O tratamento do problema da Ucrânia é realmente um caso exemplar da maneira mistificadora, desinformativa, alienante e até atemorizadora como a comunicação social dominante se comporta.
José Goulão* | opinião
«Operação Mockingbird» foi uma linha de montagem da propaganda imperial montada pela Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana logo no início da guerra fria para interferir nos principais meios de comunicação social dos Estados Unidos, da Europa e através do mundo.
Os numerosos autores que investigaram o processo revelam que a CIA inscreveu centenas de jornalistas de numerosas nacionalidades nas suas folhas de pagamentos de modo a tornar dominantes as posições do regime norte-americano, se possível em todo o mundo.
O jornalista Carl Bernstein informou, na sequência de uma investigação realizada nos finais dos anos setenta do século passado, que a CIA pagava a mais de 400 jornalistas de 25 empresas jornalísticas proprietárias de publicações sonantes como a Newsweek, Time, Miami Herald, das televisões ABC e NBC e das principais agências de notícias mundiais: AP, UPI e Reuters. O jornal Washington Post, através dos seus proprietários e editores, era uma parte da operação.
William Scharp, advogado que foi uma figura de relevo no caso da morte de Martin Luther King, explicou que a CIA financiava milhares de jornalistas, além de ter as suas próprias organizações de media. Para a agência, revelou um antigo membro da rede de propaganda, «era mais barato pagar a um jornalista do que a uma prostituta». E Thomas Braden, chefe de divisão de um departamento governamental de Washington, testemunhou que «não havia limite de dinheiro para gastar, não havia limites para as actividades a realizar na guerra fria secreta». A «Operação Mockingbird» funcionava, segundo a mesma fonte, «como uma multinacional».
Um relatório de 1976 do Congresso dos Estados Unidos concluiu que centenas de indivíduos em todo o mundo tentam influenciar as opiniões através de propaganda dissimulada, graças ao acesso directo a jornais e outros periódicos, serviços de imprensa, agências de notícias, rádios, televisões, editoras e outros meios de comunicação estrangeiros.
Coisa do passado?
Terá sido a «Operação Mockingbird» uma coisa do passado?
A realidade diz-nos que não. E os factos comprováveis todos os dias, tanto nas causas como nos efeitos, explicam sem rodeios que o processo de imposição de uma opinião única, fazendo dos interesses do regime norte-americano os dominantes e legítimos em todo o mundo, tem vindo a consolidar-se de maneira asfixiante.
Dados que é possível obter através de pesquisas pouco mais do que sumárias revelam-nos que a «Operação Mockingbird» pode até ter perdido a designação com o passar das décadas, mas os seus objectivos estão mais vivos do que nunca e os métodos utilizados refinaram.
Nada indica que a CIA tenha deixado de pagar a jornalistas, mas a realidade actual ultrapassa em muito esse processo e adaptou-se à dinâmica vertiginosa da circulação das mensagens emitidas pelos media, proporcionada pelas novas tecnologias e a multiplicação de plataformas de emissão e partilha de conteúdos.
A agência central de espionagem dos Estados Unidos descobriu um novo ovo de Colombo, que lhe permite até poupar nas despesas: dezenas de ex-operacionais das várias agências de espionagem internas e externas, alguns que desempenharam até recentemente cargos de chefia máxima, transferiram-se e transferem-se para lugares de «analistas», «comentadores» e «especialistas» das grandes cadeias de televisão e dos principais jornais, onde funcionam como fontes inquestionáveis e acima de qualquer suspeita das quais bebem os principais órgãos de manipulação social em todo o mundo. As mensagens da CIA, a propaganda imperial, fluem assim directamente para milhares de milhões de pessoas que consomem unicamente os meios dominantes ditos de informação. Não é verosímil, de facto, que essa nova espécie de «analistas», «comentadores» e «especialistas» de âmbito globalista abdiquem da sua experiência de espiões acumulada durante décadas para se tornarem «independentes» ao sentar-se nos grandes estúdios que propagam veneno embrulhado em verdade, liberdade e rigor de informação.
Um dos casos mais relevantes dos últimos anos é a transformação do director da CIA entre 2013 e 2017, John Brennan, em analista sénior de segurança e inteligência nas televisões NBC News e MSNBC, cargo para o qual transitou mal deixou Langley. Na sua nova posição foi reencontrar Juan Zarate, que foi conselheiro de segurança nacional da Administração Bush. Um serviu Obama, outro o seu antecessor, e assim se verifica não haver querelas partidárias nestas matérias onde o partido é único, tal como a informação dominante e a opinião que induz.
A CNN monopoliza
Não há, porém, como a CNN para integrar espiões, super polícias, operacionais do contra-terrorismo e generais do Pentágono, de preferência com ligações à indústria da morte, nas suas equipas informativas.
É uma realidade que faz todo o sentido. A CNN é o veículo internacional por excelência das mensagens do regime norte-americano, o que acontece desde a sua fundação, e a criação do mito da «informação em directo» servida logo na primeira guerra contra o Iraque – abafando todo e qualquer contraditório. De tal maneira que os jornalistas empenhados em trabalhar «à antiga», isto é, dando a conhecer outros lados da situação foram rapidamente olhados como «cúmplices» de Saddam Hussein. Tal como acontece actualmente aos meios de comunicação verdadeiramente independentes, imediatamente acusados de estarem «ao serviço da Rússia» quando abordam outras realidades que não coincidam com as versões oficiais de Washington, da NATO, da União Europeia e da engrenagem de manipulação social.
Ao serviço da CNN, como «comentadores independentes», estão, por exemplo, James Clapper e Michael Hayden, ex-directores de inteligência nacional norte-americana; Chuck Rosenberg, ex-director da DEA, agência dita antidroga mas com a reputação manchada por vínculos pouco claros com meios do narcotráfico, tal como acontece com a CIA em relação ao ópio/heroína do Afeganistão; James B. Conney, ex-conselheiro do director do FBI; Frank Figliuzzi, ex-chefe de contra-espionagem no FBI; Asha Rangcapo e James Galiano, ex-destacados agentes do FBI; Mike Rogers, ex-presidente da Comissão de Inteligência da Câmara dos Representantes; Steven L. Hall, antigo oficial de operações da CIA com mais de 30 anos de experiência em postos de comando na Eurásia e América Latina; Philip Mudd, ex-operacional da CIA; Andrey McCabe, ex-director adjunto do FBI; John Campbell, ex-supervisor especial do FBI.
Neste mundo selecto existem, com regularidade, algumas mudanças – também elas muito significativas. Por exemplo, Anthony Blinken, ex-conselheiro de segurança de Obama, trocou recentemente o lugar de «comentador independente» da CNN pelo de secretário de Estado, isto é, a segunda figura da administração Biden; e Samantha Vinograd, também membro do Conselho de Segurança de Obama, deixou agora o cargo de «comentadora de política externa» da CNN transitando para o Departamento de Segurança Interna de Biden; Fran Townsend, ex-conselheiro de Segurança Nacional, trocou há pouco a CNN pela CBS News.
A CNN tem, portanto, a parte de leão no recrutamento de membros do aparelho de espionagem, militar e governamental dos Estados Unidos.
Tendo em consideração o número de CNN’s franchisadas que se multiplicam através do planeta – operação à qual Portugal não escapou – entende-se como este processo associa as agências do poder imperial à construção de uma opinião única formatada segundo os interesses do complexo militar, industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos, além da NATO e da União Europeia como seus ramos militar e político.
O recrutamento de personalidades como as constantes da lista não exaustiva aqui publicada é comum a todas as grandes cadeias norte-americanas de televisão, da Fox à MSNBC. E também a jornais olhados como «bíblias» da independência – New York Times, Washington Post e Wall Street Journal, por exemplo. Susan Hennessy trocou recentemente o lugar neste último jornal por um cargo na Divisão de Segurança Nacional da Administração Biden.
E em alguns casos não existe exclusividade. Michael Hayden é uma espécie de deus do comentário. Além da CNN, pode dizer-se que está em todo o lado: MSNBC, Fox News, programa The Late Show, New York Times, Washington Post e Wall Street Journal. Uma rendição absoluta do aparelho informativo à sua experiência de director da espionagem nacional dos Estados Unidos.
Fora dos Estados Unidos, a desclassificação, no ano passado, de alguns documentos governamentais no Reino Unido veio provar que a imprensa do país, «do Times ao Guardian, ajuda rotineiramente a diabolizar Estados identificados pelo governo como inimigos enquanto tenta branquear os que são aliados». A conclusão é da publicação Declassified UK.
De acordo com a mesma fonte, «o público é bombardeado com opiniões e informações seleccionadas apoiando as prioridades dos fazedores de política; Os media fornecem de forma rotineira informação deturpada e estão longe de actuar com independência».
É o que temos
À luz destes factos indesmentíveis, e que desmontam a «verdade» cultivada pelo aparelho de comunicação funcionando à escala globalista, não temos de nos surpreender com o tom histérico da abordagem da actual situação na Ucrânia e a «iminência», que já se prolonga há alguns meses, de uma invasão russa.
Aos consumidores dos órgãos de manipulação social basta saber que a Rússia quer ocupar a Ucrânia, não se sabendo bem porquê, talvez porque sim, é uma inerência própria dos «maus». E, para concretizar a invasão, 100 mil efectivos militares russos movimentam-se na fronteira com o território ucraniano. Então, desde âncoras de telejornais a «especialistas» e «analistas», passando por peças montadas supostamente informativas, todos tratam o tema sob este único ângulo, máquinas repetidoras das opiniões de espiões reciclados em «comentadores» actuando nas imperiais cadeias de televisão e outros meios.
A razão assim gritada não tolera contraditório. E ai dos que tentam, baseados em factos comprovados, demonstrar que há muito mais para saber sobre o actual cenário ucraniano. Quem o fizer é «cúmplice» dos russos, quiçá um disseminador de «mensagens de ódio» prontas a cair na alçada censória das redes sociais.
Por este caminho, o cidadão que se considera informado ao frequentar a comunicação dominante desconhece, por exemplo, que o governo ucraniano é sustentado por grupos paramilitares nazis, os mesmos que integram as forças de repressão que fazem guerra às populações das regiões do Leste do país, onde grande parte dos habitantes são russófonos.
Não é por isso, porém, que existe o risco de uma intervenção russa: a situação tensa prolonga-se há sete anos, desde o golpe dito «democrático» dado em Kiev pelos Estados Unidos com o apoio da União Europeia.
Outro dos comportamentos manipuladores assumidos pela comunicação dominante é a desinformação em torno do Acordo de Minsk sobre uma saída política para a situação ucraniana. Nos termos do documento, o governo de Kiev e os representantes das populações de Donetsk e Lugansk comprometeram-se a encontrar uma solução para os seus diferendos que proporcione uma autonomia àquelas regiões dentro do que está previsto na lei ucraniana. A Rússia, ao contrário do que é comum ouvir-se e ler-se, não é parte activa: actua como um dos países mediadores, tal como a França e a Alemanha.
Ao abordar a situação existente na região os meios de comunicação evitam tratar e comentar a ideia de que as tropas russas na fronteira com a Ucrânia se movimentam com pleno direito, porque estão no interior do seu país. Já o mesmo não pode dizer-se das tropas da NATO, que estão fora dos territórios das suas nações, colocadas ameaçadoramente nas imediações das fronteiras com a Rússia. Explica a comunicação que temos, fazendo eco de generais, espiões e políticos sem coluna vertebral, que esse gigantesco aparelho militar é para nos «defender», tal como foi invocado para as agressões ao Afeganistão, Iraque e Líbia. E o cidadão comum, contaminado e intoxicado, acredita.
Também não é explicado aos envenenados leitores e telespectadores que os Estados Unidos e o seu braço armado da NATO estão ansiosos que a Rússia proceda à sempre «iminente» invasão. Estão mesmo dispostos a provocá-la e, para isso, há indícios de infiltrações de agentes especiais de países da NATO no Leste da Ucrânia para cometerem um atentado, admitindo-se que com armas químicas, De acordo com a eventual estratégia atlantista, a acção criminosa seria atribuída por Moscovo ao regime de Kiev, seguindo-se a intervenção militar para proteger as populações do Donbass.
Sejamos lúcidos, ao contrário do que pretende a manipulação social: que interesse tem a Rússia numa guerra quando se encontra em fase de desenvolvimento económico e de afirmação como grande potência do multilateralismo, a par da China? Uma Rússia empenhada em processos de integração multifacetada para Oriente carece de estabilidade, não do envolvimento numa aventura militar.
Aliás, a recente tentativa de «revolução colorida» no Casaquistão, através de um golpe à maneira da Praça Maidan em Kiev, teve a ver com o objectivo de multiplicar os acontecimentos que obriguem Moscovo a desperdiçar meios e energias necessários para desenvolver a estratégia traçada. Porém, desta feita Estados Unidos e aliados saíram-se mal: a lição da Ucrânia foi aprendida pelo regime russo – a resposta estava preparada e funcionou.
Os Estados Unidos e a NATO têm
efectivamente todo o interesse
E não o deseja porque, nessas circunstâncias, a Rússia seria também obrigada a rever a sua presença militar na Síria para ajudar o governo legítimo a combater o terrorismo objectivamente ao serviço dos Estados Unidos e da NATO, que têm assim mais uma razão para empurrarem Moscovo em direcção à Ucrânia.
A resposta à hipotética acção russa no território ucraniano, tudo o indica, não seria dada pela colocação de tropas norte-americanas no terreno – coisa que até os desinformados consumidores da informação asfixiante já sabem. O que desconhecem é a previsível intenção da NATO de promover e treinar uma miríade de estruturas armadas de «resistência ucraniana», a partir dos grupos paramilitares nazis, para criar, segundo militares norte-americanos, um «pântano» onde se enterrem as tropas russas invasoras. Isto é, um «novo Afeganistão» agora desenvolvido pelo apoio ocidental a «combatentes da liberdade» oriundos dos sectores saudosistas de Hitler no lugar dos terroristas islâmicos que deram origem à al-Qaeda.
A comunicação social também tem silenciado, certamente seguindo o comportamento dos espiões transformados em «comentadores», a proposta apresentada pela Rússia aos Estados Unidos de um tratado escrito capaz de garantir a paz e a segurança entre os dois países desde que a Ucrânia não seja admitida na NATO e esta aliança não instale mísseis nas fronteiras com o território russo. Proposta razoável sabendo-se que a seguir ao desmembramento da União Soviética a administração do presidente William Clinton se comprometeu com Moscovo a manter o status quo da NATO, significando isso que a Aliança Atlântica não se deslocaria para Leste na sequência da derrocada do muro de Berlim. Do compromisso de Washington, pela voz de Clinton, resta aquilo que sempre foi: uma deslavada mentira.
Os Estados Unidos evitam dar qualquer resposta à nova proposta de Moscovo. Isso diz muito sobre os reais interesses de Washington servidos pela crise actual – que é artificial e cultivada de Ocidente para Oriente. O que ajuda a explicar a movimentação das tropas russas no interior das suas fronteiras, de facto para as defender.
O tratamento do problema da Ucrânia é realmente um caso exemplar da maneira mistificadora, desinformativa, alienante e até atemorizadora como a comunicação social dominante se comporta.
É evidente que os múltiplos ângulos sob os quais os acontecimentos podem ser vistos obrigariam os consumidores de informação a pensar. E pensar é tudo quanto os poderes dominantes pretendem evitar – como também se percebe na actual campanha eleitoral portuguesa – porque assim não conseguiriam cultivar a robotizada opinião única.
Para isso é essencial a informação do tipo fast food, cozinhada com sound bites, frases feitas, mentiras repetidas e métodos próprios do marketing publicitário. Uma lavagem cerebral, em suma.
Uma tarefa onde pontificam brigadas de espiões reciclados em «analistas» fazedores de opinião e os respectivos batalhões de máquinas repetidoras que envenenam o mundo. Um sistema que faz parecer os primeiros tempos da «Operação Mockingbird» uma brincadeira de crianças.
*José Goulão, Exclusivo AbrilAbril
Imagem intermédia: Um casal escapa de uma casa em chamas após um bombardeamento da força aérea ucraniana em Luganskaya, Leste da Ucrânia, em 2 de Julho de 2014. Os bombardeamentos sistemáticos de alvos civis pelas forças de Kiev contaram com o silêncio cúmplice do Ocidente. CréditosValery Melnikov / Valery Melnikov
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