terça-feira, 31 de maio de 2022

A POESIA ASSASSINA NA RUA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Eurico Manuel Correia Gonçalves, Kiko ou China. Comandante Eurico. Assassinado pelos golpistas no dia 27 de Maio de 1977. Era o vice-chefe do Estado-Maior General das FAPLA para o Pessoal. Angola estava em plena guerra contra os invasores estrangeiros a Norte (Mobutu) e Sul (regime racista de Pretória). 

Ainda estudante do Liceu Salvador Correia e no seio da Tertúlia da Maianga, começou a escrever os primeiros poemas com o pseudónimo Emanuel Corgo. E de Eurico, Manuel. Cor de Correia e Go de Gonçalves. Quando foi mobilizado para o Funchal, como aspirante do Exército Português, trocámos correspondência. Em algumas cartas, vinham poemas. Quando foi mobilizado para a guerra colonial como oficial miliciano, ele desertou e juntou-se à guerrilha, depois de fazer um curso de comando na Coreia do Norte. 

No maquis da II Região (Cabinda) produziu grande parte da sua obra poética. Nesta peça, que se segue, o poeta regista a chegada da calmaria “sobre as cinzas de um amor/que se esfumou”. Não foi o amor mas a vida toda que esfumou com a sanha assassina dos golpistas de 27 de Maio de 1977.

MUTAÇÕES

Maria amou João

João amou Maria

veio o sol veio o vento

e veio a chuva

seca

calema 

e calmaria

sobre as cinzas de um amor

que se esfumou.

Emanuel Corgo (Comandante Eurico)

Avelino Mingas era um dos maiores atletas angolanos de todos os tempos. Foi estudar para Portugal e lá continuou a bater recordes no Atletismo. Um dia partiu para o exílio e aderiu à luta armada de libertação nacional. Nasceu o poeta Gasmin Rodrigues e o guerrilheiro Saidy Mingas. Na peça que vos apresento reclama: “Não me ensinem a estar calado/que não quero retratar-me sombrio/na gargalhada silenciosa dos amantes”. 

Oiçam a voz daquele que foi sequestrado pelos fraccionistas no Eixo Viário e levado para o Sambizanga, onde os golpistas o torturaram e mataram, faz hoje 45 anos: 

DIMENSÃO

Fui eu feito eu procurando-me

na encruzilhada desconhecida dos valores;

e foi o caso da minha certeza que afagando-me

encontrou-se atrás de um sofisma e um “porquê?”

por responder.

 

Cruzei-me no movimento inacabado do abandono

esbocei o sorriso surdo dum silêncio

entregando-me à história recordação dos factos.

 

Tentaram ensinar-me a ser bom escravo

Saber oferendar a carícia numa mágoa escondida

tentar um “quê?” tropeçado no vazio mutilado

dos que se perdem esquecidos no tempo.

Quem disse que devo descrever

a curva interrogativa da história?

 

Não me ensinem a estar calado

que não quero retratar-me sombrio

na gargalhada silenciosa dos amantes.

 

A razão violentada dos espaços 

sensibilizou-me perdido aquém de mim

buscando, buscando-me, encontrando-me

feito verdade e uma vontade férrea.

 

Deixei-me amar a latitude humana

dos corpos paridos vivos para a eternidade

no estertor liberdade do esclavagismo.

 

Não quero, não mendigo valores meus roubados

Nem reclamarei mais do que me devem.

 

E hão-de aprender a situar-me

na história, na história da humanidade que escrevi

deixando-me o podium dos valores negados

que minhas mãos esculpirão feitas amor.

 

E ninguém! Mas ninguém.

 

Ninguém há-de ensinar-me

as dimensões da nossa grandeza em tempo

nem delimitar os espaços certeza

do nosso estar na história.

 

Um a um, todos, juntos

alongados na curva sinuosa do tempo

dedilharemos as notas da segurança

sobre a pauta ensanguentada dos direitos resgatados.

Estocolmo, Maio de 1973 Gasmin Rodrigues (Saidy Mingas, nascido Avelino Mingas)

Em 1977, um jovem da brigada de literatura estava em Havana e lá compôs este poema que vos deixo. É filho do meu mestre, o jornalista Acácio Barradas, ele também um grande poeta. Filhos dos meus amigos, meus filhos são e meus amigos serão para sempre. Este meu amigo está preso. Chama-se Carlos São Vicente. Calma, calma, “enfraquece a abelha do fel” mas ainda fazemos trovas à liberdade. Apreciem a sua arte poética, de 1977, há 45 anos.

TO YOUR HEALTH

África 

das praias

montanhas escarpadas

plantações de cana

sacarina

e espaços áridos das gazelas

terra aquecida

e iluminada 

um sol alegre e ameno

qual she

         ser

         som

ouro diamante duro

povo puro

e vertical

neste límpido

E verdazul céu

são

sun

sly

as chamas sobem sem fumo

joanes do burgo

salis burra

ardem na mesma certeza

 

para o amanhecer

o homem de verdade

leva sol

          sal

          sul

nos olhos no coração na mochila

 

no Cabo Orange Transval

Natal

não sub 

        sad

       sós

soalheiro e temperado

chuva com aguaceiros

 

vila flor viva

deixa o delicioso desmazelo deixa

vai florejar vai

com sap

          sim

         sus!

seu crescente perfume + mel + luz

enfraquece a abelha do fel

São Vicente Havana, 1977

Sem comentários:

Mais lidas da semana