A perseguição e a limpeza étnica dos palestinianos prossegue na Palestina perante o silêncio dos poderes mundiais, a começar pela ONU e respectivo secretário-geral, e pelos incansáveis defensores dos direitos humanos.
José Goulão | AbrilAbril
A primeira vez que estive em Jenin, na parte norte da Cisjordânia ocupada por Israel, foi em Fevereiro de 1988, já lá vão 34 anos. Vivia-se então o início do chamado primeiro Intifada ou a «revolta das pedras», o levantamento popular palestiniano que era já um sinal inequívoco de que o epicentro da resistência à ocupação tendia a deslocar-se para o interior dos próprios territórios ocupados.
Depois de uma explosão social na cidade de Gaza, inesperada pela dimensão, a intensidade e a espontaneidade da resposta popular a um atropelamento mortal de várias pessoas por um veículo conduzido por um colono israelita, a multidão começou a arremessar pedras ao dispositivo militar destacado para reprimir o movimento; o episódio funcionou como a gota que transbordou o cálice, o escape para tanta humilhação acumulada, o rastilho que incendiou a revolta até então contida. E não mais parou. Os soldados responderam às pedras disparando balas reais, fuzilando a eito, mas isso não impediu que os focos de inconformismo activo se espalhassem em poucos dias por todos os territórios palestinianos ocupados, de Gaza a Jerusalém Leste, de Jenin, Nablus a Hebron passando por Ramallah e Belém, aldeias e vilas ao longo desses caminhos milenares.
Pela primeira vez, talvez única até agora, meios corporativos de comunicação e alguma opinião pública tiveram contacto com uma realidade do problema israelo-palestiniano para lá da versão oficial do «terrorismo» árabe ameaçando a «segurança» do Estado de Israel. Afinal, balas contra pedras, tanques contra crianças, mortes de um lado e arranhões do outro incomodaram temporariamente algumas consciências e forçaram dirigentes ocidentais a sair episodicamente, em palavras, da sua cumplicidade institucional com o Estado de Israel.
Uma notícia com destaque no jornal Haaretz levou-me nesse dia até um subúrbio de Jenin: como resposta ao arremesso de pedras por garotos de uma escola, os soldados israelitas tinham enterrado vivos três dos perigosos «terroristas», com idades entre os nove e os 12 anos. Na verdade fora um sepultamento temporário, consumado com o auxílio de um bulldozer, uma cerimónia sádica de intimidação, coacção e terror que fazia jus à política de «quebra-ossos» decidida pelo primeiro-ministro Isaac Rabin contra os responsáveis por pedradas.
A população resgatou os garotos mas já não conseguira salvar a vida de um dos colegas, abatido a tiro alguns minutos antes no pátio de recreio da própria escola. No velório sem corpo, o silêncio sepulcral e as faces inertes e inexpressivas dos anciãos da aldeia testemunhavam a certeza, ao contrário da ousadia dos mais novos ao desafiarem um dos exércitos mais poderosos do mundo, de que não havia volta a dar àquele destino de violência, opressão e supressão dos mais elementares direitos humanos de um povo esquecido.
O tempo, a experiência, o estado do mundo e a irresponsabilidade criminosa de quem nele manda não tiram a razão aos cidadãos mais velhos de Jenin. Agora, em 11 de Maio, 34 anos e alguns dias depois daquela manhã sombria, a jornalista Shireen Abu Akleh, com origem palestiniana e nacionalidade norte-americana, foi sumariamente executada em Jenin com uma bala no rosto disparada com precisão milimétrica por um soldado israelita. Tinha 51 anos e fazia o seu trabalho cobrindo para a estação de televisão Al Jazeera mais uma rusga da tropa sionista em busca de «terroristas» num campo de refugiados palestinianos.
Afinal, pouco ou nada mudou em mais de três décadas, a não ser que o incómodo internacional suscitado pela política de «quebra-ossos» foi passageiro e esfumou-se. A perseguição e a limpeza étnica dos palestinianos prossegue na Palestina perante o silêncio dos poderes mundiais, a começar pela ONU e respectivo secretário-geral, e pelos incansáveis defensores dos direitos humanos agraciados com uma selectividade finamente burilada. O assassínio de Shireen Abu Akleh, como os de mais 380 palestinianos, entre eles 90 crianças, em 2021; e os 34 em Março e Abril deste ano, incluindo mais seis crianças, foram recebidos com o silêncio banal das coisas rotineiras, inevitáveis, condenadas aos caixotes do lixo das redacções e das chancelarias. Vítimas, vítimas a sério pelas quais o nosso mundo civilizado chora, são os «mártires» nazis da cidade ucraniana de Mariupol.
Em memória de Shireen Abu Akleh
Diz quem conheceu a jornalista Shireen Abu Akleh que era uma profissional competente, apreciada pela coragem, integridade e pelas reportagens cuidadas e sensíveis sobre a vida das populações em situação de ocupação.
«Escolhi o jornalismo para estar perto das pessoas», diz Shireen num vídeo que a Al Jazeera divulgou depois de ter sido fuzilada. «Pode não ser fácil mudar a realidade, mas pelo menos consegui trazer a voz das pessoas para o mundo».
Deduz-se que Shireen praticava um jornalismo quase caído em desuso, centrado nas pessoas, guiado pela realidade, nem sempre coincidente com a opinião única formatada para a questão israelo-palestiniana, a mesma que vigora para a guerra na Ucrânia. A jornalista da Al Jazeera estava literalmente na mira do establishment do regime sionista de apartheid, que a acusava de situar-se do lado dos «terroristas». Da mesma maneira que os jornalistas informando sobre o aparelho nazi que controla o regime ucraniano não passam de «agentes de Putin».
Naquela quarta-feira, 11 de Maio,
Shireen estava com outros jornalistas no campo de refugiados de Jenin
reportando mais uma manobra de repressão conduzida pelas tropas de ocupação. Os
profissionais da comunicação presentes cumpriam todas as normas do protocolo
que foi sendo apurado ao longo dos anos, pois são já 45 os jornalistas
acompanhando a situação na Palestina abatidos desde 2000. Usavam colete à prova
de bala, capacetes, dísticos de «PRESS» bem visíveis e situavam-se a cerca
de
Ouviram-se três tiros. Um atingiu nas costas o produtor da Al Jazeera, Ali Samoudi, que ficou ferido. O terceiro disparo provocou a morte imediata de Shireen: atingiu-a na face, precisamente entre o bordo do capacete e a gola do colete. Um tiro de sniper, preciso, fatal, efectuado deliberadamente para atingir um alvo escolhido no local exacto. Uma execução. «Um assassínio flagrante, a sangue-frio», denunciou a Al Jazeera. Uma operação idêntica às que no início surpreenderam os jornalistas em Fallujah, no Iraque, quando começaram a surgir cadáveres com um único tiro na cabeça entre as vítimas dos massacres norte-americanos.
Os especialistas que observaram a
bala de
A versão, porém, foi desmontada e ridicularizada por um vídeo dos acontecimentos divulgado pelo Centro de Informação israelita B’Tselem para os direitos humanos. Ficou claro que se tratou de um crime cometido a partir da posição ocupada pelos soldados israelitas
A verdade oficial nunca se saberá concretamente. Israel recusa-se a autorizar um inquérito independente e, mais uma vez, o assassino ficará impune. Como aconteceu há um ano com o gang de colonos sionistas que, a exemplo das práticas das brigadas nazis ucranianas, assassinaram o cidadão palestiniano Musa Hassuna: o Ministério israelita do Interior «aconselhou» o Ministério Público a encerrar o caso por se tratar de uma situação «de autodefesa».
A morte de Shireen Abu Akleh
parece não ter sido suficiente para satisfazer a ânsia de vingança do regime
de apartheid. No funeral da jornalista, que juntou em Jerusalém uma
multidão só comparável à que se despediu do lendário dirigente palestiniano
Faiçal Husseini em
Israel continua a rejeitar, com a impunidade que lhe está garantida pelos órgãos da «ordem internacional baseada em regras» guardada por Joseph Biden e os seus súbditos, e garantida pela NATO, qualquer responsabilidade no sucedido.
A desfaçatez, porém, vai mais longe. «Mesmo que Shireen Abu Akleh fosse morta pelo Exército israelita não haveria necessidade de pedir desculpa», sentenciou Avi Benyahu, ex-porta voz das tropas sionistas. Como explica o deputado Ben Gvir, «os jornalistas da Al Jazeera geralmente ficam no caminho do exército e impedem o seu trabalho». Nada que um tiro certeiro na altura exacta não resolva.
Tal como há três quartos de século, vale tudo a Israel para tentar erradicar o «problema» palestiniano da face da Terra perante as mesmas sossegadas consciências que não se sobressaltaram quando a ex-secretária de Estado norte-americana Madeleine Albright garantiu que a morte de 500 mil crianças iraquianas «valeu a pena»; ou seja, as mesmas almas caridosas que acompanham tranquilamente o massacre de milhões de vidas humanas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Síria, no Iémen só porque são da responsabilidade da NATO ou de exércitos de potências ocidentais, em aliança com terroristas islâmicos, que levam a civilização às terras da barbárie.
Na Ucrânia não, é diferente, há que mobilizar caridades, submissões e centenas de milhões de euros que, por exemplo, não há para salários, reformas, saúde e educação dos portugueses e entregá-los em mãos – e sem controlo do destino – ao regime mais corrupto da Europa. Mas é na Europa, são instituições que defendem a «pureza de sangue», estão em causa pessoas brancas, quanto mais louros os cabelos e azuis os olhos melhor. Afinal acusar apenas Israel da cultivar formas de apartheid talvez seja injusto.
O Nakba eterno
A Shireen Abu Akleh de nada valeram a competência profissional, o respeito pelo jornalismo, a prioridade dada às pessoas e os seus problemas, nem sequer o passaporte norte-americano. Tal como não valeu à voluntária Rachel Corrie em 2003, trucidada por um buldozzer quando se opunha à destruição de casas palestinianas; ou o passaporte britânico de nada serviu ao cineasta James Miller, abatido em 2003 por um soldado israelita quando testemunhava mais um dos corriqueiros massacres de pessoas indefesas em Gaza.
Os Estados Unidos, o Reino Unido, tal como todos os satélites orbitando a NATO, entre os quais Portugal, silenciaram a morte da jornalista da Al Jazeera.
O mesmo aconteceu com a generalidade dos jornalistas desses países que, em boa verdade, há muito se despediram do jornalismo, se é que alguma vez o frequentaram.
O próprio Sindicato dos Jornalistas em Portugal não arranjou mais do que meia dúzia de linhas para noticiar burocraticamente a morte de Shireen, limitando-se, muito circunspectamente, a informar que «foi baleada» e «em serviço». E que venha o «inquérito internacional independente», sabendo-se muito bem que tal não existirá. Missão cumprida.
Em boa verdade, o assassínio de Shireen foi um episódio, apenas mais um, de uma extensa tragédia de décadas a que os palestinianos chamam Nakba, a catástrofe. Um drama alimentado não apenas para impedir que os palestinianos tenham acesso ao exercício dos seus direitos nacionais, cívicos e humanos mas também, em última instância e conhecendo-se a essência do sionismo, para consumar a eliminação do próprio povo palestiniano.
Resoluções sobre resoluções da ONU, declarações e mais declarações dos sucessivos dirigentes das grandes, médias e pequenas potências, entre elas as mais civilizadas de todas, vários acordos de paz para rasgar e centenas de reuniões de negociações a fingir não têm travado a marcha da Nakba através de 74 anos assinalados agora. A chamada «comunidade internacional» convive muito bem com a Nakba. A hipocrisia da casta dirigente mundial – e de grande parte das nacionais – não tem limites.
A Nakba é a mais criminosa, prolongada e sistemática limpeza étnica dos nossos tempos. O meticuloso extermínio de um povo: chacinas e expulsões em massa; desaparecimento do mapa de centenas de cidades, vilas e aldeias e destruição arbitrária de habitações; confinamento em campos de refugiados eternos e mesmo em campos de concentração, como acontece em toda a Faixa de Gaza; assassínios selectivos, muros que separam núcleos habitacionais, familiares e propriedades; roubo de bens, colonização por imigrantes sionistas de territórios de onde são expulsos os habitantes com raízes seculares, humilhações, perseguições, meios de repressão e controlo que tornam impossível a circulação das pessoas, mesmo para ir trabalhar; condenação ao desemprego, tortura, detenções perpétuas sem julgamento, assassínio e prisão de crianças e adolescentes – a lista de crimes sionistas alegadamente para garantir a «existência» e a «segurança» do Estado de Israel é infinita.
E o mundo assiste, impávido, à negação mais absoluta de todos os princípios e valores que se pregam a cada passo e que, por sinal, chegam a ser invocados por quem gere o planeta para justificar outras atrocidades. Afinal há uma lógica perversa e totalitária em tudo isto e estamos a ser vítimas dela, cercados por um ambiente de intimidação poucas vezes atingido.
Os palestinianos contam apenas com eles próprios para resistir ao extermínio organizado. E também com a solidariedade de cidadãos e organizações corajosas tratadas como párias ou lunáticas pelos meios dominantes – governos e comunicação social.
Ao contrário, o Estado de Israel é um parceiro de excelência da NATO, tem acordos preferenciais com a União Europeia, as suas embaixadas usufruem do direito a barricar ruas – visitem o colonato da Rua António Enes em Lisboa – a sua polícia política sobrepõe-se a polícias nacionais, está imune a sanções, participa em todos os acontecimentos culturais e desportivos internacionais, chegando mesmo a organizá-los. Há casos em que o crime compensa. E assim exemplificam-se muito bem as regras em que assenta a «ordem internacional baseada em regras».
Apesar de tudo isto, os palestinianos teimam em resistir e continuar a existir. «Uma história gloriosa foi apagada; as pessoas não conhecem a longa e impressionante história desta terra», lamenta Miko Peled, cidadão israelita natural de Jerusalém, filho de um general que se distinguiu em grandes campanhas sionistas, mas que tem a honestidade intelectual e humanista para compreender a realidade em que vive e na qual os palestinianos estão presentes. «Esta terra era a Palestina, é a Palestina e será sempre a Palestina», assegura. O contrário, afinal, da tese mistificadora do pai do sionismo, Theodor Herzl, quando proclamou a ideia de «uma terra sem povo para um povo sem terra». Esvaziar a Palestina do seu povo original continua a ser, como se percebe, a meta do apartheid sionista quase 140 anos depois de ditada a máxima herzliana.
O povo palestiniano continua, porém, do lado da história, mesmo desamparado pelos senhores do mundo, tão modernistas nas suas arengas cada vez mais ocas mas tão anacrónicos e retrógrados, mesmo que imersos na «transição digital».
Abu Shireen Akleh fazia por contar a história incómoda que os poderes planetários querem apagar das vistas e das consciências dos cidadãos. Pagou com a vida essa ousadia, tal como milhões vêm pagando, década após década, por quererem viver libertos da canga dos opressores que não conhecem fronteiras. São três milhões na Palestina e mais de sete milhões de refugiados (estes refugiados existem há mais de setenta anos!) que não desistem dos seus direitos enquanto quase tudo em volta, na prática, não os reconhece.
Porém, haverá sempre uma Shireen que, contra a corrente de grande parte dos seus companheiros de profissão e contra as balas teleguiadas pelos oligarcas e respectivos amanuenses que ditam as regras de uma intimidante verdade paralela, continuarão a manter vivo o direito aos seus direitos.
Outras e outros continuarão a «trazer a voz das pessoas para o mundo», como fazia Shireen. Mesmo para os que não a querem ouvir.
José Goulão
Imagem de topo: Uma violenta carga policial à saída do Hospital de São Luís dispersou a multidão que acompanhava o funeral da jornalista Shireen Abu Akleh, assassinada quando cobria uma acção repressiva das tropas israelitas em Jenin, na Cisjordânia, e não poupou os palestinianos que transportavam o féretro, cuja queda esteve iminente. Jerusalém, 13 de Maio de 2022 CréditosAhmad Gharabli / AFP
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