Em busca de alinhamento incondicional, EUA pressionam, chantageiam e tentam desmantelar a União Europeia. Pequim, em contrapartida, propõe mais trocas — e diz buscar diálogo e respeito à autonomia. Para onde trilhará o Velho Continente?
Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras
As declarações do embaixador dos EUA em entrevista ao Expresso de 26 de Setembro ofendem os portugueses e violam os códigos diplomáticos [ao citado jornal, George Glass afirmou que “Portugal tem de escolher entre os aliados e os chineses”, o que indignou o país, e gerou uma réplica do presidente Marcelo Rebelo de Sousa: “em Portugal, quem decide acerca dos seus destinos são os representantes escolhidos pelos portugueses”]. Sabemos que este é o estilo agressivo de interferência nos assuntos internos de países-vassalos ou “repúblicas das bananas”. Não se imaginam declarações públicas deste tipo num país da Europa do Norte. Se houvesse tentativa de publicação, é duvidoso que algum jornal não sensacionalista a viabilizasse, exceto como publicidade paga. As declarações do embaixador têm, no entanto, um tempo e um contexto precisos.
Como o objetivo geoestratégico dos EUA é enfraquecer ou desmantelar a UE (começou com o Brexit) para mais facilmente forçar os países europeus a se alinhar na nova guerra fria – a guerra contra a China –, Portugal é o alvo exato, não só porque é considerado um dos elos fracos da UE mas também porque vai presidir à UE nos próximos meses. As autoridades portuguesas reagiram da única forma possível, mas as grandes decisões são da UE. Que decisão lhe convém? A Europa está perante uma bifurcação decisiva: ou se fragmenta ou aprofunda a sua integração. A análise que proponho assenta na ideia de que a integração é melhor que a fragmentação, assumindo que só é possível aprofundar a integração respeitando a autonomia de cada país e democratizando as relações entre eles.
Não vem ao caso analisar aqui toda a longa duração histórica que liga a Europa (sobretudo o Mediterrâneo) à China e à Índia, integrantes do mesmo supercontinente, a Euroásia, onde a Idade de Bronze emergiu e deu origem à primeira revolução urbana, cerca de três mil anos antes da nossa era. Basta recordar que ao longo de muitos séculos houve trocas comerciais e de tecnologias nesta região e que, se em certos períodos o Ocidente predominou, noutros predominou o Oriente. Esta alternância pareceu quebrar-se a partir do século XV com o pêndulo a pender para a região europeia. Com a expansão bloqueada por terra pelo império otomano, a Europa passou a ser o berço de impérios transatlânticos que tiveram sucessivamente como protagonistas Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra. Um longo período que terminou em 1945. Desde então, o único império digno do nome tem sido o dos EUA. Há alguns anos se fala do declínio deste império e da ascensão do império da China, ainda que seja debatível se a China é já (de novo) um império. Há vários anos que estudos dos serviços de inteligência dos EUA (CIA) têm vindo a prever que a China, em 2030, será a primeira economia do mundo.
Tudo leva a crer que estamos
perante um império em declínio e um império ascendente. A pandemia veio dar uma
nova intensidade aos sinais que apontam para tal. Entre eles saliento os
seguintes. Primeiro, a China foi uma das principais economias do mundo durante
vários séculos até ao início do século XIX. Representava então entre 20% e 30%
da economia mundial. A partir daí, iniciou-se o seu declínio e em
A Europa (sobretudo a que tem melhor índice de desenvolvimento humano) se beneficiou com a abertura da China ao comércio internacional e com as relações pacíficas que, entretanto, se estabeleceram entre os EUA e a China. Estes fatos dispensaram a UE de ter uma verdadeira política externa. Tudo leva a crer que este período chegou ao fim e que a Europa vai ser forçada a optar. A Europa, que foi historicamente muito violenta, tanto internamente como no mundo, não tem hoje veleidades imperiais e parece querer preservar um patrimônio credível de defesa dos valores democráticos, da convivência pacífica e dos direitos humanos. Os impérios são sempre maus para as regiões que lhes estão sujeitas. Pode dizer-se que as regiões que não podem disputar o poder imperial ganham sempre mais em aliar-se a um império ascendente do que a um império declinante. Mas, por outro lado, nada nos garante que o império chinês seja melhor para os europeus que o império norte-americano. A única maneira de preservar os valores da democracia, da convivência pacífica e dos direitos humanos parece ser a de manter uma relativa autonomia em relação a ambos. Só esta autonomia relativa permitirá à Europa aprofundar a sua integração, discutindo os termos da sua inserção na nova era que parece ser menos uma nova era de globalização do que uma era de muros tecnológicos (e de muitos outros muros não menos perigosos). Isto significa que nenhum país europeu se deve deixar chantagear. A experiência internacional da última década diz-nos que a China aceita a ideia de relativa autonomia e que, sempre que necessário, sabe recuar na sua ânsia expansiva. Pelo contrário, as pressões pouco diplomáticas em curso são um aviso de que os EUA não aceitam a ideia de relativa autonomia. Se a Europa não souber resistir, estará a iniciar uma dolorosa caminhada para a sua fragmentação.
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