quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A GUERRA DE 2023 -- A PREPARAÇÃO DO TEATRO

- O eixo China-Rússia está a atear os fogos de uma insurreição estrutural contra o Ocidente em grande parte do Resto do Mundo. Estes fogos visam "ferver a rã lentamente".

Alastair Crooke [*]

Um general dos fuzileiros navais dos EUA, James Bierman, numa entrevista recente ao Financial Times, explicou num momento de candura como os EUA estão "a preparar o teatro de operações" para uma possível guerra com a China, enquanto admite casualmente como um comentário aparte, que planeadores de defesa dos EUA estiveram ocupados dentro da Ucrânia desde há anos atrás, "preparando-se seriamente" para a guerra com a Rússia – mesmo até ao "pré-posicionamento de provisões", a identificação de locais a partir dos quais os EUA poderiam operar o apoio e a sustentação de operações. Em termos simples, eles estiveram lá durante anos, a preparar o espaço de batalha.

Não é realmente uma surpresa, pois tais respostas militares decorrem diretamente da decisão estratégica central dos EUA de acionar a "Doutrina Wolfowitz" de 1992, segundo a qual os EUA devem planear e agir preventivamente, para inabilitar qualquer potencial Grande Potência – muito antes de ela alcançar o ponto em que possa rivalizar ou prejudicar a hegemonia dos EUA.

A NATO avançou hoje em dia para uma guerra com a Rússia num espaço de batalha, o qual em 2023, pode ou não ficar limitado à Ucrânia. Dito de forma simples, a mudança para "Guerra" (incremental ou não) marca uma transição fundamental da qual não há volta ao ab initio – "economias de guerra" em essência, são estruturalmente diferentes do "normal" a partir do qual o Ocidente começou, e ao qual se habituou ao longo das últimas décadas. Uma sociedade de guerra – mesmo se mobilizada apenas parcialmente – pensa e age estruturalmente de forma diferente de uma sociedade em tempo de paz.

A guerra tão pouco é uma conduta cavalheiresca. A empatia pelos outros é a sua primeira baixa – sendo esta última um requisito para sustentar um espírito de combate.

No entanto, a ficção cuidadosamente cultivada na Europa e nos EUA continua a ser que nada realmente mudou ou mudará:   estamos num 'apagão' temporário. E é tudo.

Zoltan Pozsar, o influente 'oráculo' financeiro do Credit Suisse, já destacou no seu último ensaio War and Peace (só por assinatura) que a Guerra está mesmo a caminho – simplesmente listando os acontecimentos de 2022:

O bloqueio financeiro do G7 à Rússia (O Ocidente estabelece o espaço de batalha)

O bloqueio energético da Rússia à UE (a Rússia começa a montar o seu teatro)

O bloqueio tecnológico dos EUA à China (pré-posicionamento dos EUA de sítios para sustentar operações)

O bloqueio naval da China a Formosa (a China demonstrando prontidão)

O "bloqueio" dos EUA ao sector do VE da UE com a Lei de Redução da Inflação. (Os planeadores da defesa dos EUA a prepararem "linhas de abastecimento" futuras)

O "movimento em pinça" da China em torno de toda a OPEP+ com a crescente tendência de faturação das vendas de petróleo e gás em renminbi. (O "Espaço de Batalha de Commodities" da Rússia-China).

Esta lista equivale a uma grande "perturbação" geopolítica que ocorre, em média, a cada par de meses – afastando o mundo decisivamente do chamado "normal" (que tantos na Classe Consumidora anseiam ardentemente) para um estado de guerra intermediário.

A lista de Pozsar mostra que as placas tectónicas da geopolítica estão criticamente "em movimento" – mudanças, que estão a acelerar e a tornar-se cada vez mais entrelaçadas, mas que ainda estão longe de chegar a qualquer lugar estabelecido. A "guerra" será provavelmente um grande perturbador (no mínimo), até que algum equilíbrio seja estabelecido. E isso poderá levar alguns anos.

Em última análise, a 'Guerra' tem o seu impacto na mentalidade convencional do público – embora vagarosamente. Parece ter sido o medo do impacto sobre uma mentalidade despreparada que está por detrás da decisão de prolongar o sofrimento da Ucrânia e assim desencadear a Guerra de 2023: Uma admissão de fracasso na Ucrânia é encarada como um risco assustador para os voláteis mercados ocidentais (ou seja, taxas de juro mais elevadas durante mais tempo). E a conversa franca representa uma opção difícil para um mundo ocidental – habituado a "decisões fáceis" e "chutar para a frente".

Pozsar, sendo um guru das finanças, está compreensivelmente concentrado no seu ensaio sobre finanças. Mas é concebível que a referência ao Manias, Panics and Crashes de Kindleberger não seja portanto um capricho, mas um elemento incluído como uma pista para possivelmente "golpear" a psique convencional.

Em todo o caso, Pozsar deixa-nos quatro pontos-chave de tomada de consciência económica (com breves comentários acrescentados):

1. A guerra é o principal condutor da história da inflação e da bancarrota dos Estados. (Comentário: a inflação impulsionada pela guerra e o Endurecimento Quantitativo (Quantitative Tightening, QT) decretado para combater a inflação, são políticas que funcionam em oposição radical umas em relação às outras. O papel dos Bancos Centrais atenua as necessidades de apoio à guerra – a expensas de outras variáveis – em tempo de guerra.

2. A guerra implica uma capacidade industrial eficaz e expansível para produzir armas (rapidamente), a qual, em si mesma, requer linhas de abastecimento seguras para alimentar essa capacidade. (Uma qualidade que o Ocidente já não possui e que é dispendiosa de recriar);

3. As commodities que frequentemente servem como colateral para empréstimos tornam-se escassas – e com essa escassez, surge a "inflação" das commodities;

4. E finalmente, a guerra corta novos canais financeiros, isto é, "o projeto da m-CBDC Bridge" [1] (ver aqui).

Este ponto precisa de ser sublinhado mais uma vez: A guerra cria diferentes dinâmicas financeiras e molda uma psique diferente. Ainda mais importante: a "guerra" não é um fenómeno estável. Ela pode começar com pequenos ataques taco-a-taco à infraestrutura de um rival e a seguir – com cada "arrastamento" incremental – deslizar ao longo da curva rumo à guerra total. A NATO não está apenas numa missão arrastada (mission creeping) na sua guerra contra a Rússia, ela está numa missão de corrida – temendo uma humilhação da Ucrânia na sequência da derrocada anterior no Afeganistão.

A UE espera travar essa derrapagem bem longe da guerra total. No entanto, está numa rampa muito escorregadia. O objetivo da Guerra é infligir dor e atormentar o seu inimigo. Nesta medida, está aberta à mutação. Sanções formais e limites sobre a energia metamorfoseiam-se rapidamente na sabotagem de pipelines ou no apresamento de petroleiros.

Entretanto, a Rússia e a China certamente não são ingénuas e têm estado ocupadas a montar o seu próprio teatro de operações, antecipando um potencial conflito mais vasto com a NATO.

A China e a Rússia podem agora afirmar ter construído um relacionamento estratégico, não só com a OPEP+ como também com o Irão e os principais produtores de gás.

A Rússia, o Irão e a Venezuela representam cerca de 40% das reservas mundiais comprovadas de petróleo e cada um deles está atualmente a vender petróleo à China por renminbi com um grande desconto. Os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) são responsáveis por mais 40% das reservas provadas de petróleo – e estão a ser cortejados pela China para aceitarem o renminbi pelo seu petróleo – em troca de investimentos transformadores.

Este é um novo e significativo espaço de batalha que está a ser preparado – acabar com a hegemonia do dólar através da lenta fervura do sapo.

A parte contestante fez o ataque inicial, sancionando metade da OPEP com aqueles 40% das reservas mundiais de petróleo. Esse impulso fracassou: a economia russa sobreviveu e – não surpreendentemente – as sanções 'perderam' aqueles Estados para a Europa, 'entregando-os' ao invés à China.

Entretanto, a China está a cortejar a outra metade da OPEP com uma oferta que é difícil de recusar:   "Durante os próximos "três a cinco anos", a China não só pagará por mais petróleo em renminbi – mas, mais significativamente, "pagará" com novos investimentos nas indústrias petroquímicas a jusante no Irão, na Arábia Saudita e no CCG em geral. Por outras palavras, construirá a economia da geração sucessora" para estes exportadores de combustíveis fósseis cujo prazo de validade da energia se aproxima.

O ponto-chave aqui é que no futuro, muito mais "valor acrescentado" (no decurso da produção) será capturado localmente – a expensas de indústrias do Ocidente. De modo atrevido, Pozsar chama a isto: "Nossa commodity, vosso problema... Nossa commodity, nossa emancipação". Ou, por outras palavras, o eixo China-Rússia está a atear os fogos de uma insurreição estrutural contra o Ocidente em grande parte do Resto do Mundo.

Os seus incêndios visam "ferver lentamente o sapo" – não só o da hegemonia do dólar, mas também o de uma economia ocidental agora pouco competitiva.

Emancipação? Sim! Eis o cerne da questão: A China está a receber energia russa, iraniana e venezuelana com um grande desconto de 30%. Entretanto, a Europa ainda recebe energia para a sua indústria – mas só com um grande acréscimo de preço. Em suma, mais, e ocasionalmente todo, o valor acrescentado do produto será capturado pelos estados "amigos" da energia barata, à custa dos "não amigos" não competitivos.

"A China – a vingança – paradoxalmente tem sido um grande exportador de petróleo russo com alto sobrepreço para a Europa e a Índia um grande exportador de petróleo russo com alto sobrepreço em produtos refinados como o gasóleo – para a Europa. Deveríamos esperar mais [disto no futuro] em mais produtos – e faturados não só em euros e dólares, mas também renminbi, dirhams e rupias", sugere Poszar.

Pode não parecer tão óbvio, mas é uma guerra financeira. Se a UE se contenta em tomar o "caminho mais fácil" da sua queda dentro da falta de competitividade (através de subsídios para permitir importações de elevado sobrepreço), então, como Napoleão observou certa vez ao observar um inimigo a cometer um erro:   Mantenham silêncio!

Para a Europa, isto significa muito menos produção interna – e mais inflação – pois as alternativas de preços inflacionadas são importadas do Leste. O Ocidente a tomar a "decisão fácil" (uma vez que a sua estratégia renovável não foi bem pensada), provavelmente descobrirá que o arranjo é feito às custas do crescimento no Ocidente – uma rota que prefigura um Ocidente mais fraco, num futuro próximo.

A UE será atingida de modo particularmente duro. Escolheu tornar-se dependente do GNL dos EUA, precisamente no momento em que a produção dos campos de xisto dos EUA atingiu o seu pico, pelo que a produção provavelmente será destinada ao mercado interno dos EUA.

Portanto, como o general Bierman esboçou a forma como os EUA prepararam o cenário de batalha na Ucrânia, os planeadores da Rússia, China e dos BRICS têm estado ocupados a estabelecer o seu próprio "teatro".

É claro que não tem de ser assim: Os tropeços da Europa rumo à calamidade refletem uma psicologia incorporada na elite dominante do ocidente. Não há qualquer raciocínio estratégico, nem "decisões difíceis" a serem tomadas no Ocidente. É tudo um Merkelismo narcisista (decisões duras adiadas, e depois "fraudulentas" através de esmolas de subsídios). O Merkelismo é assim chamado após o reinado de Angela Merkel na UE, onde a reforma fundamental foi sempre adiada.

Não há necessidade de refletir, ou de tomar decisões difíceis, quando os líderes são mantidos pela convicção inabalável de que o Ocidente É o centro do Universo. Basta adiar, à espera de que o inexorável se desdobre.

A história recente das guerras eternas lideradas pelos EUA é mais uma prova desta lacuna ocidental: Estas guerras de zumbis arrastam-se durante anos sem qualquer justificação plausível, apenas para serem abandonadas sem cerimónias. A dinâmica estratégica era mais facilmente suprimida e esquecida, porém, quando se travavam guerras insurrecionais – em oposição àquelas travadas entre dois Estados concorrentes bem armados e semelhantes.

A mesma disfuncionalidade tem sido aparente em muitas crises ocidentais de lenta progressão: No entanto, persistimos... porque a proteção da frágil psicologia dos nossos líderes – e de um sector influente do público – tem precedência. A incapacidade de encarar a perda de perspectivas leva as nossas elites a preferirem o sacrifício do seu próprio povo, ao invés de verem os seus delírios expostos.

Em consequência, a realidade tem de ser negada. Assim, vivemos um entre-tempo nebuloso – tanta coisa a acontecer, mas tão pouco movimento. Só quando o auge de crise já não pode ser ignorado – mesmo pelos censores dos media mainstream e Tech – é que pode ser feito algum esforço real para tratar das causas profundas.

Contudo, este quebra-cabeças coloca um enorme fardo sobre os ombros de Moscovo e Pequim para gerir a escalada da Guerra de uma forma cuidadosa – face a um Ocidente para o qual perder é intolerável.

13/Janeiro/2023

[*] Ex diplomata britânico, fundador do Fórum Conflitos com sede em Beirute.

[1] Multiple Central Bank Digital Currency

O original encontra-se em https://strategic-culture.org/news/2023/01/13/the-2023-war-setting-the-theatre/.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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