domingo, 17 de abril de 2022

Portugal | ERRO OU PATRANHA INTERESSEIRA

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

É necessário, justo e possível aumentar os salários da maioria dos portugueses? Sim, é uma das medidas de que o país não pode prescindir, inserida numa estratégia que vise a recuperação socioeconómica, a valorização do perfil da economia e a capacitação do Estado para que este nos assegure direitos fundamentais.

Esta era a posição do primeiro-ministro (PM) quando abordava objetivos estratégicos do PRR e grandes desafios nacionais.

Os dirigentes patronais, ao contrário do que fizeram antes, juravam perante os impactos da pandemia que o crescimento económico tinha de ser obtido pelo aumento da produtividade e não pelo crescimento do número de trabalhadores com baixos salários. Hoje, invocando os impactos da guerra, viraram tenores do coro que proclama: "Um aumento dos salários agora desencadearia uma espiral inflacionista".

Estranhamente, António Costa desencadeou este coro. O líder parlamentar do PS e alguns governantes fazem comparações trapaceiras entre a crise inflacionária dos anos oitenta do século passado e esta de agora. Nos anos oitenta, a inflação nascia associada à estagnação económica e com um desemprego elevadíssimo, e não tínhamos a globalização no atual plano. A inflação de hoje nasceu no quadro da pandemia: resulta, fundamentalmente, de ruturas de cadeias de abastecimento globalizadas, tendo como primeiro problema a falta de oferta em diversas áreas e produtos. Ao contrário do que se passava nos anos oitenta, os níveis de emprego e crescimento até são razoáveis.

Não se escamoteia o acrescento de problemas provocados pela guerra, mas não está claro quem e como, nas atividades económicas, vai ganhar ou perder. Uma coisa é certa: se o país ficar sujeito a uma política monetária de aumento de taxas de juros e de contração salarial, cairemos numa crise profunda.

A atualização salarial em contexto de inflação não é necessariamente inflacionista. Mas a falta dessa atualização é um esbulho. Defender a estagnação salarial em contexto de inflação é o mesmo que propor a redução do peso dos salários (e o aumento do peso dos lucros) no produto interno bruto. A comunicação social tem obrigação de fazer um mínimo de análise crítica sobre estes temas.

Pensemos um minuto a partir de um exemplo simples. Suponha o leitor uma unidade do bem X cujo custo de produção é 100 e o preço de venda 150. O valor acrescentado, a repartir entre salários e lucros é 50 (150 menos 100), por exemplo, 20 para salários e 30 para lucros. Suponha agora que o custo na produção aumenta 20% e que o empresário decide repercutir esse aumento percentual no preço de venda. Temos agora um custo de produção igual a 120 para um preço de venda de 180. O valor acrescentado é, pois, de 60. Se os salários se mantiverem estagnados, os lucros sobem de 30 para 40. Veja agora o que acontece se os salários forem atualizados também em 20%. Os salários subiriam para 24 e os lucros para 36. O preço continuaria a ser, sempre, 180.

Os salários devem ser atualizados pelo menos com o valor da inflação mais os acréscimos de produtividade. Fazer o contrário é transformar inflação em recessão, empurrar para a emigração a "geração mais qualificada", privar o SNS, a Escola, as empresas e o Estado de profissionais altamente qualificados, e colocar muitas pessoas na pobreza.

Será que o Governo estará disposto a corrigir o erro, ou preferirá alinhar na patranha interesseira?

*Investigador e professor universitário

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