quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Angola | A legitimidade da ruptura histórica e a tentação da revolução colorida!...

“CÍRCULO 4F” – APONTAMENTO TRÊS SOBRE A PEDAGOGIA, O HUMANISMO E A HISTÓRIA QUE URGE SABER BALANCEAR!

Martinho Júnior, Luanda

Em Angola o 4 de fevereiro de 1961 em nada se identifica com uma “revolução colorida” ou uma “primavera árabe” frutos de artificiosos processos do “hegemon” unipolar desde os idos anos de 90 do século passado!

Os patriotas angolanos que compuseram o Processo 50, os “indígenas” corajosos que irromperam contra o colonialismo de catana na mão a 4 de Fevereiro de 1961, dando o exemplo inspirador do corpo ao manifesto e a vanguarda em que um dia se assumiu o MPLA em torno do Presidente António Agostinho Neto, são substantivos sinónimos de legitimidade revolucionária num continente pasto da bárbara orgia colonial e neocolonial que leva séculos até se dissipar!

As “revoluções coloridas” e as “primaveras árabes” são apenas contrarrevolução no seu pior estilo alienante, o estilo que comporta o alinhamento vassalo de elites por via de processos dominantes duma hegemonia unipolar aproveitadora de toda essa devassa colonial e neocolonial, a ponto de dar continuidade à cultura retrógrada de arregimentar etno-nacionalismos e/ou fundamentalismos religiosos que são inspiração sua, desde os tempos em que as potências coloniais já nem forças próprias tinham para levar a cabo a “sua missão civilizadora”, nem forças tinham para manter seus pérfidos impérios africanos produtos da mais bárbara das conferências, a Conferência de Berlim!...

Para alimentar a fábula, tiveram de recorrer à “africanização da guerra” e essa foi a sua derradeira expressão, muito mais perigosa contudo nas suas sequelas!...

Etno-nacionalismos como o da UNITA são de fácil osmose na preparação de mais uma “revolução colorida”, desta feita no Trópico de Capricórnio, por via de arruaças, ou de gestos inconstitucionais, ou desrespeitosos de democracia, gestos de faca na boca, ou duma declaração de fraude eleitoral em Angola em tempo julgado oportuno!…

Todavia essa eleição serve também para que o MPLA não seja uma mera fluência de clãs, ou dum etno-nacionalismo quimbundo, conforme um dia em desespero de causa tentou levar a cabo o colonial-fascismo português, a ponto de ter havido o fermento fraccionista desde as prisões coloniais e da asfixia da Iª Região Política Militar, com o aproveitamento duma propaganda continua estimulada a partir de Lisboa, de tal ordem que tem algum eco em Angola por parte daqueles que têm sido sempre o problema e têm dado provas que jamais pretendem fazer parte da solução progressista que hoje ainda mais se impõe!

Os fenómenos inerentes ao fraccionismo do 27 de Maio de 1977 (que abrangem substractos humanos muito mais alargados dos que levaram a cabo a tentativa do golpe em si), estão hoje oportunisticamente presentes: ou os militantes do MPLA conseguem manter acesa a chama da vanguarda (e para isso há todo o Programa Maior a cumprir numa longa luta contra o subdesenvolvimento), ou estão a conduzir-se para o pântano de mais um etno-nacionalismo incapaz de identidade nacional e incapaz de mobilização colectiva de todos os patriotas angolanos e não mais de mercenários a cavalo numa terapia neoliberal que chegou ao nível dos mais pesados modelos de corrupção!…

01- A doutrina Rumsfeld/Cebrowski que surgiu depois dos ataques às torres gémeas do Word Trade Center de Nova-York como uma das consequências sociopolíticas disponíveis em função dos interesses e conveniências da aristocracia financeira mundial, tornou-se num mecanismo facilitador em relação a doutrinas de acção como por exemplo a de Gene Sharp, fermento de “revoluções coloridas” e “primaveras árabes” enquanto práticas de conspiração capazes de derrubar poderes inconvenientes que podem emergir na ordem das tão frágeis “democracias representativas” no imenso espaço à mercê da cobiça do “hegemon”!

A dialética do poder dominante da hegemonia unipolar tornou-se numa constante prática de conspiração contra o Sul Global o que fez prevalecer a IIIª Guerra Mundial não declarada, a fim de que o caos, o terrorismo e a desagregação fossem hoje determinantes no sentido duma “guerra eterna” e sem fronteiras!

O estado de subdesenvolvimento numa ultraperiferia económica global, atira África, particularmente o Sahel e o Sahara onde a ausência de água implica culturas de nomadização em alguns dos desertos mais quentes do globo, para o caos, para o terrorismo e para a desagregfação!

Dividindo, dividindo e dividindo, dividindo até às migalhas, era possível a partir dos primeiros anos da década de 90 do século XX… dividir para melhor equacionar a preços baixos o valor da extracção de produtos energéticos e minerais, num momento em que a Mãe Terra deixou de conseguir repor em tempo útil aquilo que a voracidade da barbárie consumia e continua a consumir irracionalmente!

Foi assim que, se tornou também possível ao “hegemon” unipolar, revitalizar as linhas etno-nacionalistas em torno de “elites locais” que embarcaram nas linhas de força da desagregação, algo que o Africom comprovou na sua estreia contra a Jamairya Líbia, sabendo de antemão que essas tensões artificiosas se iriam alastrar a todo o Sahel e iriam possibilitar a disseminação da jihad islâmica na direcção sul, até à África Austral!

No Sahel a jihad ganhou berço e força nas mais vulneráveis nações e estados da Terra, os que além do mais têm falta crónica e secular de água e por isso suas sociedades possuem milhões de párias e de nómadas em busca de miragens, constituindo a cauda dos Índices de Desenvolvimento Humano!

Africom/NATO nas suas tentaculares expressões africanas, passaram a dar gás aos etno-nacionalismos e aos fundamentalismos religiosos, não só de forma a impedir a continuidade do movimento popular de libertação em África motivado na luta contra o subdesenvolvimento e seguindo a lógica com sentido de vida, mas também por que os etno-nacionalismos, experimentados com tanta fertilidade na plataforma central que é a República Democrática do Congo desde a sua independência de bandeira, são por si condicionantes de autodeterminação, independência e soberania nos estados com poder central emancipador… (desde logo a memória do assassinato de Patrice Lumumba)!

A autodeterminação, a independência e a soberania dos estados colonizados no âmbito da Conferência de Berlim, continuavam a ser insuportáveis para os que dividiram o espaço continental africano em função dos interesses das potências coloniais europeias e por conseguinte dar gás aos etno-nacionalismos e/ou aos fundamentalismos religiosos passou a ser uma prioridade para o “hegemon” unipolar, ainda que estivessem formatadas as “democracia representativas”!...

Os etno-nacionalismos comportam hoje um garante: a sua expressão está a meio passo duma qualquer “revolução colorida” ou duma “primavera árabe”, até por que em África o subdesenvolvimento é de tal ordem que nem é preciso inventar argumentos!

Em parte é isso que se passa com algumas revoltas militares que servem para depor elites fantoches, para colocarem no poder outras ainda mais dóceis e isto apesar de alguns golpes militares começarem a assumir legitimidade, tal o estado de prostração em que se encontram as sociedades africanas dos quais os militares também fazem parte… (só o “hegemon” unipolar separa os militares dos civis e fazem tudo para que nunca seja possível medrar uma aliança cívico-militar em torno dos poderes de estado)!...

02- Angola teve a sua amarga experiência em função desse critério, antes de o doutrinarem em função da “representatividade” do “hegemon”, entre 1992 e 2002, quando Savimbi partiu para o choque neoliberal, tirando partido do fim da República Popular de Angola, do fim do Partido do Trabalho, do fim das FAPLA, do continuado processo de fragilização da Segurança do Estado (sobretudo desde Março de 1986 até 2017) e das características do poder do Presidente José Eduardo dos Santos, de base funcional pragmático-neoliberal!

Esse poder pragmático-neoliberal foi construído subtilmente em função das tensões entre a vanguarda da ala histórica do MPLA, cujo núcleo duro expressou sua vontade nas assinaturas que haviam proclamado as FAPLA a 1 de Agosto de 1974 em torno do Presidente António Agostinho Neto, os “do exterior”, face à ala “do interior”, em parte filtrada pelo esforço de “africanização da guerra” no estertor do colonial-fascismo, com sintomática sensibilidade em algumas redes de Luanda, de Catete, dos Dembos e da Iª Região Político Militar, onde a malha de opressão-repressão foi avassaladora sobre o campo nacionalista!

Savimbi por seu turno, quando devia integrar a luta armada de libertação nacional, colocou-se ao serviço do colonialismo português (1966/1974), quando devia contribuir para lutar pelas independências da Namíbia e do Zimbabwe e ao mesmo tempo acabar com o “apartheid” e sua pérfida “border war” a fim da África do Sul alcançar a plataforma da “democracia representativa”, aliou-se à irmandade africaner retardando o colapso institucional de sua obra, (1974/1991), quando devia reforçar a identidade angolana, tornou-se num dilecto “freedom fighter” fantoche do neoliberal Presidente Ronald Reagan (1981/1991) e quando enveredou pelo choque neoliberal em 2002, sabia quanto o estado angolano estava já enfraquecido pela “obrigatória” deriva levada a cabo pelo Presidente José Eduardo dos Santos e quanto poderia utilizar o enlace com o regime de Mobutu, em função das capacidades colocadas à sua disposição a fim de alimentar a “guerra dos diamantes de sangue”, autêntico choque neoliberal!

Toda essa trajectória de Savimbi assentou numa base etno-nacionalista exacerbada, obrigando o poder de estado a conformar por seu turno o seu carácter ao domínio pragmático-neoliberal a ponto de, depois do período do choque neoliberal protagonizado pelas hostes de Savimbi, ter enveredado por uma terapia neoliberal que arregimentou seus próprios clãs a ponto de elevar a fasquia da corrupção ao nível que ela atingiu, numa manobra em tudo similar a mais um etno-nacionalismo que se não era quimbundo imitava-o muito bem!

Criar uma burguesia nacional a partir duma clientela, fez de facro fermentar a tendência para a constituição de clãs, cuja identidade mais nada tinha a ver com o povo angolano, muito pelo contrário,tem que ver com o mercenarismo galopante que se viveu!

A influência sociopolítica a partir de interesses externos em torno de projectos de natureza etno-nacionalista foi intensa, primeiro para acabar com a República Popular de Angola, depois para moldar o estado angolano às conveniências e interesses do “hegemon” unipolar de modo a que esse estado assumisse a sua órbitra, “sem remissão” e “sem retorno” (2002/2017), desde logo na mentalidade dos clãs que passaram a ser veladamente constituídos, mas com o tempo cada vez mais abertamente expostos!...

Neste momento a mentalidade dos clãs que foi inculcada entre 2002 e 2017 ao poder e ao MPLA, reproduz-se nos sinais que se vão paulatinamente apercebendo, com notícias a propósito, daqui e dali: a aproximação de Isabel dos Santos ao Presidente português da UNITA, Adalberto da Costa Júnior, “candidato” à Presidência da República de Angola nas eleições deste ano!

A mensagem inspiradora do Círculo 4F (o 4 de Fevereiro de 1961 em Angola e o 4 de Fevereiro de 1982 na Venezuela) não se compadece com etno-nacionalismos nem desse género, nem de qualquer espécie, antes é estimulada pela interpretação patriótica levada a cabo numa luta sem tréguas pelo Simon Bolivar angolano, o Presidente António Agostinho Neto!...

03- É por isso que em relação aos acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961, aqueles que professaram sempre a esteira étnica enquanto sensibilidade sociopolítica não querem que a mensagem patriótica de vanguarda do 4 de Fevereiro seja uma das fontes originais da inspiração do movimento popular de libertação em África e das duas, uma: ou preocupam-se com todas as evidências em comprovar que o MPLA não foi nem actor, nem protagonista directo do acto de ruptura, ou então procuram a todo o transe nem sequer abordar a efeméride!...

Neste 4 de Fevereiro de 2022 o jogo do etno-nacionalismo que tem o rótulo de UNITA, que agora é um apêndice dos serviços de inteligência da Europa ao nível dos interesses das oligarquias de Portugal, de França, de Itália e de franjas mais ultraconservadoras do Vaticano a cheirar a Concordata de Salazar com a Santa Sé, está a descoberto, com um único bónus: põe também a descoberto aqueles que no MPLA têm tido tanta dificuldade em assumir a vanguarda que ele um dia foi, a ponto de enveredar pela República Popular de Angola e com isso ter sido o estado angolano capaz duma aliança cívico-militar por via duma aliança operário-camponesa que morreu quando morreu o embrião socialista!...

Alguns esquecem ainda que os padres católicos que também se inspiraram patrioticamente com e no 4 de Fevereiro de 1961 não foram fundamentalistas nos seus propósitos, como são as alas da Igreja Católica que fazem parte do Le Cercle, ou as que em nome da religiosidade se esgotam no etno-nacionalismo, no tribalismo da pior espécie!

Se o MPLA alguma vez se deixar enredar na via duma luta interna de clãs, ou numa via que se aproxime dum etno-nacionalismo qualquer (quimbundo que ele seja), então o estado angolano será incapaz de consolidar a via da paz, da justiça social, da luta contra o subdesenvolvimento conforme ao seu Programa Maior, do combate às assimetrias (em grande parte derivadas da acruação de Savimbi e seus acíolitos), da incessante busca de identidade nacional, da capacidade de lógica com sentido de vida que tão carente está de saber equacionar o respeito pela água interior da região central das grandes nascentes, da construção duma cultura de inteligência patriótica que garanta uma geoestratégia de desenvolvimento sustentável com segurança vital para as futuras gerações!

Também não há que dar espaço algum a religiosidades fundamentalistas, mas a religiosidades progressistas que respeitem o princípio de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste!

A mensagem inspiradora do Círculo 4F está a pôr em cima da mesa uma parte substancial do que está neste momento em causa e é a altura de melhor colectivamente se reflectir para melhor se decidir e de forma progressista se voltar a reequacionar!...

Há um longo caminho para tornar não só possível um renascimento africano, mas para equacioná-lo numa lógica com sentido de vida salvaguardando futuro e segurança vital para as vindouras gerações!

Que ninguém confunda a legitimidade dos dois 4 de Fevereiro, o de 1961 e o de 1982, com a bárbara conspiração duma artificiosa “revolução colorida”, ou a pérfida vocação duma tácita “primavera árabe”!

4 de Fevereiro e Praça Maidan têm sinais profundamente contrários e enquanto a uns assiste legitimidade, nos outros há iuma carga pesada de ilegitimidade e ilegalidade!

Martinho Júnior, 7 de Janeiro de 2022.

Imagem: Uma das “ANATOMALIAS” da autoria do pintor angolano Paulo Kussy – https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/anatomilias-de-paulo-kussy

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