terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Angola | OS PINCHOS DA CARMENCITA SEVILHANA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Em Angola tudo é possível e tudo vai acontecer se é que não aconteceu já. Um dia apareceu no Negage o senhor Caras Lindas, nome de verdade, não é alcunha. Chegou encavalitado na carga do camião Tamestrader tripulado pelo camionista Olhos de Cão, nome herdado porque era bóer e tinha olhos clarinhos como o meu cão Rubi, um portentoso Baía dos Tigres. O viajante estava coberto de poeira e só os olhinhos estavam limpos. A barba longa coberta de poeira. O cabelo escondido sob uma capa de pó amarelado. E capengava, sinal trágico de uma paralisia infantil, doença muito em voga nesses tempos.

João Bernardo Pinto Caras Lindas era o nome do viajante que desembarcou em frente ao hotel do meu pai, coberto de poeira na roupa e no corpo, excepto nos olhos. Pediu alimentação e alojamento a crédito, até arranjar casa e montar escritório, pois era solicitador encartado.  

O meu papá torceu o nariz mas minha mãe pediu ao Alexandrino, gerente da unidade hoteleira, para o instalar no anexo que tinha quarto, uma divisão onde podia instalar o escritório e casa de banho! Uma hora depois o hóspede apareceu limpinho, barba aparada e bem vestido. Soube mais tarde que na sua maleta tinha duas mudas de roupa, uns livros de poesia e pouco mais. Branco pobre. Apareceu no Negage vindo do Lobito. Sua esposa faleceu e deixou dois filhos ainda crianças. Queria juntar a família, o mais depressa que pudesse. E conseguiu.

O Caras Lindas declamava poemas de Guerra Junqueiro e Gomes Leal. Deste dizia com estremecida emoção “A Duquesa de Brabante” que começava assim: Tem um leque de plumas gloriosas,/na sua mão macia e cintilante,/de anéis de pedras finas preciosas/a Senhora Duquesa de Brabante. 

Como solicitador fazia requerimentos ao governador do distrito no Uíge e ao geral em Luanda. Tratava de renovar bilhetes de identidade. Escrevia cartas para o Puto em nome dos analfabetos que eram a maioria da população branca. Um dia anunciou que ia mandar vir a família. Por isso deixou as instalações no hotel e alugou uma casinha. Estava no seu novo lar quando o Costa do Bungo o levou. Gerente! 

No dia 15 de Março de 1961 rebentou a Grande Insurreição. Mas a família do Caras Lindas já tinha regressado ao Lobito, nunca soube porquê. O gerente do Costa do Bungo foi a Luanda vender café e levou o seu braço direito. No regresso, o patrão trazia o bornal cheio de dinheiro e o empregado, uma menina espanhola com a qual amigou numa noite de cabaré. Diz quem sabe que eram muito felizes. Mas pouco tempo. 

Os guerreiros da UPA atacaram no Lukunga e uma unidade da tropa portuguesa estava cercada. O alferes que comandava as tropas do Bungo pediu voluntários para ir ajudar os colegas. Ninguém se acusou. Mas o Caras Lindas ofereceu-se para a operação de resgate dos cercados. E lá foi capengando. Morreram todos junto à ponte. A senhora espanhola estava grávida e viúva. Um a tragédia.

O governador-geral ajudou-a e ela abriu a cervejaria-restaurante Sevilhana, mesmo ao lado da Neográfica empresa que editava a revista Notícia. O Ernesto Lara Filho descobriu a excelência da cozinha, fez propaganda e ficámos clientes. Conversa puxa conversa e soube que era a viúva do Caras Lindas. 

A criancinha já tinha nascido e estava numa alcofa sempre ao lado da mamã, mesmo quando aviava os clientes. Fiquei comovido. Porque o defunto foi muito importante na minha vida. Emprestou-me livros, ensinou-me a colocar a voz na declamação e um dia, já bêbado (ele adorava beber) disse-me que a liberdade vale mais do que todo o café do mundo! Ainda hoje acredito nessa mentira piedosa. Posso chamar-te Carmencita? E ela, rindo, disse que sim. 

A Carmencita introduziu na gastronomia de Luanda os pinchos moruños, uma especialidade sevilhana e que lhe permitia apresentar o seu restaurante como internacional. O petisco era acompanhado de “vinho espanhol”. Chusmas de clientes! A senhora pensava que eu era um beberrão sem gosto mas o meu perfil era mais para o escanção. E aquele tintol espanhol era igualzinho ao que vendia o Castelli com a marca Castelvinho. 

O produto Castelvinho chegava do Puto, a granel. As más-línguas diziam que era feito lá no armazém da empresa com água do Bengo e permanganato. E daí? Se essa fosse a única falsidade em Angola estávamos no paraíso. Confesso que no tempo das vacas magras o Castelvinho era divino. Melhor do que um “château” francês. O bom e o mau o bem e o mal têm mais a ver com as circunstâncias. 

Angola deve ao Caras Lindas a Carmencita, o restaurante-cervejaria Sevilhana e os pinchos moruños. Mas esta não foi a única pincelada espanhola em Luanda. Poucos anos antes instalou-se na capital a empresa “COFINCA”, uma imobiliária que começou a construir em altura, regime de propriedade horizontal. Até esse nefasto acontecimento Luanda tinha o terceiro andar do Alfredo F. de Matos e do Hotel Globo. Mais o quarto andar do Quintas e Irmão. Quanto ao resto, alturas só mesmo a Fortaleza de São Miguel no morro.

Os espanhóis construíram no Prenda “unidades de vizinhança” com grandes torres servidas por elevadores, coisa nunca vista em Luanda. Eu habitei uma dessas gaiolas que tinha vista desde a Fortaleza até ao Mussulo, passando pela Samba e a Corimba. Um luxo de vista. Mas aquilo era muito alto e eu quando bebo uma pinga fico com tonturas. Abandonei o apartamento e fui viver mais baixinho, num quarto do mais velho Afonso, coração do Bairro Operário. Desde então nunca mais tive a mania das grandezas.

Hoje está em Angola o rei de Espanha e sua esposa Letícia. A Carmencita era boa menina e perita a cozinhas pinchos moruños. A COFINCA plantou grandes prédios na Luanda dos bairros Quipacas, Nazaré, Bungo (entre a Igreja da Nazaré e a Kaponte),Katomba, Mutamba, Mazuika (na zona das Igreja do Carmo), Kafaco (Calçada da Missão), Ingombotas, Maculusso, Sangandombe (Avenida do I Congresso do MPLA, território dos oleiros do barro negro), Quibando (onde está hoje o Cine Teatro Nacional), Katari (zona do Pelourinho), Remédios (Cidade Alta), Quitanda, Terreiro (Porto de Luanda) Misericórdia (Sé), Coqueiros e Maianga. Tudo destruído pelas alturas.

Tenho uma péssima notícia para o Presidente João Lourenço. A monarquia espanhola está mergulhada na corrupção desde a ponta dos pés à raiz dos cabelos. Desde Juan Carlos ao valete de chambre. O tal de rei Filipe, sexto, esconde a mãe e é capaz de bater no pai. A dona Letícia mete pena com aquelas chuchas jardadas com silicone e bumbum sumido. 

Espanha fez de Portugal uma colónia e por tabela, Angola foi colónia espanhola. O maior genocídio da História da Humanidade foi executado pela monarquia espanhola na América Latina. Em Angola não fizeram intervalo.

Mais esta. Angola foi colónia espanhola desde 1581 até 1641. Nessa época os holandeses disputavam a primazia dos genocídios nas “índias ocidentais”. Ganharam largamente aos espanhóis. E ocuparam  Angola (denominada oficialmente Loango-Angola) em 25 de agosto de 1641. O Almirante Cornelis Jol ocupou Luanda apoiado por 18 navios. A maioria da população fugiu. Salvador Correia expulsou os ocupantes em 1648. Mas nessa altura Portugal já não era colónia espanhola.

Presidente João Lourenço, cuidado com os corruptos da monarquia espanhola! Com os seus não se preocupe, estão devidamente controlados pelo Miala, o presidente do Tribunal Supremo e o inefável Pita Grós, alcunhado de PGR, que está agarrado ao tacho como uma sanguessuga faminta. Quem o avisa seu amigo é. Mas não adianta nada porque por trás das fortunas está sempre um qualquer conluio com o Estado, nem que seja em forma de ajuste directo e vá de grupo carrinho. 

Abaixo a monarquia. Abaixo o mobutismo. Morte aos monarcas! Morte aos czares! Rainhas só decapitadas à moda de Ana Bolena e Maria Antonieta! Viva a República!

* Jornalista

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