segunda-feira, 5 de abril de 2021

Portugal | A Venda das Seis Barragens e o Patriotismo Fiscal dos Nossos Governantes

Ana Paula Dourado * | Expresso | opinião

A intuição diz-nos que um negócio de 2.2 mil milhões de euros não pode ser aprovado por um único ministro. Que a atribuição de benefícios fiscais em negócios desta envergadura deve estar sujeita ao controlo prévio do ministro das finanças, como esteve até 2017

A última década caracterizou-se por uma onda mundial de indignação contra o planeamento fiscal agressivo, jargão político para designar esquemas negociais cuja principal finalidade ou uma das principais finalidades seja reduzir ou eliminar o pagamento de impostos de grandes contribuintes.

Onda mundial e patriótica. A perceção de que grandes contribuintes não pagavam uma fatia justa de imposto, apesar dos lucros gigantescos, provocou boicotes às lojas da Starbucks no Reino Unido e em Itália, indignação contra os gigantes tecnológicos na Índia e um pouco por todo o lado, tumultos contra os acionistas anónimos, detentores de participações indiretas na exploração de recursos naturais na China, Índia, Congo, África do Sul, Moçambique, e localizados pelo mundo afora.

A luta contra o planeamento fiscal agressivo começou com a denúncia destes esquemas pela sociedade civil e pelos media influentes, tem sido relacionada com uma ideia de moralidade fiscal, e gerado alterações na lei destinadas a tapar lacunas involuntárias ou contrárias a essa moralidade.

Mas não só: a pressão das opiniões públicas nacionais levou à negociação direta entre governos e grandes contribuintes para o pagamento da fatia justa, mesmo sem base legal, em países de cultura jurídica tão diferente como o Reino Unido e Moçambique; foram virais as audições parlamentares no Reino Unido aos CEO da Apple, Google e Amazon presididas pela Senhora Margaret Hodge, e por esta apelidados de maus, calculistas e tortuosos; o G20 e a OCDE, e Portugal na foto de família, assinaram com pompa e circunstância uma convenção multilateral e outras medidas, respondendo ao planeamento fiscal agressivo; A União Europeia aprovou, por unanimidade, várias diretivas de combate a tal planeamento fiscal, ainda há dias, Portugal na presidência anunciou outra; o Tribunal de Justiça passou a ser cauteloso com as receitas estaduais; as autoridades tributárias e respetivos tribunais, de sul a norte da Europa, passaram a estar mais atentos, levados pelo ambiente eufórico em torno da boa governação fiscal, esquecem por vezes, e mal, direitos dos contribuintes e princípios constitucionais para conseguir arrecadar receitas, confundem planeamento com ilícito, Cristiano Ronaldo terá sido vítima dessa confusão em Espanha.

Os negócios da EDP, destinados à transmissão de seis barragens da bacia do Douro e à concessão de exploração de recursos hídricos para um consórcio francês, geraram uma reação de espanto e indignação nos media portugueses. A venda de seis barragens à Engie por 2.2 mil milhões de euros parece ter ficado isenta de quaisquer impostos. De pasmar.

A intuição na opinião pública é a de que a forma escolhida para os negócios se destinou ao não pagamento dos impostos e que os governantes não travaram esses esquemas quando podiam, deviam tê-lo feito. Recentes alterações legislativas que se ajustam ao planeamento utilizado aumentam o assombro.

Trata-se de um meganegócio à escala portuguesa, e a exploração de recursos hídricos é equiparável à de outros recursos naturais, despertando reações genuínas de patriotismo fiscal. É disso exemplo a atuação do Movimento Cultural da Terra de Miranda, através de um ex-Subdiretor Geral da Autoridade Tributária, elaborando uma análise jurídica e política minuciosa do caso.

Talvez a autoridade tributária venha a cobrar alguma receita através de regras antiabuso. Dizem-nos agora os governantes. Talvez. E por que há-de a autoridade tributária incomodar-se em desnovelar os esquemas, se o Governo aprovou o meganegócio? Se o Governo leva o Parlamento a aprovar leis que incitam ao planeamento? Se o litígio nos tribunais demorará anos a resolver?

A intuição está quase sempre certa. Os governantes esquecem-se frequentemente dela. A intuição diz-nos que um negócio de 2.2 mil milhões de euros não pode ser aprovado por um único ministro. Que a atribuição de benefícios fiscais em negócios desta envergadura deve estar sujeita ao controlo prévio do ministro das finanças, como esteve até 2017. Que a utilização de esquemas de planeamento tem uma dimensão política, e deveria ser submetida ao conselho de ministros antes de aprovado o negócio. Que o ministro das finanças deve ter um veto em matérias de relevância financeira, eventualmente ultrapassável por maioria absoluta, incluindo o voto do primeiro ministro. Que todos os assuntos de política geral nacional ou internacional, com relevância económica, social, financeira ou cultural deveriam ser submetidos ao conselho de ministros para discussão e decisão.

Mais ou menos assim exige o parágrafo 16 do regime de procedimento do conselho de ministros na Alemanha. Normas abrangentes de responsabilização política. A lei orgânica do governo prevê coordenação ministerial em caso de desafios estratégicos, enumera outras competências conjuntas avulsas e insuficientes, os meganegócios e o destino dos recursos hídricos não fazem parte da lista. Nós não precisamos de regras abrangentes de responsabilização política, para quê?

*Ana Paula Dourado | Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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