Cabo Delgado, situado no norte de Moçambique, é, desde 2017, palco de um aceso conflito, responsável por provocar mais de duas mil mortes e 670 mil deslocados. Entre a pobreza e o desenvolvimento alicerçado na exploração de gás natural, a região tornou-se terreno fértil para a proliferação da violência armada às mãos de insurgentes islâmicos.
Multiplicam-se as notícias sobre ataques armados e atos de violência, em Cabo Delgado, província do nordeste moçambicano, num conflito que eclodiu há 3 anos e está a provocar uma crise humanitária, com mais de duas mil mortes e a obrigar à fuga de mais de 670 mil pessoas de um cenário de guerrilha.
Sem habitação ou acesso a alimentos, o drama concentra-se sobretudo na capital provincial, Pemba, onde se estima que haja 950 mil pessoas “a enfrentar fome severa” nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Nampula – sendo 242 mil crianças com desnutrição grave, como é detalhado pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
Origem dos tumultos
O conflito
Onde o silêncio governativo
impera, incapaz de combater as desigualdades existentes grassam os rumores, as
invenções, os exageros e os limites entre a mentira e a verdade esbatem-se.
Esse esquecimento, essa sensação de abandono sobre a situação
Assim, entre ressentimentos autóctones contra o poder, um Estado distante e conflitos étnicos adormecidos estão algumas das causas para uma guerra que tem transformado um destino turístico de eleição num campo de batalha.
Al Shabaab, a causa do terror em Moçambique
Estas variáveis contribuíram para o crescendo de um movimento, que em 2017 teve o seu ponto de inflexão. Perante o panorama desfavorável em que viviam, alguns jovens do Conselho Islâmico de Moçambique começaram a desenvolver uma nova leitura e prática do Islão. Surgiu assim um ramo distinto dentro deste Conselho, chamado Ansaru-Sunna, formado com o objetivo de estabelecer um califado em toda a região do norte moçambicano.
Construíram novas mesquitas e passaram a pregar uma doutrina mais estrita do Islão, no qual defendiam a implantação da lei corânica e a criação de uma zona libertada da Frelimo, sob o estandarte negro da jihad. Dentro deste espectro islamista surgiu um outro grupo, mais ativista e radical, que se tornou conhecido localmente como Al-Shabaab (jovens em árabe, não havendo uma relação com o grupo islamista Al-Shabab da Somália).
Tornaram-se oposição ao Estado central e, com o passar do tempo, militarizaram-se, jurando fidelidade a Al-Baghdadi, em 2018. Acabariam por formar-se como comunidade, com a implementação de escolas corânicas e, naturalmente, surgiu em simultâneo um braço armado que passou a atuar contra todos os que negavam os seus pressupostos.
Na opinião de Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos, “os extremistas moçambicanos estão a atuar de armas na mão, utilizando justificações de natureza religiosa para impor um modelo civilizacional diferente do que era usual na região”, destacou em entrevista concedida ao JPN, detalhando o modo de atuação deste grupo de insurgentes.
Apesar de integrar militantes, de outras latitudes africanas como da Tanzânia e da Somália, o grupo é, essencialmente, constituído por jovens muçulmanos originários de distritos da província de Cabo Delgado, de forte tradição islâmica que passaram por um processo de radicalização, destaca Fernando Jorge Cardoso.
Estes jovens que enfrentam elevadas taxas de desemprego e um futuro cada vez mais incerto dominados por esta vulnerabilidade, a par da promessa de um efetivo apoio financeiro e da sedutora retórica jihadista, tornam-se num estrato populacional de fácil recrutamento.
Usando a corrupção, a arbitrariedade e a repressão do Estado para legitimar a violência, os jihadistas reclamam a pureza das suas convicções contra a podridão das instituições e de quem as dirige. Legitima-se, assim, uma força desestabilizadora que permite, no caos que instala, a prosperidade de certos negócios ilegais, “como o contrabando de materiais preciosos como rubis, madeiras preciosas, marfim ou mesmo lenha, embora isso seja mais trágico inter-fronteiriço”, como nos conta o especialista em assuntos africanos.
Fica à vista a fragilidade de um país pobre (entre os dez mais pobres do mundo), com uma extensão territorial enorme (quase dez vezes o tamanho de Portugal continental) e cuja capital se encontra no seu extremo sul e a mais de 2.300 quilómetros de viagem de Mocímboa da Praia (local que marcou o início do movimento radical islâmico a 5 de outubro de 2017), no norte de país, o que possibilita a de perda de controlo por parte das autoridades locais em prol de insurgentes na região.
A exploração de gás natural
Apesar de ser a mais pobre província de Moçambique, Cabo Delgado é, simultaneamente, a mais rica, com recursos geológicos particularmente importantes ao nível de grafite, rubis e gás natural, com uma das maiores reservas do continente africano. Numa região onde a maioria da população vive na pobreza, sem acesso a educação, cuidados de saúde e empregos, grandes multinacionais exploram as riquezas existentes no território.
É no norte de Cabo Delgado que estão concentradas as gigantesca prospeções de gás natural liquefeito, de multinacionais como a Total ou a ExxonMobil – com projeções de investimento na ordem dos 500 milhões de dólares (cerca 455 milhões de euros) só na fase inicial do seu projeto.
Porém, as recentes descobertas de hidrocarbonetos internacionalizaram a região e geraram muitas expectativas entre os locais de presumíveis melhorias nas condições de vida da população, que acabaram por não se verificar. A própria insurreição e a presença de células jihadistas no norte do país representou, igualmente, uma ameaça direta aos projetos de gás, tendo um ataque em 30 de dezembro decorrido a apenas dez quilómetros da infraestrutura, que recorre a empresas de segurança privadas para proteger o pessoal.
Assim, a esperança de que o projeto trouxesse benefícios para a população perdeu-se entre o sentimento de abandono, a marginalização económica, e o recrudescimento do terrorismo.
Fernando Jorge Cardoso defende que “o início da guerra não esteve, pois, ligado ao gás e às companhias que preparam a sua exploração, não havendo uma relação de causa-efeito entre a eles, ou os rubis, que é outra grande riqueza explorada em Montepuez”. Tal não significa que o conflito não tenha ganho visibilidade e intensidade por este facto, atraindo outros interesses, não só de grupos de mercenários, mas também de países da região e de outros atores que têm companhias de bandeira envolvidas no negócio do gás.
Alexandre Jorge Mano, consultor moçambicano que tem acompanhado no terreno todo o conflito, defende esta visão. A seu ver “se o Estado Islâmico fosse escolher uma província do Malawi ou uma província da Tanzânia em que não há nada, o impacto mediático e social seria inexistente”.
O exército moçambicano, subdimensionado e mal equipado, para operações de contrainsurgência recorreu a mercenários estrangeiros. Numa primeira instância em 2019 através do grupo russo Wagner “que se revelou um fracasso, porque eles não falavam português. Chegaram a um cenário que não conheciam e sofreram uma data de baixas, acabando por se retirar” e, posteriormente, com os sul-africanos da Dyck Advisory Group (DAG), explica Fernando Jorge Cardoso.
Esta empresa “originariamente formada na Antiga Rodésia do Sul, por antigos militares que pertenceram ao exército sul-rodesiano” (atual Zimbabwe) não é, contudo, consensual tendo já sido alvo de críticas por parte de John Godfrey, coordenador interino do Contraterrorismo dos Estados Unidos, realçando que estas empresas têm dificultado a luta antiterrorista por operarem fora das normas de parceria internacionais.
Situação humanitária delicada
Este conflito apresenta contornos complexos, afigurando-se como uma verdadeira encruzilhada entre o terror jihadista, a instabilidade governativa e a envolvência de empresas militares privadas.
O resultado mais imediato desta instabilidade é o problema humanitário. As indicações apontam para um quadro de mais de 670 mil deslocados e um contexto de fome generalizada, abrangendo mais de 900 mil pessoas, com uma grande incidência entre os mais jovens, como reflexo da pirâmide etária do país.
Alexandre Jorge Mano dá o exemplo do distrito provincial de Cabo Delgado, Macomia, no qual “a destruição das infraestruturas, desde escolas, lojas, agudizou a escassez a de alimentos e as infraestruturas logísticas que existem, que neste momento estão a ser suportadas por colunas militares durante um grande período de tempo deixaram de existir, provocando uma subida anormal de preços de bens de consumo e combustível”, provocando uma situação extremamente complicada.
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) destaca o aumento de casos de cólera, especialmente entre pessoas deslocadas: 55 mortes e quase 5.000 casos estavam contabilizados até 14 de fevereiro de 2021, com o maior número no distrito de Metuge, onde têm funcionado vários campos de acomodação.
O conflito foi ainda responsável
por danificar e destruir um terço das instalações de saúde na província de Cabo
Delgado, especialmente em Mocímboa da Praia, Macomia, Muidumbe e Quissanga. Nas
suas projeções para
“Levam tanto rapazes como raparigas”
Com os jornalistas impedidos de se deslocarem ao epicentro da guerra, são as organizações não governamentais e a Igreja Católica que têm encetado esforços para reportar as atrocidades que têm assolado aquela província moçambicana. O mais recente relato é da Save the Children, que ouviu o testemunho de mães que perderam filhos para a violência e o ódio religioso, e onde estão explícitas as graves violações do direito internacional humanitário.
A Amnistia Internacional tem,
igualmente, condenado a atuação
O relatório da Amnistia Internacional, baseado em entrevistas com 79 deslocados internos de 15 comunidades, não poupa nos pormenores. Descreve ataques e decapitações cometidas a idosos, mulheres ou crianças. “Levam tanto rapazes como raparigas (membros do Al-Shabaab) … Alguns levam-nos para os decapitar. Alguns obrigam as raparigas a tornarem-se ‘esposas’ e a fazer trabalho na base. Os rapazes tornam-se soldados”.
Na opinião de Fernando Jorge Cardoso, esta atuação “é uma forma de exercício do poder, é uma forma de dominação, é uma forma de influência” e uma prova bastante clara de que “os envolvidos não dão absolutamente nenhum valor à vida humana”.
Projeções para um futuro de resolução
Para travar este cenário, o Governo moçambicano deve “primeiro, pedir ajuda internacional, em termos de apoio em bens de primeira necessidade, segundo tentar ter, de facto, um exército”, apetrechando-se nessa componente, como defende o especialista em assuntos africanos. Porque se de facto “este movimento começar a perder, a ser perseguido, o impulso para se juntar a ele vai diminuir grandemente”, acrescenta.
Mostrando-se esperançoso com a transformação considerável no teatro operacional de que Cabo Delgado tem sido alvo, com resultados positivos a surgirem, Alexandre Jorge Mano destaca o papel e a envolvência de países externos como Portugal e os Estados Unidos da América no auxílio a Moçambique.
O consultor mostra-se otimista no término do conflito e no estabelecer de uma acalmia em solo moçambicano, contudo salienta a complexidade da guerra que se faz sentir, especificando as suas várias dimensões.
O conflito que ocorre
Como a história nos ensina no que concerne à maioria das guerras, “ela acabará por se resolver pela vitória de uns e a derrota de outros”. Para este efeito, “e apesar de não ser futurologista”, Fernando Jorge Cardoso acredita que a guerra será ganha pelo exército moçambicano antes do próximo período de chuvas que começará entre novembro e dezembro.
JPN – Imagens:Mapa de Moçambique. Wikimedia Commons; Jovens, Nações Unidas Moçambique - Helvisney Cardoso; Outras: Guerrilheiros que aterrorizam a região.
Artigo editado por João Malheiro / JPN
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