Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
Se compreendi bem todas as notícias que li sobre a degradação do Serviço Nacional de Saúde, uma onda que desta vez começou por causa do colapso de algumas urgências de obstetrícia, a conclusão a tirar é que... não há notícia.
Não é notícia a falta de médicos e de enfermeiros, cada vez mais grave, no Serviço Nacional de Saúde.
Quem não se lembra da promessa de António Costa, em 2016, de garantir um médico de família para todos os portugueses? Essa promessa pressuponha que faltavam médicos no sistema, o que era verdade, e que Costa ia resolver o problema, o que seria mentira, pois ele, entretanto, agravou-se.
Não é notícia a fuga de profissionais de saúde do serviço público, seja para o estrangeiro (quando isso é possível), seja para o setor privado, que se expande cada vez mais.
Ainda agora, só para exemplificar, deram mais uma medalha ao enfermeiro português, um dos que decidira emigrar, que tratou a covid-19 de Boris Johnson.
Não é notícia a evidente suborçamentação do Ministério da Saúde, que o impede de resolver os problemas de vez. Uma das razões da queda da "geringonça" foi, precisamente, essa.
Não é notícia a crónica falta de dinheiro para o serviço público de Saúde, é um assunto com décadas, foi uma política comum a vários governos que, aliás, subsidiaram, simultaneamente, indiretamente, o crescimento do setor privado de várias maneiras, a começar pelas Parcerias-Público-Privadas e a passar por frequentes benefícios fiscais, para indivíduos e para empresas, dados a quem subscrevesse seguros de saúde, sustentando assim um início de crescimento, que era difícil, para os hospitais e as clínicas privadas,.
Não é notícia aparecer todos os anos o conjunto habitual de cromos político-corporativos a defender que a solução não está em colocar mais dinheiro no Serviço Nacional de Saúde, em pagar decentemente a médicos e enfermeiros para eles não se irem embora, em fixar mais profissionais no quadro.
Não, para esses profetas das consultas universais a 100 euros a solução é dar dinheiro às empresas privadas de saúde para elas fazerem o mesmo serviço.
De resto, a prática já é frequente, embora na sombra: vários sindicatos estão há anos a denunciar o recurso crescente a empresas de prestação de serviços, através das quais há médicos a receber mais por hora do que os clínicos dos quadros do Estado!
Não é notícia a incompetência, desleixo ou intenção de governar mal o Serviço Nacional de Saúde, que dá cada vez mais argumentos a quem defende a sua entrega para os privados - chegámos ao ponto de, a partir de 2006, mandarmos bebés portugueses, de mães que vivem na fronteira alentejana, nascerem em território estrangeiro, a Badajoz!
Não é notícia a acusação de "preconceito ideológico" feita sobre todos os que não concordam com a doação do Serviço Nacional de Saúde às empresas privadas. O papão de "o comunismo é a culpa disto tudo" é usado em Portugal há pelo menos 101 anos.
O problema não é ideológico, a não ser que achemos que, no que diz respeito à saúde, todos os portugueses não devem ter o mesmo direito de acesso a serviços de qualidade equivalente e que, também aí, o mundo tenha de se dividir entre ricos e pobres.
O problema é que a partir do momento em que se monte um sistema onde, generalizadamente, o Estado passa a pagar a privados ou ao setor social o fornecimento de um serviço de saúde universal e tendencialmente gratuito, perde uma estrutura que depois não será capaz de remontar. Se, ao fim de uns anos, com o SNS estatal praticamente desmontado, com a legislação entretanto produzida a defender, inevitavelmente, os interesses dessas empresas, elas disserem ao governo, "o contrato que temos não presta, queremos cobrar mais ou vamos embora", o governo não tem outro remédio que não seja aceitar a fatura, seja qual for o preço a pagar, ou então deixar os portugueses mais pobres ao Deus dará.
Não tenhamos ilusões: veja-se o que se passa por esse mundo fora (Portugal, o que é incrível, ainda é dos melhorzinhos em Serviços de Saúde) ou o escândalo global dos preços dos medicamentos, para se perceber o espírito que impera nestes negócios da doença.
Se uma notícia pressupõe a existência de uma novidade, de uma informação nova que não conhecíamos, então a minha conclusão inicial estava certa e este debate é um "dejá vu", é "old news".
Respondo, por isso, para se perceber o que pode vir aí se não salvarmos o verdadeiro Serviço Nacional de Saúde, com o título de outra velha notícia, de 28 de outubro de 2020: Hospitais privados sem disponibilidade para receber doentes covid-19 em Lisboa.
*Jornalista
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