do
realiado em 2019. Sem investimento, a produção cairá e não haverá petróleo
disponível quando a economia voltar a demandá-lo normalmente. Se o petróleo
convencional já está sofrendo, o fracking está em colapso total. A
Chesapeake Energy Corporation, considerada pioneira no setor, anunciou que pode
ter de pedir proteção contra falência. E as demissões na
indústria do petróleo estão na ordem do dia.
Em abril de 2020, a Organização dos
Países Exportadores de Petróleo chegou a um acordo com outros produtores para
reduzir os níveis de produção em mais de 20% durante maio e junho. Muitos
países exportadores de petróleo enfrentarão enormes dificuldades com
a redução de seus gastos públicos. Os mais debilitados podem vir a sofrer uma “falência
petrolífera“: uma situação de instabilidade e violência política derivada de
uma redução drástica na renda obtida pelo petróleo.
“Novo normal”?
A pandemia de covid-19 tem atuado
como o maior disruptor da história da humanidade, afetando um sistema que já
estava em crise. O
“coma induzido” da economia global pode ser visto como o “golpe de
misericórdia” para a indústria petrolífera, e as consequências serão
revolucionárias. A globalização, que tem uma dimensão
metabólica inevitável, consiste, essencialmente, em estabelecer um
padrão de fluxos globais de matéria e energia. Sem esse padrão de fluxos, a
globalização não é possível, independentemente das intenções políticas, dos
desejos do consumidor, dos planos de investimento empresarial ou das
geoestratégias das grandes potências. A interrupção prolongada do fluxo pode
levar a panes
simultâneas em escala global.
Isto não é uma apologia ao
petróleo. Estou convencido de que as mudanças climáticas em curso (em conjunto
com os outros limites
do planeta) podem nos levar, em poucas décadas, a atravessar o limiar de
um planeta assolado pelo efeito-estufa, incompatível com a civilização humana.
Devemos abandonar os combustíveis fósseis e nos refugiar em energias
renováveis, apesar de todas as suas
limitações. Mas, à medida em que o suprimento global de petróleo diminuir,
a economia estará se desglobalizando. E se o processo é caótico, pode também ser violento. O
vínculo entre economia e energia é tão próximo que as consequências econômicas
da pandemia já causam uma escalada da violência,
que já estava em andamento mesmo antes de
o elefante entrar na loja de cristais.
O problema não é a pandemia. O
problema é que atingimos os limites de produção da energia líquida e da
biocapacidade do planeta. Nosso problema tem nome: crise civilizatória. Para
sobreviver, precisaremos reinventar tudo: o modo de produzir alimentos, de
construir habitação, de nos aquecermos, de nos locomovermos, de nos
relacionarmos com a natureza e, principalmente, a forma de nos relacionarmos
entre nós todos.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
*Juan Arellanes é professor de
Geopolítica, Coordenador Acadêmico de Estudos Regionais e Coordenador do Centro
Anáhuac de Investigação em Relações Internacionais da Faculdade de Estudos
Globais da Universidad Anáhuac México. Membro fundador do Grupo de Estudos
Transdisciplinários em Energia e Crise Civilizatória.
Sem comentários:
Enviar um comentário