sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Angola | A CIDADE DO GIRAUL -- Martinho Júnior

Martinho Júnior, Luanda

A PROPÓSITO DOS 173 ANOS DA CAPITAL DA PROVÍNCIA DO NAMIBE.

NUMA ANGOLA INDEPENDENTE E SOBERANA COMO É POSSÍVEL DESIGNAR-SE UMA CIDADE COM O NOME DUM ESCRAVOCRATA E COLONIALISTA?

QUE MEMÓRIA DA ESCRAVATURA EXISTE, QUANDO PERSISTE O NOME DUM ESCRAVOCRATA NUMA CIDADE CAPITAL?

POR ALGUMA RAZÃO É DESCONHECIDA EM ÁFRICA A REVOLUÇÃO DOS ESCRAVOS NO HAITI!

A água aproxima os homens e entre deserto e mar os rios Bero e Giraúl possibilitaram habitat ao homem de há largos milhares de anos.

Por isso, no presente e no futuro, há todas as razões para jamais se pronunciar o nome de “Moçâmedes” – ninguém em Angola suporta o nome dum esclavagista do tráfico negreiro transatlântico para, em pleno século XXI, dar nome a uma cidade angolana, muito menos a uma capital provincial!

A capital da Província do Namibe é de facto a cidade do Giraúl (e do Bero) que lhe possibilitaram o ser.

I – DA ANTROPOLOGIA, DA HISTÓRIA E DA SOCIOLOGIA QUE NUNCA HOUVE

Numa Angola independente e soberana um cuidado muito especial devem merecer as abordagens históricas, antropológicas e sociológicas e há uma explicação evidente para esse cuidado:

A independência e a soberania foram arrancadas de armas na mão, numa longa luta de libertação nacional em ruptura com o colonialismo e o “apartheid”, de Cabinda ao Cunene e do mar ao leste, mas o conhecimento e as narrativas sobre os povos e os acontecimentos no vasto território resulta duma interpretação e dum esforço do próprio colonizador, não do colonizado, pelo que está impregnado ideologicamente do estigma mental ao sabor dominante da colonização!

O poder motivado pelo domínio a qualquer custo conformado ao colonizador, quando foi sujeito à ruptura provocada pelo movimento de libertação, teve de se amparar no Exercício Alcora de tal modo que mesmo os parâmetros dessa luta libertária mereceram actos concertados do colonialismo e do “apartheid” a fim de os subverter para melhor confundir e neutralizar, fazendo sobreviver a causa colonial na via de acção psicológica deliberada que fizeram incidir sobre o povo angolano, de que ainda não se está suficientemente livre!

Tanto pior por que a colonização foi feita num “híbrido” com um grau de opressão e repressão cuja base foram séculos de escravatura com temporal ponta final num colonialismo resultante dos interesses, conveniências e decisões exclusivamente das potências europeias que decidiram o futuro de África sem recorrer a africano algum, (na Conferência de Berlim, ocorrida entre 15 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885) e sob o estigma do regime que institucionalizou o “apartheid” na África do Sul aproveitando o elitismo anglo-saxónico de Cecil John Rhodes, com impactos em toda a África Austral.

Assim sendo, a história, a antropologia e a sociologia, do colonizador euro-centrista, elitista, imperialista e racista, apaga ou inibe o conhecimento a partir dos povos oprimidos sujeitos sistematicamente à repressão, inclusive durante os processos de ruptura, quando os contraditórios se elevaram ao grau do antagonismo que se acentuou entre inícios de 1961 e 1975.

II – A MALDIÇÃO ESCLAVAGISTA ESPELHADA EM “MOÇÂMEDES”

A questão da fundação da cidade de “Moçâmedes”, remete nessa esteira de conhecimento e de narrativas o historiador, o antropólogo, ou o sociólogo, para o dilema ainda tão persistente da colonização:

Vai-se dar continuidade à versão colonial, opressora, repressiva e parâmetro eurocêntrico de interpretação, ou inicia-se todo um esforço de resgate do conhecimento histórico, antropológico e sociológico do povo angolano enquanto sujeito e actor de si próprio e de sua própria história?...

…Assim a fundação de “Moçâmedes” deve ser antes de mais desmistificada: fizeram-se prevalecer os valores do colonialismo esclavagista sobre os colonizados e oprimidos e nas humanísticas está-se longe de corresponder aos parâmetros científicos que devem prevalecer com a independência e a soberania, parâmetros científicos abertos à lógica com sentido de vida!

O colonizador fundou o actual casco urbano de “Moçâmedes” há 173 anos e num lugar que antes era um embarcadouro de escravos conhecido por Angra dos Negros, por que naquela reentrância de costa, uma baía abrigada em forma de concha a que os navegadores haviam aportado para descanso e aguada, era o ponto que a norte da foz do Cunene convergiam veios de água (Bero e Giraúl) que possibilitavam uma implantação humana duradoura para apoio aos navegantes e eventual comércio.

Para o colonizador, desejoso de penetrar e ocupar o continente africano, essa baía passou também a ter interesse para lançarem as acções na profundidade leste e sul, até ao arco do rio Cunene e para além dele; é por isso que o assentamento recebeu o nome de Moçâmedes, o Governador de Angola José de Almeida e Vasconcelos Soveral e Carvalho, o Barão de Moçâmedes (ou Mossâmedes), esclavagista em Goiás, no Brasil e em Angola, que teve as primeiras iniciativas nesse sentido.

Precisamente por causa da água interior que flui por via do Bero e do Giraúl, ao longo de muitos século antes da chegada das caravelas dos portugueses por mar, chegaram comunidades africanas das mais diversas origens no interior de África, mas seus traços nómadas, ou seminómadas, jamais foram investigados a preceito, nem suficientemente registados como tal.

A água interior do Bero e do Giraúl são o grande segredo de todos que chegaram por terra ou por mar àquelas paragens e por isso o tributo a essa água vital para todos obriga a considerar a capital do Namibe como a cidade do Bero e do Giraúl, algo que deveria ser convencionado para seu próprio nome, retirando definitivamente o nome “Moçâmedes”, dada a sua carga colonial – cidade do Giraúl!

III – DAS COMUNIDADES AFRICANAS QUE CHEGARAM À COSTA SEGUINDO O BERO E O GIRAÚL

Os primeiros seres humanos que terão chegado à costa do deserto mais antigo do mundo, o Namibe, terão sido os bosquímanos, tidos como os autóctones mais antigos de toda a região que abrange o vasto sul de Angola, a Namíbia, o Botswana e o noroeste da África do Sul.

Se na costa não há evidências disso, há nas grutas rupestres do Virei (as pinturas de Tchitundo-Hulo que ficam a 137km a sudeste da capital da Província do Namibe) onde residem certezas e incertezas das manifestações mais antigas, inscritas em livros de pedra com muitas questões por interpretar.

A autoria das pinturas rupestres é de comunidades a que se atribui o depreciativo nome de cuísses, que viviam da caça e da recolecção e há 4.000 anos tinham aquele ponto como referência; essas comunidades naturalmente terão também chegado à costa por via de cursos de água como o Bero ou o Giraúl, embora não se fixando aí.

Por causa disso há descobertas arqueológicas em curso de actividades humanas da Idade da pedra no Curoca e no vale do Giraúl.

Depois, muito mais recentemente, outros povos foram afluindo – grupos Herero, Nhaneca-Humbe e Ambós, que culturalmente resistiram à penetração colonial europeia e foram sendo vencidos em função do jogo colonial de penetração-ocupação do território, sempre do litoral para o interior do continente africano, com ocorrências desde o século XVIII…

No Namibe há um acervo de conhecimentos em vias de se poderem melhor resgatar, relacionados com as lutas de resistência e os locais afins, entre eles a zona da baía da capital provincial.

Em 2021 o próprio Jornal de Angola, sob o título “Moçâmedes festeja aniversário em meio a polémica à volta do nome”, o articulista Vladimir Prata considerava entre outros fundamentos: 

…“Carlos Major, agente cultural, também é de opinião que se devia voltar ao nome de Mussungo Bitoto, atribuído pelos autóctones que habitaram a região desde que se tem conhecimento. De 54 anos de idade, é considerado um namibense de gema, com cartas dadas em eventos de arte contemporânea, enquanto conceptor, curador, director e produtor, muitos dos quais realizados em espaços históricos da capital do Namibe, onde nasceu. Ele mesmo tem desenvolvido um estudo sobre a estética da arte Mbali e respectivos intervenientes, que deverá culminar com a realização duma exposição denominada Mussungo Bitoto, no museu provincial do Namibe”…

O historiador René Pélissier, europeu que disseca o tema “História das campanhas de Angola, resistência e revoltas – 1845 – 1941” refere-se com muitos detalhes à penetração e ocupação colonial em Angola, face à resistência disseminada por todo o território angolano e também na região sudoeste onde se encontra a capital da Província do Namibe.

Ele detalha a rebeldia dos grupos Herero (Cuvales), Nhaneca-Humbes e Ambós e em relação aos Hereros ele dedica o Capítulo XVIII do seu IIº Tomo, de páginas 267 a 275, ao que foi a última campanha colonial antes do início da luta armada de libertação nacional, entre 1940/41, contra os cuvales, em tudo similar ao genocídio dos hereros em 1904, praticado pelos alemães no então Sudoeste Africano.

Alguns colonialistas de “Moçâmedes” de então tiveram um papel importante nessa campanha genocida, que deixou suas marcas até nossos dias!...

IV - A ÁGUA QUE PODE CONTRIBUIR PARA A REVOLUÇÃO CULTURAL NO SUDOESTE, PODE DAR ORIGEM A UM NOVO NOME PARA A CAPITAL DA PROVÍNCIA DO NAMIBE

A fome que ciclicamente tem afectado as populações do sul e do sudoeste do país, numa altura em que com o aquecimento global os desertos do Kalahári e do Namibe tendem a estender-se para norte em direcção à Região Central das Grandes Nascentes, obrigou o estado angolano a encontrar soluções que nunca em tempo colonial foram tidas na devida conta, a não ser para o estabelecimento de colonatos próprios das curtas visões coloniais de então.

Os cursos dos rios angolanos podem ser aproveitados para a produção de energia hidroeléctrica, mas também para criar reservas de água ao longo de suas bacias em socalco ou em declive, incrementar a irrigação e alterar profundamente o modo de vida de milhões de angolanos, uma parte dos quais sobrevivendo em regimes de recolecção, ou de economia de autossubsistência, ou da pastorícia em nomadização.

A região em torno na cidade do Giraúl vai sofrer grandes obras nesse sentido nos fluxos de água que despencam da Serra da Cela, entre eles o Bero e o Giraúl que são de natureza sazonal (“Previsão de construção de três barragens no Namibe”):

… “Estão em curso, naquela circunscrição, a elaboração do estudo de viabilidade técnica, económica e ambiental, para a construção de seis barragens de retenção de água e o lançamento do concurso público para a recuperação e desassoreamento de 43 barragens de alvenaria e represas de retenção de água, nos municípios da Bibala, Camucuio, Moçâmedes e Virei. O concurso está em fase de conclusão.

O director-geral do Instituto Nacional de Recursos Hídricos esclareceu que, na mesma altura em que se prepararam os termos de referência para a província do Cunene, foram preparados os do Namibe.

Manuel Quintino disse terem sido apurados seis estudos de base, que poderão evoluir para a construção de igual número de barragens. “São barragens associadas a canais que vão fornecer água para agricultura, gado e a população”, destacou. Trata-se da barragem do Bero 1, Curoca 2, Bentiaba, Inamangando, Giraul e o Carujamba”…

O rio Giraúl tem 393,4 km de comprimento e nasce a uma altitude de 2.322 m, enquanto o Bero tem 588,2 km e nasce a 2.094 m; as suas bacias têm 4.708,8 km2 e 10.476,3 km2 respectivamente.

O futuro do sudoeste angolano, o futuro da Província do Namibe, terá na água mais um factor de revolução cultural de todas as comunidades rurais e urbanas dessa região, a partir das alterações profundas que esse esforço vai causar no ambiente e no homem, algo que vai contrastar com todo o passado colonial!

Por isso, em pleno século XXI, com as obras advogadas e estimuladas pelo Presidente João Lourenço no sul e no sudoeste do país, há razões acrescidas para se repensar num nome de natureza prospectiva para a capital da Província do Namibe, para a cidade do Giraúl!

Círculo 4F, Martinho Júnior, 1 de Agosto de 2022

Imagem – PR elogia comunidade mucubal pela adesão à vacinação – https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pr-elogia-comunidade-mucubal-pela-adesao-a-vacinacao/.  

Textos de consulta:

. Namibe – https://www.aipex.gov.ao/PortalAIPEX/#!/angola/namibe;

. Descobertos instrumentos da idade da pedra no Namibe – http://www.redeangola.info/descobertos-instrumentos-da-idade-da-pedra-no-namibe/;  

. A Fundação de Moçâmedes (Namibe), no Sul de Angola, por uma Colónia Vinda do Brasil (Ano de 1849) – http://tudosobreangola.blogspot.com/2010/09/fundacao-de-mocamedes-namibe-no-sul-de.html;

. A fundação de Moçâmedes (Namibe – Angola). Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro – http://tudosobreangola.blogspot.com/2010/10/fundacao-de-mocamedes-namibe-angola.html;

. José de Almeida Vasconcelos Soveral e Carvalho – https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_de_Almeida_Vasconcelos_Soveral_e_Carvalho;

. ASPECTOS DO TRAFICO DE ESCRAVOS DE ANGOLA PARA O BRASIL NO SÉCULO XVII – https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3180.pdf;

. As conjunturas do tráfico em Angola (século XVIII)1 – http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308103633_ARQUIVO_anpuh.pdf;

. Memória do tráfico de escravos em Angola – https://www.buala.org/pt/a-ler/memoria-do-trafico-de-escravos-em-angola;  

. Moçâmedes festeja aniversário em meio a polémica à volta do nome – https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/mocamedes-festeja-aniversario-em-meio-a-polemica-a-volta-do-nome/;

. Namibe, Cecil Rhodes, descolonização e o Barão de Moçâmedes – https://angonomics.com/2016/09/22/namibe-cecil-rhodes-descolonizacao-e-o-barao-de-mocamedes/;

. Rio Giraúl – https://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_Giraul;

. Rio Giraúl – Estudo de informações sobre a precipitação no curso do rio – https://www.researchgate.net/profile/Flavio-Rogerio/publication/344250742_Rio_Giraul_caracteristcas_e_problemas_-_Uma_primeira_abordagem_ao_estudo_de_informacoes_disponiveis_sobre_precipitacao/links/5f60b345299bf1d43c0533fc/Rio-Giraul-caracteristcas-e-problemas-Uma-primeira-abordagem-ao-estudo-de-informacoes-disponiveis-sobre-precipitacao.pdf ;

. Rio Bero –  https://www.wikiwand.com/pt/Rio_Bero;

. Rio Bero. O Nilo de Moçâmedes, Rio Bero, o Rio das Mortes, o rio que tornou Moçâmedes possível… - https://mossamedes-do-antigamente.blogspot.com/2018/09/rio-bero-o-nilo-de-mocamedes-rio-bero-o.html

. Reabilitação do Porto do Sacomar – https://www.jbic.go.jp/ja/business-areas/environment/projects/pdf/61052_2.pdf

. Previsão de construção de três barragens no Namibe – https://www.pressreader.com/angola/jornal-de-angola/20210709/281621013332264;

. João Lourenço é o segundo presidente de Angola a interagir com autoctones “Mucubais” – http://namibefalaverdade.com/2021/11/joao-lourenco-e-o-segundo-presidente-de-angola-a-interagir-com-autoctones-mucubais

Sem comentários:

Mais lidas da semana