segunda-feira, 14 de março de 2022

ASSIM FALAVA ZARATUJI O REFUGIADO

Arturovich Orlandov

Vitória! Vitória! Já sou refugiado ucraniano. Meu nome é Arturovich Orlandov. Abdiquei do Queiroz que é nome de Constantinopla, a que herdou os livros de Alexandria e erigiu a catedral de Santa Sofia. A partir de agora sou senhor de cama, mesa e roupa lavada, tudo à custa do humanismo supinamente amoroso do Ocidente. Nunca se viu nada igual. A União Europeia extinguiu o desemprego, confiscou a pobreza, interditou a fome, decretou o fim dos sem-abrigo. Tudo para honrar os heróis ucranianos que se batem bravamente pelo nazismo universal. Aumentaram cem por cento o preço dos combustíveis mas não se pode querer tudo.

Para recompensar os meus benfeitores fiz umas manigâncias secretas e transformei a OTAN (ou NATO) num país com fronteiras, um latifúndio com solo interdito aos mísseis russos, a pátria dos nazis expatriados da Ucrânia. Não fiz mais do que a minha obrigação. Ai dos russos se tocarem num centímetro do bloco militar que transformei no lar de todos nós. 

Informo em primeira mão que mexi os cordelinhos por baixo da mesa, andei de sacristia em sacristia, tive conversas de orelha a orelha com curas reaccionários e consegui algo que de tão grandioso merece uma estátua para este ucraniano refugiado que assina Arturovich Orlandov. Consegui mandar para a Ucrânia uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Se perdermos a guerra, desta vez não falha: A Rússia vai ser convertida ao Sagrado Coração de Maria. Mas tenho fé que ganhamos a guerra e ganhamos a Rússia. Escrevo estas palavras e benzo-me com os olhos em alvo segundo o rito da Igreja Ortodoxa Grega, ramo ucraniano. Amém!

Vou ser franco. Desde que me transformei em refugiado ucraniano fiz um pacto com o Diabo (Todos tiveram pai/Todos tiveram mãe/mas eu que nunca princípio nem acabo/Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo) e acabei com o poderio russo. Os russos andavam para aí com bazófias, sonos a maior potência militar do mundo, temos o maior arsenal atómico do mundo e afinal, nada. Para atacarem um país inviável e um estado falido, tiveram de pedir armas emprestadas aos chineses. Fui eu. Fui eu. Com uns pozinhos de perlimpimpim fiz desaparecer as armas, os soldados, os sargentos e os oficiais russos. 

A porta-voz da Casa Branca não esteve com meias medidas e denunciou que Moscovo anda a pedinchar armas à República Popular da China. É o triunfo da civilização ocidental à custa cá do Arturovich Orlandov. Até agora os mais importantes do Negage eram o Faria, os Manos Rocha, o Professor Carlos Mariano, o antigo ministro e meu amigo Aníbal Rocha e o Rogério Tuti. Agora eu também entrei para o galarim. O Velho Tuma tinha razão, eu havia de enganar até a Lua Cheia, convencendo-a de que esteve sempre praticamente vazia. 

Hoje deu-me para falar de heróis. Entre nós, revelou-se, em todo o seu esplendor, o Ismael Mateus. Como bom conselheiro de estado, está sempre atento à realidade política e social. Não deixou passar em branco (salvo seja) a data do aniversário da UNITA. Habilidosamente não disse qual é. Um portento de sabedoria. Eu tenho registo, no meu canhenho, de umas mil datas de aniversários do Galo Negro.

 Umas são mais importantes que outras, mas eu registei todas. A mais importante foi aquela em que o criminoso de guerra Jonas Savimbi, levado pela mão do padre Oliveira, foi comer churrasco com os madeireiros do Munhango. Logo a seguir, o encontro dele com uma delegação da PIDE. Depois a audiência com o general Bettencourt Rodrigues no edifício do comando da Zona Militar Leste, cidade do Luena. 

Data memorável foi a instalação da direcção da UNITA em Cangumbe. O general Luz Cunha pôs militares a guardar aqueles preciosos colaboradores na luta contra os libertadores do MPLA. Leiam as cartas que Savimbi trocou com o seu anjo da guarda, capitão Benjamim de Almeida. Numa delas, o herói do mar Savimbi pede um bom creme para os pés e umas botas de cano alto. E o chefe do Galo Negro atento, venerando e obrigado, garantiu aos chefes colonialistas que havia de dar o couro e o cabelo pela pátria portuguesa do Minho a Timor. Falhou. 

Outra data importantíssima de aniversário é aquela em que Savimbi e seus apaniguados chegaram a Pretória, com a corda ao pescoço, jurando pelo sangue do boi que haviam de acabar com a República Popular de Angola. Também falhou. Ainda hoje a Irmandade Bóer comemora tão importante aniversário. Ficaram sem Savimbi mas agora têm uma fartura de nazis ucranianos prontos a lutar pelo nazismo em qualquer parte do globo terráqueo. Os angolanos são duros de roer e não é um bandido qualquer que os vence. O engenheiro à civil Adalberto da Costa Júnior fica desde já avisado e informado.

 Ismael Mateus também merece ser refugiado Ucraniano. É um herói completo, até sabe palavras estrangeiras. Hoje publicou um salmo notabilíssimo no Jornal de Angola onde reclama tachos mais ou menos repletos de manjares para a Oposição. Assim as propostas têm mais qualidade e Angola vai em frente. Diz o azougado escriba que a UNITA ensaiou “a criação de um shadow cabinet, mas a boa vontade sempre ficou aquém dos resultados”.  

E u, refugiado ucraniano, quando for ao encontro dos grandes do mundo livre, atiro-lhes logo com esta: Eu sou um shadow cabinet! Os gajos ficam logo de boca aberta. E já decorei esta parte do discurso do herói Ismael Mateus: ”Um estatuto da oposição deve ser um entendimento nacional e, se possível, com cobertura constitucional para que os representantes da minoria possam elaborar também um plano alternativo de Governo, como parte da sua actividade contestatária e de efectivação do contraditório político necessário ao crescimento do país”. 

Perceberam? Não faz mal. Eu também não e sou refugiado ucraniano, sei tudo, posso tudo, digo tudo, bebo tudo, como tudo e o que sobra vai no mar. Que saudades de Cidrálhia, Kazukuta, Kaboko Meu, Invejados. Assim falava Zaratuji, o herói de Nietzsche que se fosse vivo era refugiado ucraniano e dedicava pelo menos um ano a estudar o texto do Ismael Mateus. 

Só descansarei quando o bué de bocas for agraciado com o título de refugiado ucraniano. Já tenho nome para ele: Ismaelov Mateusich. Nós, os refugiados ucranianos, somos imparáveis, como a OTAN (ou NATO) reforçada com a força telúrica de Joe Biden e o amor acrisolado do Tio Celito pela pátria ucraniana. “Cesse tudo o que a Musa antígua canta,/Que outro valor mais alto se alevanta”. Versos de Camões, o refugiado que teve a desdita de não ser ucraniano e, por isso, morreu à fome, ignorado pela sacrossanta civilização ocidental.

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