Jorge Mangorrinha* | Diário de Notícias | opinião
A RTP começou por cantar, no sábado, "pr'ó boneco". O leque de canções para a Eurovisão adivinhava uma disputa apertada entre dois blocos de favoritos, em português e em inglês, decorrente de um regulamento nacional em que a língua é apenas um dos critérios e de acordo com estes tempos em que a rica tradição lírica da música portuguesa é secundarizada, diariamente, pelo serviço público. Importa lembrar que os projetos internacionais, cantando em português, foram os que mais venderam (Amália, Madredeus, Dulce Pontes, Mariza) e que nenhum artista português atingiu a notoriedade internacional em estilo não original de matriz portuguesa, exceto os Moonspell, num nicho de mercado específico.
Desde 1999 que a Eurovisão permite a escolha do idioma, o que veio dar predominância às palavras anglófonas, talvez para melhor se entender a literatura da canção. Só que, apesar de em 2016 as músicas terem sido esmagadoramente cantadas em inglês, no ano seguinte, porém, a vitória foi numa língua nativa, pelo Salvador Sobral.
Numa das abordagens na linha de investigação que mantenho sobre o fenómeno eurovisivo, identificaram-se idiomas e dialetos nativos, ou mesmo imaginados, como parte integrante da experimentação musical de diferentes países, o que tem sido interessante e crescente no tempo. Na história da Eurovisão já foram cantados 58 idiomas. A língua inglesa esteve em 46,3% das vitórias, enquanto a maioria foi distribuída por 14 línguas diferentes.
A vitória de Portugal ajudou a deitar por terra a ideia de que o inglês é uma língua "neutra", de que muitos performers procuram construir carreiras internacionais e de que a canção se exporta melhor assim. Isso não é determinante, necessariamente, mas também a língua não desempenhou um papel vital na vitória de Salvador, embora soasse bem. O tema predominante no conteúdo das canções concorrentes - o amor - é expressivo e percecionado em qualquer idioma, nas suas variantes de procura, de paixão ou de desgosto. E muitos cantaram Amar pelos Dois, obrigados à nossa língua, por esse mundo fora.
Presentemente, o Festival Eurovisão da Canção é, sobretudo, um campo experimental, sem espartilhos e com liberdade, mesmo no campo da intervenção política, que, como sabemos, não é muito bem-vista pela organização. Nesta lógica, a RTP abre-se todos os anos àquilo que é a Eurovisão neste momento e à vontade dos criadores, mesmo que saibamos que algumas das músicas estariam na gaveta dos seus compositores e que outras são feitas sem grande fé na Eurovisão. Portugal é um país que, há muito, se deixou influenciar pela anglofonia e onde quem não se expressa fluentemente em inglês é injustamente visto como iletrado.
E, agora, o que é que se faz com uma canção que nos diz que o amor está do seu lado, mas não nesta noite? Seria preferível que a mensagem fosse que o amor à música venha a estar do lado de Portugal, na noite eurovisiva. A letra de Love Is on My Side (maybe not tonight) é mais pobre do que aquilo que os poetas portugueses sabem fazer e substitui a alma portuguesa, singrando, sobretudo, pela voz e pelo arranjo musical arrebatadores, até porque, em inglês, havia outra. E, agora, creio que o todo será essencial para a promoção, numa espécie de caldeirão, com performance, atitude, irreverência, celebração, mensagem e ligação à comunidade eurovisiva. Será que a RTP é capaz de o fazer, para que o Pedro Taborda, perdão, o Tatanka não cante "pro boneco"?
*Investigador em Eurovisiologia
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