Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião
Primeiro nos EUA e depois no Brasil, o assalto aos símbolos do poder democrático por quem recusa, em nome do "povo", o resultado de escrutínios eleitorais coloca-nos perante a evidência de que democracia, justiça e bem são noções que variam de acordo com quem ganha ou perde - como no futebol.
Neste domingo em Brasília, como a 6 de janeiro de 2021 no assalto ao Capitólio, pudemos ver em direto, ou quase em direto, as imagens dos assaltantes por si próprios, filmando tudo e filmando-se, através da partilha orgulhosa nas redes sociais - como quem não coloca sequer a hipótese de estar a cometer um crime e portanto a oferecer às autoridades as provas e identificação necessárias para os encontrarem e processarem.
Podemos, é claro, explicar isso com a excitação, aliada à falta de inteligência - ou ingenuidade, se quisermos ser caridosos. Mas sendo do conhecimento geral que muitos dos assaltantes do Capitólio foram identificados e acusados com base nas imagens partilhadas pelos próprios ou por companheiros de assalto, talvez seja avisado pensar noutras explicações.
Além de todos os motivos tontos, que também existem, como o da compulsão da selfie, aquelas pessoas querem mostrar-se naquele assalto porque consideram estar a fazer algo heroico, pelo bem, e ter com elas, por elas, muita gente, que pensam poder "levantar", contagiar, ganhar, com a partilha. Não é só o assalto que é uma ação política - a partilha faz parte da ação, como modo ostensivo de demonstrar que não só quem protagoniza não aceita a ideia de estar a cometer um crime como despreza quem assim o possa considerar. Porque, e o sequestro das cores do país e da sua bandeira como símbolos do movimento significam isso, para quem ali está, aquele é "o verdadeiro Brasil", o verdadeiro "povo".
Justamente, na entrada de um dos edifícios, ouve-se um dos assaltantes dizer: "Já está tomado, estamos na casa do povo." Se a casa é do povo, e se aquele é o povo, não há crime, pelo contrário; trata-se de retomar legitimamente o que foi roubado, segundo o princípio básico da democracia - um governo do povo, para o povo e pelo povo.
E nesse sentido não há nada mais simbólico que as filmagens da entrada no Supremo Tribunal e da sua destruição, como o empunhar ante a multidão, por um dos assaltantes, daquilo que sabemos agora ser uma cópia da Constituição de 1988 (a filmagem começou por ser partilhada referindo que se tratava do original).
Que vemos ali? Uma deslegitimação do regime através da dessacralização da sua lei fundamental e do tribunal que tem por função interpretá-la e aferir por ela quaisquer leis e práticas, ou uma pretensa recuperação, pelo "povo" que os assaltantes creem representar, dos princípios constitucionais que proclamam dar-lhes razão (um dos artigos da Constituição tem sido sistematicamente invocado pelos bolsonaristas como fundamento para um golpe militar)?
Na verdade, para aquelas pessoas, como para os assaltantes do Capitólio, a convicção de que estão perante um roubo não tem sequer de se fundar na ideia, alegada quer por Trump e trumpistas quer por Bolsonaro e bolsonaristas, de que houve uma fraude eleitoral. Há uma espécie de conclusão tautológica: se não foi ao seu lado, ao seu candidato, que foi reconhecida a vitória, então a eleição não foi justa. Como para os fanáticos futeboleiros, qualquer derrota só pode explicar-se por "roubo", qualquer resultado que não o desejado só pode ser ilegítimo.
Assim, as mesmas regras e instituições que serviram para dar a vitória a Trump e Bolsonaro deixam de ser credíveis quando são derrotados. A democracia só é democracia se ganharem; as leis e os tribunais só são para respeitar se prenderem Lula; quando o soltam passam a não valer nada.
Os mesmos que exigiam "lei e ordem" e uma "intervenção militar" para "repor a legalidade" podem então escavacar edifícios públicos, roubar artefactos valiosos, esfaquear quadros, defecar nos gabinetes, espancar polícias (os polícias que os enfrentaram; também os houve) e os seus cavalos, num festim de ódio e absurdo.
Queremos acreditar que este espectáculo indecente terá o efeito contrário do pretendido; que nos muitos milhões que votaram em Trump e Bolsonaro - lembremos que perderam por muito pouco - há uma maioria que não se revê nos assaltos de janeiro de 2021 e 2023. Que acontecimentos como estes contribuem para enfraquecer a respetiva base de apoio, alienando muita gente, e são por isso erros políticos - e Lula, depois de uma primeira reação destemperada no domingo, soube esta segunda-feira corrigir o tom e o discurso de modo a ir ao encontro de quem, não tendo votado nele, se queira demarcar do ocorrido.
Aliás, de tal modo o que aconteceu pode revelar-se danoso para o bolsonarismo que há quem esteja já a pôr a hipótese de que a aparatosa ausência de reação policial em Brasília foi fruto de um maquiavelismo - o de permitir que os vândalos agissem à vontade, de modo a que Bolsonaro e o seu movimento caíssem em desgraça, perdendo apoio nacional e internacional.
É verdade que internacionalmente Bolsonaro viu até líderes de extrema-direita como a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni demarcarem-se de modo inequívoco do sucedido (quiçá vêm daí as fortes dores de barriga que, dizem-nos, o acometeram na Florida), e que o próprio, isolado, amedrontado e sonso, acabou por fazer o mesmo. Mas aquilo a que assistimos nos EUA e agora no Brasil (e mais ainda porque se repetiu no Brasil depois de acontecer nos EUA, em óbvia remake do filme americano) não é apenas um sinal daquilo que já sabemos - que no seio das democracias estão a crescer exponencialmente movimentos cujo intuito, consciente ou inconsciente, é derrubá-las, chegando ao paradoxo de exigir, como o fazem os bolsonaristas, a implantação de ditaduras militares como "salvação" do país e do próprio regime democrático.
Estes acontecimentos medonhos demonstram que a ideia de democracia se transformou, para muita gente, num conceito plástico, vazio, que não corresponde a qualquer conjunto de princípios. Uma espécie de fakedemocracia, ou democracia alternativa - como as fake news e os factos alternativos, é o que der jeito no momento.
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