sexta-feira, 30 de maio de 2014

A PERSPETIVA MARXISTA NA UCRÂNIA



Yury Shakhin – Revista Rubra

Para a maioria dos europeus, a Ucrânia deve parecer um país muito estranho. Enquanto na UE as massas protestam activamente contra as suas políticas, o povo ucraniano quer com toda a sua força entrar na UE e, aos seus olhos, a imperialista União Europeia parece ser a Terra Prometida. Contudo, a nossa tarefa não é surpreendermo-nos mas explicar o que aconteceu na Ucrânia.

Antes de mais, tenho de dizer quais foram as razões para o surgimento do movimento de Maidan. É sobejamente conhecido que os trabalhadores ucranianos estavam fartos de exploração e corrupção. Havia um poderoso descontentamento social na sociedade ucraniana. No decurso dos últimos anos, foram muitos os sinais inequívocos dessa realidade. Protestos espontâneos, principalmente da facção pequeno-burguesa, estalaram em diferentes partes da Ucrânia. Por isso, foi um real descontentamento social que levou finalmente a Maidan.

O movimento Maidan tem uma importante particularidade — era de natureza pequeno-burguesa. Os nossos camaradas de Kiev, que visitaram Maidan, notaram a presença de camponeses, de trabalhadores sazonais do campo, de comerciantes urbanos, os chamados estratos médios urbanos,  da intelligentsia, mas não encontraram os trabalhadores comuns a participar activamente em Maidan. De qualquer modo, muitos deles insurgiram-se contra as más condições de vida e a governação dos grandes capitalistas, chamados oligarcas na Ucrânia. Assim, Maidan tinha realmente algumas tendências democráticas e foi por isso que alguns esquerdistas ucranianos tentaram participar nele.

No entanto, o movimento pequeno-burguês não era independente. Desde o princípio, aceitou a hegemonia das forças nacionalistas burguesas. Estas forças oposicionistas recebiam abertamente a ajuda financeira americana e europeia e tentaram manobrar este protesto para a sua luta de poder na Ucrânia. Tiveram sucesso nesta empresa.

Ora, fora da Ucrânia desconhece-se que, no princípio, desenhavam-se duas Maidans: uma fora formada espontaneamente na praça da Independência, a outra tinha sido organizada pelo partidos da oposição na praça Europeia. Quando os partidos da oposição perceberam que o seu campo não era popular, deslocaram-se para a praça da Independência e assumiram o seu controlo, dado a sua melhor organização e capacidade financeira. Assim, Maidan caiu nas mãos das forças nacionalistas da burguesia que trabalhavam como agentes do EUA e da UE. Este facto beneficiou o fortalecimento das tendências extremistas pró-Nazi em Maidan.

Depois da vitória de Maidan, a sua natureza de classe mudou completamente. Se, antes da vitória, ainda se verificavam algumas tendências democráticas, depois dela desapareceram completamente. Desde o final de Fevereiro que Maidan se transformou na base do novo regime burguês. E se alguém tenta descobrir alguma tendência democrática, terá de procurar aqueles grupos de pessoas que não caíram sob a influência Nazi e se opõem ao actual governo de Kiev.

Quanto à natureza de classe do novo poder estatal estabelecido por Maidan, ela é baseada na aliança entre oligarcas e a cáfila Nazi. Aqueles que falaram sobre uma vitoriosa revolução democrática na Ucrânia estavam completamente enganados. As forças da oposição burguesa usaram os protestos de massa para alcançar o poder e nada mais. Não se tratou de uma revolução, mas de um golpe de Estado reaccionário — nada mudou nas relações de propriedade, nada mudou na estrutura política. A única mudança foi que os extremistas nacionalistas ucranianos alcançaram o poder. E eles nada têm a ver com o fortalecimento da democracia.

A liberdade política é agora mais limitada do que nos tempos de Yanukovitch. O novo governo de Kiev passou imediatamente a controlar todos os principais canais de televisão na Ucrânia. Os jornais oposicionistas mais influentes foram encerrados, por exemplo, o que aconteceu com o jornal “2000”, que se orientava consistentemente pela Rússia e não pela UE ou pelos EUA.  Verificaram-se ataques DDOS (ataque de negação de serviço) contra sítios da net oposicionistas, como o «Українська кривда», que expunha as mentiras e a natureza corrupta dos ditos média democráticos e independentes — este sítio da net não funciona desde a vitória dos “democratas”.  Todas as tipografias receberam uma ordem do serviço de segurança do Estado para não imprimir materiais contra o novo regime — é, por isso, que até o nosso pequeno jornal enfrenta dificuldades pela primeira vez na sua história: nós denunciamos abertamente a aliança entre a cáfila Nazi e os oligarcas como a base do novo regime e, por esta razão, é difícil conseguir publicá-lo.

Como é evidente, o novo governo ucraniano tem o apoio externo. Ele depende do imperialismo da UE e dos EUA. A cada dia que passa, vai-se tornando claro o plano dos EUA de o usar como um simples instrumento na sua disputa hegemónica com a Rússia. Por isso, na perspectiva internacional, o governo de Kiev é instrumental na repartição das esferas de influência mundiais. Assim, a sua natureza reaccionária deve-se não só ao seu papel interno, como externo.

Portanto, a tarefa de todas as forças da classe trabalhadora não está em procurar as tendências democráticas do novo regime, mas em proclamar desafogadamente: não apoiem o governo de Kiev!

Os aventureiros que tomaram o poder em Kiev analisaram realisticamente a situação e compreenderam muito bem que, nos próximos meses, se tornarão extremamente impopulares. E, inesperadamente, a Rússia auxiliou-os no momento certo! Quando as tropas russas entraram na Crimeia, uma extraordinária onda patriótica levantou-se em toda a Ucrânia. O governo de Kiev  desencadeou activamente uma intensa propaganda patriótica. Todos os média ucranianos produzem a ilusão de que a guerra Rússia-Ucrânia é inevitável. Proclamou-se na Ucrânia uma parcial mobilização militar. Ainda que toda a gente que ouça atentamente o ministro dos negócios estrangeiros Lavrov perceba que a Rússia não tem quaisquer planos de movimentar as suas tropas no interior dos territórios ucranianos (as recentes revoltas na Ucrânia do Leste provaram isso: durante duas semanas, pessoas em Donetsk e Lugansk clamaram pela ajuda da Rússia, mas nenhum tanque russo atravessou a fronteira ucraniana). Seja como for, uma real histeria bélica começou na Ucrânia. O regime usa habilmente a actividade russa na Crimeia como um instrumento de auto-fortalecimento.

Assim, o imperialismo russo auxiliou os Nazis ucranianos. Muitas pessoas moderadas, que não estavam satisfeitas com a vitória de Maidan, submeteram-se à propaganda nacionalista e patriótica. E isto teve duas consequências negativas: primeiro, os apoiantes de Maidan proclamaram que era impossível criticar o novo governo enquanto a Ucrânia não tivesse vencido a guerra e recuperado a Crimeia, o que preveniu, ou adiou, a ruptura entre as massas e os novos governantes capitalistas reaccionários; segundo, a situação na região sudeste modificou-se. Logo que o governo de Kiev se estabeleceu, começou nesta região da Ucrânia uma larga movimentação de pessoas anti-Maidan. Esta detinha algumas tendências de classe e esperamos que elas sejam fortalecidas, mas a entrada russa na Crimeia veio cerceá-las. Muitas das pessoas abandonaram o movimento anti-Maidan porque entraram numa histeria patriótica, e este tornou-se cada vez mais estreitado com as forças nacionalistas russas a aumentarem nele a sua presença. Na verdade, os trabalhadores ucranianos sofreram em Março duas mobilizações nacionalistas — a ucraniana e a russa. O lugar para uma posição de classe autónoma estreitou-se rigorosamente.

A única forma de travar as tendências nacionalistas é reconhecer que a alteração das fronteiras ucranianas não é razão suficiente para parar a luta de classe contra o regime. Ainda que tal possa conduzir à guerra pela Crimeia, devemo-nos recordar da corajosa posição de princípio de Lenine, Karl Liebknecht e outros sociais-democratas de esquerda, durante a I Guerra Mundial, quando os regimes reaccionários embateram. Eles deram-nos o exemplo da posição que a esquerda consciente deve tomar relativamente aos regimes reaccionários e à luta das forças imperialistas. Eles não pararam a luta de classe mesmo durante a Guerra Mundial.

Por isso, na presente situação, o nosso slogan, Não apoiem o governo de Kiev!, é uma espécie de derrotismo revolucionário. E nós temos o direito moral de escolher esse caminho.  Alguns protestos públicos contra Putin e a sua política para a Crimeia tiveram lugar na Rússia no passado Março. A posição dos marxistas russos, que protestam contra o chauvinismo das políticas de Putin, abrem a possibilidade moral de executar actividades semelhantes contra o governo nacionalista na Ucrânia. Pois, como Lenine ensinou, o derrotismo revolucionário é somente possível quando tais políticas são conduzidas em ambos lados dos Estados beligerantes.

Na nossa luta, devemos perceber e reconhecer que a revolução socialista na Ucrânia não está, há muito tempo, na ordem do dia. Actualmente não existem sinais de um movimento de classe autónomo. Não só não existem partidos de esquerda influentes, como não existem partidos de esquerda de génio. Não existem sindicatos influentes e os sindicatos existentes estão quase completamente fora do movimento socialista, dada a sua ideologia. Não existe consciência de classe nas classes trabalhadoras, substituída actualmente por diferentes ilusões burguesas.  A crise actual tornou a situação ainda pior. Muitos trabalhadores ficaram encandeados com a ideologia nacionalista da mobilização. Por isso, nas circunstâncias actuais, temos de criar condições prévias para um movimento de classe autónomo e o mais importante ponto de partida para os marxistas ucranianos é destruir as ilusões burguesas e fortalecer a consciência de classe.

Nesta tarefa, nós temos um aliado inesperado — o governo actual. As suas políticas reaccionárias neoliberais irão produzir e aprofundar o descontentamento nas massas trabalhadoras. As reformas neoliberais, que o governo de Kiev pretende prosseguir sob a aparência de luta contra a agressão externa, irão abrir rapidamente os olhos às pessoas, independentemente da sua presente orientação política. Quer a população neutral, quer a que luta, seja no lado Maidan, seja no lado anti-Maidan, começarão a perceber o que está a acontecer. Nós temos de aproveitar esta influência na consciência das massas para formar a consciência de classe, seja em pessoas de Maidan ou anti-Maidan, seja em pessoas da população neutral.

Quais são as principais tarefas ideológicas neste processo? A crítica deve ser dirigida principalmente contra as ilusões Europeias: sem as destruir será impossível conduzir o descontentamento de massas na direcção socialista. Actualmente, tais ilusões são hegemónicas. Por isso, devemos confrontar as esperanças de colher o maná na UE com a verdadeira imagem da dura realidade da luta de classes nesse bastião do imperialismo mundial. Mas não é tudo.

Nas regiões onde a influência da União Aduaneira existe, o desapontamento com as ilusões Europeias irão trabalhar para o benefício do centro imperialista. Deste modo, devemos complementar a crítica das ilusões Europeias na região sudeste com a crítica da União Aduaneira, de outro modo as nossas críticas anti-Europeias irão produzir novas ilusões burguesas e fortalecer um imperialismo em detrimento de outro.

A tarefa seguinte. No oeste e este do país, a mobilização nacionalista da população foi realizada por meio de várias ideologias nacionalistas. Deste modo, devemos criticar o nacionalismo, seja ele ucraniano, seja ele russo. Ao mesmo tempo, devemo-nos recordar que o nacionalismo ucraniano é o mais activo actualmente. Ele tem do seu lado o poder de Estado e de grupos armados, e é muitas vezes mais popular entre a juventude do que o nacionalismo russo. Portanto, devemos dirigir contra ele o nosso fogo.

O sucesso desta proposta de programa não depende somente da actividade dos esquerdistas. Ele depende muito mais da evolução interna do regime. É altamente provável que o regime atinja formas francamente fascistas. Neste caso, todas as recomendações supra-referidas se tornarão inúteis.

Outro grande problema nas tácticas propostas é a falta de forças esquerdistas na Ucrânia.  A mobilização ucraniana produzida tornou muito fortes as organizações ucranianas. Algumas submeteram-se às ilusões de Maidan, às ilusões Europeias, e envolveram-se com o movimento nacionalista ucraniano. Isto aconteceu com os anarquistas (excepto os anarco-sindicalistas) e a maioria do grupo trotskista “Oposição de Esquerda” em Kiev. O mais vergonhoso exemplo desta táctica aconteceu na rua Grushevskogo, em Kiev. Anarquistas lutaram contra a força especial da polícia e atiraram cocktails molotov ombro a ombro com os Nazis do Right Sector. Outra parte dos grupos de esquerda caíram sob as ilusões Russas. Tal aconteceu com a organização neo-estalinista Borotba e outros pequenos grupos estalinistas. Actualmente, estão activos no movimento anti-Maidan. Infelizmente, alguns camaradas do meu grupo “Contra-Corrente” submeteu-se também às ilusões Europeias. O nosso grupo fracturou-se porque não conseguíamos encontrar uma plataforma comum.

Por este artigo, podem compreender as diferenças entre nós e os nossos oponentes. Mas é necessário formulá-las, frontal e abertamente, para um melhor entendimento. Será útil para os esquerdistas europeus que cometem erros semelhantes. Portanto, em que é que estamos em desacordo com os nossos oponentes?

Eles acreditam que todos os recursos devem ser dirigidos para a crítica do imperialismo russo, ignorando completamente a actividade do imperialismo europeu e americano;

Eles acreditam que o principal golpe deve ser desferido contra o nacionalismo russo, sendo que o nacionalismo ucraniano não é considerado a sua principal ameaça;

Eles ignoram a tendência acelerada no sentido de um regime fascista e continuam a acalentar ilusões democráticas;

Eles acreditam que é necessário apoiar incondicionalmente a escolha Europeia da Ucrânia, porque eles vêem nisso algo distinto da simples absorção da Ucrânia ao imperialismo europeu.

A situação na Ucrânia é muito difícil.  Seja como for, há algumas hipóteses de constituir uma autónoma consciência de classe — espero. E nesta base, iremos finalmente formar um movimento independente, tanto do nacionalismo ucraniano, como do nacionalismo russo. Um movimento independente, tanto do imperialismo americano e europeu, como do imperialismo russo. Um movimento de classe consciente da força dos trabalhadores.

Traduzido do inglês por Pedro Bravo

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