quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Portugal | ACORDOS QUE DURAM POUCO

José Soeiro | Expresso | opinião

Contração dos rendimentos, desvalorização do Parlamento, substituição do diálogo com os partidos de esquerda pelos “acordos de regime” com o PSD, os patrões e a UGT, exibidos como caução de uma paz social duradoura. Serão mesmo? Desde Passos Coelho, que celebrou um acordo com os mesmíssimos protagonistas, sabemos que não

Que a maioria absoluta do Partido Socialista significa uma reorientação política, desde que António Costa conseguiu acabar com a geringonça, é evidente. Contração dos rendimentos, desvalorização do Parlamento, substituição do diálogo com os partidos de esquerda pelos “acordos de regime” com o PSD, os patrões e a UGT, exibidos como caução de uma paz social duradoura. Serão mesmo? Desde Passos Coelho, que celebrou um acordo com os mesmíssimos protagonistas, sabemos que não.

No acordo de rendimentos para o setor privado, assinado no início deste mês, o que coube aos trabalhadores? Uma promessa. Uma promessa cujo cumprimento está dependente da negociação coletiva e que, na melhor das hipóteses, corresponde ao que alguns sindicatos da UGT já tinham negociado em acordos setoriais: uma atualização de cerca de 5% dos salários em 2023, muito abaixo dos 8% de poder de compra perdidos em 2022 por conta da inflação, o equivalente a um salário por ano (de entre os 14 que quem tem contrato recebe).

Por outro lado, estabelece o “acordo de rendimentos”, os tais “20% de aumento salarial” de que António Costa falava no início da legislatura afinal serão só nominais. Podem por isso significar uma estagnação ou mesmo uma redução dos salários reais, se porventura a inflação acumulada até 2026 andar nessa ordem de grandeza. No imediato, o acordo apenas traz a certeza do empobrecimento.

Em troca da aceitação desta perda real em 2023, com a meta dos 5,1%, a UGT renegou o essencial do seu programa, aprovado por unanimidade há apenas um mês: “um aumento dos salários para o setores públicos e privados de 7,5% em 2023”, “a meta fixada pelo Primeiro Ministro de, ao longo da legislatura, aumentar o salário médio em 20% deve ser encarada em termos reais, pois só assim é possível a recuperação de rendimentos”, “revalorizar a proteção social no desemprego, de modo a corrigir medidas que a enfraqueceram e aumentar a sua efetividade na proteção social dos desempregados”, “cumprir a lei e aplicar a fórmula de atualização das pensões acordada em sede de concertação social em 2006”… O que sobrou?

Aos patrões, pelo contrário, foi garantido um conjunto de volumosas borlas fiscais, seja a que o governo apresenta como “seletiva”, para empresas onde suba o salário (estimada em 75 milhões de euros para as entidades empregadoras), seja o acesso de todas as empresas à dedução de prejuízos fiscais no IRC sem qualquer limite temporal (o que permite a empresas como o Novo Banco nunca mais pagarem impostos) o Governo não se atreve a estimar quanto perderá o Estado nesta oferenda.

Na Administração Pública, o acordo, recusado pela Frente Comum, da CGTP, aponta para atualizações de salário numa média de 3,9%. De novo, perda de rendimento real face à inflação. É certo que nalguns casos (minoritários) irá aos 8%, mas noutros ficar-se-á por 2%. Só com aquele engenho em que o primeiro-ministro se especializou é que é possível falar de “aumentos médios de 5,1%”, como fez Costa. O número, mesmo assim abaixo da inflação, inclui todo o tipo de promoções e prémios. Para a maioria dos salários da administração pública, 2023 será um ano de corte real, que se soma a uma perda acumulada de vários anos.

Os subscritores do acordo para o setor público sublinham os 104 euros para os técnicos superiores, o subsídio de refeição em €5,20 e a promessa de rever a avaliação de desempenho. Mas tiveram necessidade de reconhecer que “há muito a fazer” e que o documento, no essencial, “sinaliza intenções”. De facto, para além de todas as limitações, ele tem um gigantesco buraco: ficam de fora as carreiras especiais. Enfermeiros, médicos, psicólogos, nutricionistas, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, para dar apenas alguns exemplos, não vão ter os aumentos previstos no documento, por não estarem abrangidos por ele. Se a expectativa era conter a contestação, não parece que a receita resulte…

Tudo somado, para lá do fervor dos anúncios e das cerimónias destinadas a mostrar que está tudo a “remar para o mesmo lado” (o do Governo, claro), o que fica é muito pouco. Ainda mais sabendo que, em Espanha, se acordou por exemplo um aumento retroativo a janeiro deste ano para compensar a inflação de 2022, que será pago aos funcionários públicos numa única prestação até dezembro; uma referência para aumentos futuros acima dos 9%; ou a atualização das pensões para 2023 de acordo com a inflação, isto é, em cerca 8,5%, beneficiando o Governo da receita dos novos impostos sobre lucros extraordinários da banca e das energéticas. Ah, mas Espanha é muito diferente! Pois é: o PSOE não tem maioria absoluta. E isso faz muita diferença.

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