sábado, 29 de agosto de 2015

OS MIGRANTES E A TRAGÉDIA DO SÉCULO




Na Alemanha prossegue o novo 'esporte' neo-nazista: queimar abrigos destinados aos refugiados.

Flavio Aguiar, de Berlim – Carta Maior

A crise financeira que se espraiou a partir da China e de sua economia que revelou suas fraquezas.

O assassinato ao vivo de dois jornalistas nos EUA, reacendendo debate sobre posse de armas naquele pais.

A recuperação, ainda que parcial, dos preços do petróleo no mercado internacional e a decorrente valorização das ações da Petrobras (que está longe de ser a massa alquebrada que nossa velha mídia quer que ela seja).

Correu mundo e manchetes a denúncia feita pelo doleiro Alberto Yousseff na CPI, em Brasilia, sobre ter o senador Aecio Neves recebido propina de Furnas. A noticia só foi escondida pela velha mídia brasileira. Além da denúncia em si, que deve ser averiguada e provada, o ocorrido expôs a parcialidade da nossa velha mídia e a fragilidade dos vazamentos da Operação Lava Jato.

Mas as manchetes principais foram para a terrível tragédia dos migrantes na Europa. Mais de 70 corpos em decomposição foram encontrados dentro de um caminhão abandonado numa auto-estrada austríaca. Inicialmente a policia estimou os corpos em 20, depois em 50 e finalmente em “mais de 70”. A imprecisão das cifras deveu-se ao adiantado estado de decomposição dos corpos. O caminhão pertencera a uma empresa transportadora de galináceos da Eslováquia, que afirmou tê-lo vendido em 2014. Estava em nome de um cidadão romeno e tinha placa da Hungria. Na manhã da sexta-feira a policia húngara afirmou ter detido o motorista suspeito, além de alguns possíveis cúmplices.

Na quarta-feira foram encontrados 50 corpos no porão de um navio no Mediterrâneo, que tinha 450 pessoas a bordo.

na quinta-feira mais um naufrágio neste mar, desta vez ainda perto da costa da Líbia, provocou a morte de pelo menos 200 pessoas. Outras 200 conseguiram se salvar, socorridas por navios ou conseguindo chegar à terra firme.

Uma vaga de milhares de migrantes, vindos sobretudo da Síria e do Iraque, conseguiu “furar” o bloqueio do Exército da Macedônia junto à fronteira grega. A Macedônia acabou pondo trens á sua disposição, para que eles atravessassem em direção à Sérvia. Deste país eles pretendem passar à Hungria e dali para a Europa Ocidental. A Hungria está construindo um muro na fronteira com a Sérvia, mas até o momento os migrantes têm conseguido atravessar.

Houve uma mudança de rota no caso de muitas destas correntes migratórias. A Líbia continua sendo a rota preferida pelos que vêm da Nigéria, da Eritreia e da Somália e tentam ingressar na Europa pela costa italiana. Mas no momento a maior massa de migrantes vêm da Síria e do Iraque, preferindo estes o caminho da Turquia ou da Grécia.

O fluxo de imigrantes provém de países desorganizados por guerras civis, em alguns casos com ajuda decisiva de potências ocidentais, como no caso da própria Líbia, do Iraque e da Síria. A emergência do Exército Islâmico na Síria e no Iraque só piorou a situação.

A chanceler Angela Merkel e o presidente François Hollande se reuniram durante a semana para concertar uma ação conjunta diante da questão. O maior problema está no convencimento de outros dirigentes em aceitar quotas de imigrantes refugiados.

Há forte resistência por parte de muitos europeus em assumir a responsabilidade diante do fenômeno. Nesta semana ouvi a entrevista de uma deputada polonesa, do campo conservador, junto ao Parlamento Europeu, dizendo que a Polônia não receberá estes imigrantes, porque são indesejáveis, na maioria só querem se beneficiar das vantagens europeias, muitos são terroristas, etc. Acrescentou ela que, caso recebesse imigrantes, o país só aceitaria “aqueles que fossem cristãos”. A deputada teve sorte de não ser eu o entrevistador, porque eu perguntaria a seguir, na lata, se esta afirmação implicava também a exclusão de judeus.

Na Alemanha prossegue o novo “esporte” neo-nazista: queimar abrigos presentes e futuros destinados aos refugiados. O incidente mais grave aconteceu na cidade de Heidenau, perto de Dresden, no estado da Saxônia, onde houve um confronto entre policiais e manifestantes que tentavam incediar um destes abrigos. Os manifestantes mais exaltados gritavam “Heil Hitler” e outros slogans nazistas. Também cantavam “Wir sind das Volk”, “Nós somos o povo”, slogan das manifestações que antecederam a queda do muro de Berlim em 1989, e que agora está sendo apropriado pela extrema-direita. O vice-chanceler Sigmar Gabriel, do SPD, e a chanceler Angela Merkel estiveram em Heidenau, condenando as manifestações. Depois disto a sede do SPD em Berlim recebeu uma ameaça telefônica dizendo que havia uma bomba no prédio, que foi evacuado. Além da ameaça a pessoa que telefonou também proferiu slogans racistas. Nenhuma bomba, no entanto, foi encontrada.

No fim de semana estava prevista uma festa para receber os refugiados em Heidenau. Diante da ameaça, por parte de elementos da extrema-direita, de atacar a festa, o governo do estado e a prefeitura proibiram qualquer manifestação ou festa até a segunda-feira. Os partidos de oposição no plano federal (Verdes e Linke) protestaram, alegando o direito constitucional à livre manifestação. O deputado verde Cem Özdemir declarou no rádio que iria a Heidenau no fim de semana e conclamou todos os que quisessem a segui-lo.

Do outro lado do Atlântico, o pré-candidato republicano Donald Trump afirmou que, se eleito, deportará dos EUA todos os imigrantes ilegais. Um jornalista perguntou como ele faria isto, uma vez que o número de “ilegais” chega a 11 milhões. Ele respondeu que tem muitas qualidades como “manager”, e que o processo de deportação seria “tranquilo” e “humanitário”. O último grande processo de deportação massiva nos EUA ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando 110 mil japoneses e descendentes foram confinados em casos de concentração dentro do pais, num processo que provocou traumas ainda vivos.


Créditos da foto: Fotos Públicas

Europa. ESSES PARAQUEDAS SOBRE AS NOSSAS CABEÇAS



Manlio Dinucci*

Protegidos pelo blecaute político-midiático, estão descendo na Europa enxames de paraquedistas em pé de guerra. Trata-se da “Swift Response” (Resposta Rápida), “o maior exercício militar da Otan de forças aerotransportadas, cerca de cinco mil homens, desde o fim da guerra fria”.

Realiza-se de 17 de agosto a 13 de setembro na Itália, Alemanha, Bulgária e Romênia, com a participação também de tropas estadunidenses, britânicas, francesas, gregas, holandesas, polonesas, espanholas e portuguesas. Naturalmente, confirma um comunicado oficial, sob a “direção do exército dos Estados Unidos”.

Para a “Resposta Rápida”, o exército dos Estados Unidos” emprega, pela primeira vez na Europa depois da guerra contra a Iugoslávia em 1999, a 82ª Divisão aerotransportada, incluindo a 173ª Brigada baseada em Vicenza (Itália). A mesma que treina desde abril, na Ucrânia, os batalhões da guarda nacional de clara composição neonazista, subordinada ao Ministério do Interior e que agora, depois de um exercício com fogo realizado na Ucrânia em seis de agosto, começa a treinar também as forças armadas “regulares” de Kíev”.

A “Swift Response” foi precedida em agosto pelo exercício militar bilateral EUA-Lituânia “Uhlan Fury”, acompanhado por um semelhante na Polônia e pela denominada “Allied Spirit”, realizado na Alemanha, sempre sob o comando estadunidense, com a participação de tropas italianas, georgianas e até mesmo sérvias. E, pouco depois da “Swift Response”, se desenvolverá de três de outubro a seis de novembro uma das maiores manobras militares da Otan, a “Trident Juncture 2015”, que mobilizará sobretudo na Itália, Espanha e em Portugal forças armadas de mais de 30 países aliados e parceiros, com 36 mil homens, mais de 60 navios e 10 aviões.

Quem explica o escopo dessas manobras militares da Otan sob o comando dos Estados Unidos, que se desenvolvem doravante sem interrupção na Europa, é o novo chefe do estado maior do exército dos Estados Unidos, o general Mark Mil­ley. Depois de ter definido a Rússia como uma “ameaça existencial porque é o único país do mundo com uma capacidade nuclear no nível de destruir os Estados Unidos” (audiência no Senado em 21 de julho), no seu discurso de posse (14 de agosto) declarou: “A guerra, o ato político com o qual uma parte tenta impor a sua vontade a outra, se decide sobre um terreno em que as pessoas vivem. E é sobre esse terreno que o exército dos Estados Unidos, o mais bem armado e treinado do mundo, não deve jamais fracassar”. O “terreno” de onde são lançadas as operações dos Estados Unidos e da Otan para o Leste e o Sul, mais uma vez, é o europeu. No sentido não apenas militar, mas também político.

É emblemático o fato de que a UniãoEuropeia como tal participa da “Trident Juncture 2015” (com um silêncio político geral). Não é de espantar, uma vez que 22 dos 28 países da União Europeia são membros da Otan e o artigo 42 do Tratado sobre a União Europeia reconhece o seu direito de realizar “a defesa comum por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte”, que (sublinha o protocolo número 10) “continua sendo o fundamento da defesa coletiva da União Europeia”.

A Otan – cujo comandante supremo aliado na Europa é sempre nomeado pelo presidente dos Estados Unidos e cujas demais posições de mando estão nas mãos dos Estados Unidos - serve para manter a União Europeia na esfera de influência estadunidense. As oligarquias europeias tiram vantagem disto, pois em troca da “fidelidade atlântica” de seus países participam na divisão dos lucros e áreas de influência com as estadunidenses. Enquanto isso, os povos europeus são arrastados a uma perigosa e custosa nova guerra fria contra a Rússia e a situações críticas, como a do dramático êxodo de fugitivos provocado pelas guerras dos Estados Unidos e da Otan na Líbia e na Síria.

Manlio Dinucci* - Voltaire.net

Tradução José Reinaldo Carvalho,  editor do site Vermelho - Fonte Il Manifesto (Itália)

*Geógrafo e geopolítico. Últimas publicações :Laboratorio di geografia, Zanichelli 2014 ;Geocommunity Ed. Zanichelli 2013 ; Escalation. Anatomia della guerra infinita, Ed. DeriveApprodi 2005.

CONTINUA DRAMA DA IMIGRAÇÃO NA EUROPA - Charge do Latuff



Carlos Latuff, Porto Alegre – Opera Mundi

Número recorde de refugiados chega ao continente europeu fugindo de situações de conflito em países da Ásia e da África.

O cartunista e ativista Carlos Latuff é colaborador de Opera Mundi. Seu trabalho, que já foi divulgado em diversos países, é conhecido por se dedicar a diversas causas políticas e sociais, tanto no Brasil quanto no exterior. Para encontrar outras charges do autor, clique aqui.

GRÉCIA: A VERDADE SOBRE O “RESGATE”




Números demonstram: “empréstimo” destina-se a pagar aristocracia financeira: governos europeus ricos, bancos e grandes empresas gregas. Cidadania sofrerá perda enorme

Roberto Savio – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho

A longa saga da Grécia aparentemente acabou: as instituições europeias concederam a Atenas, na semana passada, um terceiro resgate de 98 bilhões de dólares que, junto com os dois anteriores, soma US$ 273 bilhões.

Não restam dúvidas: a grande maioria dos cidadãos europeus está convencida de que este é um exemplo de solidariedade; se a Grécia não for agora capaz de caminhar por seus próprios pés, a responsabilidade cabe exclusivamente aos cidadãos gregos e a seu governo. Mas isso só se deve ao fato de que, em geral, os meios de comunicação pararam de proporcionar pontos de vista alternativos… e algumas pessoas inclusive ignoram que o resgate é um empréstimo e portanto aumenta a imensa dívida do país.

Na verdade, a economia produtiva da Grécia viu muito pouco desse dinheiro, já que os resgates foram operações em que os cidadãos gregos não apenas não recebem nada, mas inclusive devem pagar um preço brutal.

A realidade por trás da operação foi acertadamente descrita por Mujtaba Rahman, respeitado analista chefe para a zona do euro do Grupo Eurasia, com sede em Londres. Ele assinala que “o resgate não visa realmente executar um plano de crescimento para a Grécia, e sim um plano para assegurar que se pague ao Banco Central Europeu (BCE) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e para que a zona do euro não se divida”.

O objetivo é claro. Dos 98 bilhões de dólares, 41 bilhões se destinarão ao pagamento da divida com outros governos europeus — Alemanha em primeiro lugar. Outros 28 bilhões irão à recapitalização dos bancos gregos, sangrados pela fuga de capitais do país em direção a bancos europeus mais seguros. Serão destinados 21 bilhões ao pagamentos dos juros da dívida que a Grécia vem acumulando. Por último, 8 bilhões irão para pagar a dívida do Estado com as empresas gregas.

De modo que apenas 8 bilhões serão destinados à economia real e nada para a cidadania, que agora deverá sofrer uma série de novas medidas drásticas de austeridade, que deprimirão ainda mais seu nível de vida e seu poder aquisitivo.

Financeiramente, os resgates foram um êxito. Todas as perdas e a má exposição das instituições europeias na Grécia foram despejadas nas costas deste país. Antes do primeiro resgate, os bancos franceses estavam expostos a títulos duvidosos da Grécia em 72 bilhões de dólares; agora, só 1,82 bilhões, sem perdas. Os riscos dos bancos alemães caíram de 51 bilhões a 5,7 bilhões de euros.

O intrigante é que uma série de estudos mostram que até o último momento, quando já era amplamente sabido que a Grécia estava numa crise profunda, os bancos e os investidores europeus continuaram comprando bônus gregos. Estavam seguros de que a Grécia pagaria? Não, mas sabiam que o governo helênico seria resgatado e que, portanto, recuperariam suas inversões, que é exatamente o que aconteceu.

O sistema financeiro tem agora vida própria, é quarenta vezes maior que a economia real, se comparamos suas transações financeiras diárias com as operações relacionadas com a produção de bens e serviços. O capital é intocável e circula livremente na União Europeia (UE), à diferença de seus cidadãos. Além disso, há diversos projetos legislativos que apontam para a redução de impostos para o um por cento dos mais ricos.

Durante as negociações, uma acusação frequente dirigida aos gregos era que não conseguiam que seus ricos armadores pagassem sua cota de impostos. Claro, os armadores colocam seu dinheiro onde ele não pode ser alcançado. Entretanto, não é hipocrisia alegar isso, quando se sabe que existem pelo menos 2,28 trilhões de dólares escondidos em paraísos fiscais e que, só para dar um exemplo, ninguém conseguiu que a Ryanair, companhia aérea irlandesa de baixo custo, pagasse de fato seus impostos? Por não mencionar o fato de que quando era primeiro ministro de Luxemburgo (1995-2013), o atual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, concedeu desonerações fiscais secretas a mais de uma centena de empresas internacionais.

Recentemente, a agência France Presse divulgou um assombroso estudo do Instituto Leibnitiz de Investigação Econômica. Revela que a Alemanha ganhou 114 bilhões de dólares em poupanças, pela queda nos juros da sua própria dívida. De fato, a crise grega e os temores de sua propagação impulsionaram muitos investidores a refugiar-se nos bônus alemães, mais seguros, que em virtude dessa demanda extraordinária rebaixaram os juros pagos sobre sua dívida, e portanto sobre os empréstimos. Ao mesmo tempo, muitos estudos assinalam como, por ter uma balança comercial positiva com seus sócios europeus, a Alemanha está de fato absorvendo capitais da Europa.

Interpretar o terceiro resgate e suas condições de austeridade como uma mera operação econômica seria cometer uma erro grave. Nenhum economista acredita que a Grécia possa pagar sua dívida. Não apenas porque sempre teve uma economia frágil, com pouca indústria e com o turismo como sua principal fonte de renda. A situação é agravada por décadas de má gestão e corrupção de seus partidos tradicionais — esses mesmos partidos que os líderes europeus desejariam que recuperem o governo de Atenas.

A Grécia já está em recessão e a duplicação do IVA [imposto sobre o valor agregado, semelhante ao ICMS] vai comprimir ainda mais o consumo, ao que se somarão novas reduções nas aposentadorias e salários dos funcionários públicos, que já foram rebaixados em 20%. Geralmente, assume-se que a dívida grega logo alcançará 200% do produto interno bruto (PIB), em comparação com 170% de antes do resgate.

Como poderia qualquer economista, ou inclusive um estudante de economia, não entender que mediante a redução do consumo e o aumento de impostos se está obrigando uma economia já deprimida a deprimir-se ainda más? Não é por acaso que uma instituição conservadora como o FMI se negou a unir-se a esse plano de resgate, e anuncia que não injetará dinheiro, a menos que os credores europeus – o que é uma forma diplomática de dizer Alemanha –, aceitem uma reestruturação da dívida grega até torná-la tolerável.

Está claro que o resgate não foi uma operação técnica, mas política. Muitos líderes da UE, a começar pelo próprio Juncker, presidente da Comissão Europeia, intervieram no referendo interno grego do 5 de julho, pedindo aos gregos para votar contra o primeiro ministro esquerdista Alexis Tsipras, agora demissionário. Esses governantes europeus indicaram abertamente que a revolta contra a austeridade e a economia neoliberal deve ser castigada, para evitar o contágio político — uma campanha semelhante à que o conservador Wall Street Journalrepete nos Estados Unidos.

Por sua vez, a chanceler alemã, Angela Merkel, declarou a uma televisão de seu país ter chegado à conclusão de que “Tsipras mudou”. Esta campanha recorda a lançada pela primeira ministra britânica Margaret Thatcher (1979-1990), para destruir os sindicatos e seu famoso enunciado “Não Há Alternativa”, popularizada pela sua sigla em inglês TINA (there is no alternative)

Não haverá realmente nenhuma alternativa na Europa?

OUTRA EUROPA NÃO É POSSÍVEL



Ao desprezar plebiscito grego, União Europeia abandonou seu flerte com democracia e direitos. Esquerda pós-capitalista precisa perceber virada, para não tornar-se supérflua

Bernard Cassen – Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins

Durante quase três milênios, os maiores matemáticos – entre eles, os gregos Hipócrates e Arquimedes – tentaram resolver o problema da quadratura do círculo: a construção de um quadrado de área idêntica a um círculo dado, utilizando apenas uma régua e um compasso. Foi preciso esperar 1883 para que um professor alemão, Ferdinand von Lindemann(1852-1939), demonstrasse que isso era impossível.

A séculos de distância, no amanhecer de 13 de julho de 2015, um grego, Alexis Tsipras, e dois outros alemães, Wolfgang Schäube e Angela Merkel, encontraram-se em Bruxelas, numa encenação comparável, mas em que a lei do mais forte substituiu a demonstração científica. O primeiro ministro grego queria provar que sua recusa às políticas de “austeridade” era compatível com a presença de seu país na zona do euro. Seus interlocutores, a chanceler e o ministro das Finanças alemão sacudiram esta argumentação com uma bofetada: Atenas deveria escolher entre a “austeridade” por tempo indeterminado e a expulsão da zona do euro, o “Grexit”. Submetido a uma pressão inédita, Alexis Tsipras foi obrigado acapitular.

Esta “noite de 13 de julho”, a da demonstração da impossibilidade de fazer coincidir a superfície do quadrado das medidas progressistas e a do círculo do euro, será sem dúvidas um momento crucial da história da União Europeia. Apesar de algumas diferenças de fachada, com o presidente francês François Hollande no papel de alcoviteiro, todos os governos membros do grupo do euro enviaram uma mensagem cristalina às opiniões públicas europeias. Invertendo a palavra de ordem altermundista “Um outro mundo é possível”, eles fizeram saber que “Outra Europa é impossível”, nos parâmetros atuais.

Ao tomar por nula e não havida a vontade majoritária dos gregos, expressa nas eleições de 25 de janeiro e no referendo de 5 de julho, eles indicaram aos eleitores que seus votos têm, na melhor hipótese, um caráter apenas consultivo; e que as grandes decisões são território reservado das “instituições”, novo nome da Troika: a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI, que têm em comum o fato de não terem sido eleitos. A tal ponto que podemos nos perguntar, exceto em questões subalternas, se é de fato necessário continuar a organizar eleições no interior da zona do euro e mesmo no conjunto da União Europeia.

Em certos meios políticos muito aferrados à ideia de União Europeia – em especial os partidos Verdes –, há inquietações sobre as graves consequências políticas do desprezo demonstrado pelas “instituições” diante da Grécia, tratada como uma república de bananas qualquer. É evidente que esta Europa, em total contradição com o discurso de democracia e solidariedade construído para promovê-la, é um verdadeira espada e deve-se esperar um crescimento rápido do euroceticismo, em meio ao desemprego maciço de jovens. O muito liberal presidente do Conselho Europeu, o ex-primeiro ministro polonês Donald Tusk, chegou a afirmar que “a atmosfera política de hoje é muito similar à de 1968, na Europa. Sinto um estado de espírito talvez não revolucionário, mas de impaciência1.

Em maio de 1968, o Partido Comunistra Francês, então força hegemônica na esquerda, foi completamente surpreendido e tornou-se incapaz de traduzir em termos políticos a revolta estudantil, que se estenderia em seguida aos operários. Se não tirar rapidamente as lições da decepção de Alexis Tsipras e do preço a pagar para continuar no euro, também a esquerda radical europeia arrisca-se a constatar que a História se faz sem ela.

1 Le Monde, 14/7/2015

AS DINÂMICAS DA PAZ (5)



Rui Peralta, Luanda

A Cultura da Paz

Sendo a Paz o fim mínimo do Direito, logo é o fim comum á ordem jurídica, perseguindo esta, outros fins, como a Paz com Liberdade, a Paz com Justiça, a Paz com Bem-Estar, mas sempre tendo a Paz como condição necessária para a realização dos restantes fins. A Paz é, portanto, a razão do direito existir. No entanto, apesar do conceito de direito estar estreitamente ligado ao conceito de Paz, ele não se encontra desligado do conceito de guerra ou de violência.

Há duas situações nas quais a guerra e a violência não se apresentam como opostas ao direito. A primeira advém do facto de que para o estabelecimento da Paz é necessário, em determinados contextos e circunstancias, utilizar a força, obrigando ao respeito das regras. A guerra e a violência tornam, assim, o instrumento que restabelece o direito violado. A guerra pode ser submetida a dois juízos de valor: 1) conduzida á margem do direito; 2) conduzida para o restabelecimento do direito.  

Estes dois juízos, embora não distinguem a guerra justa da guerra injusta estão na base desta distinção e reconhecem legitimidade a três tipos de guerra: 1) a guerra de defesa; 2) a guerra para reparação de uma injustiça; 3) a guerra positiva. A segunda situação, na qual a guerra e o direito não são antitéticos, é a situação de guerra efectuada não para repor o direito estabelecido mas da guerra como instrumento para instalar um novo direito. Neste âmbito encontram-se as guerras de libertação nacional, as revoluções, revoltas, insurreições e rebeliões.

Os dois juízos de valor induzem, também três princípios gerais: 1) Não há Paz efectiva se não existir soberania popular; 2) Não há Paz se a relação dominação/submissão não for abolida nas relações sociais; 3) Não há Paz se a Politica externa de um Estado for hegemónica. Estes três princípios são o fundamento de uma sociedade conflituante mas não-beligerante, ou seja, de uma sociedade pacífica, mas não mentecapta, condição necessária para que as dinâmicas do desenvolvimento não estejam acorrentadas e possam fluir livremente pelas estruturas e superestruturas sociais.

O fenómeno da guerra tem raízes no Homem, pelo que uma sociedade assente na Cultura da Paz tem de aplicar um instrumento formador: a Educação para a Paz. Esta, por mais variada e pluriforme que seja, tem como motor o facto de não visar o Outro como inimigo e foca a sua atenção na História das Guerras e nos estudos sobre a violência nos animais e nos Homens, na Psicologia, na sociologia do conflito, na forma como as instituições jurídicas podem limitar o uso da força, no estudo do Poder hegemónico nas Relações Internacionais, no estudo dos equipamentos e instrumentos bélicos, sua evolução e aplicação, na situação actual do armamento global, evolução da geopolítica e geoestratégia, na utilização da geoeconomia, em suma, no estudo de todas as matérias que possam criar no educando uma ideia ampla forjadora de uma consciência que evolua no sentido da eliminação progressiva das causas da guerra.

No fundo a Cultura da Paz é uma cultura cidadã, cosmopolita, assente no respeito do Homem pelo Homem, do Eu pelo Outro e dos Nós pelos Outros…

(continua)

BISSAU: TAL COMO ERA EM 2011



Jorge Heitor* – O Máximo

O sentimento optimista em Maio de 2011 divulgado pelo boletim Africa Monitor decorria da ideia generalizada de que o principal objectivo da missão, promover a reforma das FA guineenses, seria "meritório". Factores considerados então numa análise feita sobre o assunto: - É do interesse geral uma estabilização política duradoura da GB (ainda considerada exposta a riscos devido ao protelamento da reforma das FA). - Considera-se que a missão angolana dispõe de condições para vir a desempenhar um papel determinante na referida estabilização. De acordo com a referida análise, o interesse com que Angola encara uma estabilização da GB, de preferência através de uma participação activa no processo, também é devido a razões de interesse próprio, entre as quais a criação de um clima propício à implementação de projectos económicos, como o porto de Buba e bauxites do Boé. Um balanço positivo da Missang é igualmente visto pelos dirigentes angolanos como um factor capaz de conferir prestígio externo ao país e gerar influências – estas sobretudo no plano regional. Uma tal cenário atenderia a antigas lógicas da política angolana; serviria para fazer esbater o revés da Costa do Marfim. O principal objectivo da missão, conforme "regras de empenhamento" respectivas, é o de garantir, nas suas diferentes fases, uma "boa execução" do plano de reforma do sector de Defesa e Segurança da GB, cuja parte mais melindrosa é a desmobilização e passagem à reforma de parte considerável do efectivo das FA. O plano, delineado por uma missão militar e policial da União Europeia, e já aprovado, nunca chegou a ser posto em marcha por razões entre as quais avultam as seguintes: - Resistências e/ou falta de colaboração dos militares, em especial chefes, comandantes e oficiais em geral, que a si próprios se consideram "alvo" do plano; reticências políticas e outras, internas, no tocante modelo de forças estipulado. -------- Portanto, no país onde foram mortos Nino Vieira, Tagme Na Wae, Ansumane Mané, Veríssimo Correia Seabra, Helder Proença, Baciro Dabó e tantos outros, durante esta última década e meia, nenhum plano de normalização da vida pública foi ainda levado à prática. Tudo continua no mesmo marasmo de 1996 ou 1997. (Reprodução de um escrito de 31 de Dezembro de 2011, para que se veja como o tempo passa e a crise continua, nas suas diferentes vertentes)

*Jornalista

Moçambique. DHLAKAMA CONDICIONA ENCONTRO COM NYUSI




O líder da Renamo, Afonso Dhlakama, condiciona a sua participação no encontro com o Chefe do Estado àquilo que chamou de cumprimento integral do Acordo de Cessão das Hostilidades Militares assinado a 5 de Setembro do ano passado entre ele e o então Presidente da República Armando Guebuza.

Segundo a Rádio Moçambique, o líder da “perdiz”  exige, igualmente,  a aplicação integral do Acordo Geral de Paz (AGP), assinado em 1992 e que pôs termo a uma guerra civil de cerca de 16 anos.

Dhlakama acusou o Governo de violar os entendimentos já existentes, referindo-se a alegadas movimentações do Exército e ataques às bases da Renamo nas províncias de Inhambane, Gaza e Tete.

“O Acordo (Geral de Paz) de Roma foi violado, o acordo de 5 de Setembro foi violado. Neste momento é a Frelimo que ataca a Renamo e a Renamo limita-se a defender-se, porque não pode ficar em sentido a levar porrada”, declarou.

Na exposição escrita que disse já ter enviado ao Presidente Nyusi, Dhlakama considerou também que o Governo moçambicano acabou unilateralmente com a missão de observadores militares, criada para fiscalizar a implementação do Acordo de Cessação de Hostilidades e o desarmamento da Renamo e que terminou o seu mandato sem resultados.

“Agora vou analisar o quê? Vou a Maputo falar o quê com Nyusi?”, prosseguiu o líder da Renamo, acrescentando que se deslocar à capital moçambicana para discutir estes assuntos não faz nenhum sentido.

A Renamo anunciou na sexta-feira a suspensão da sua participação no diálogo político com o Governo, que acontece no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano, alegando falta de seriedade do Executivo, mas na quinta-feira Dhlakama admitiu rever a sua posição, caso sejam aplicados os acordos de paz já existentes.

Até lá, frisou, “a Renamo não tem interesses em que o Dhlakama vá a Maputo apertar a mão a Nyusi”, porque “isto é para enganar a comunidade internacional, sobretudo os investidores em Moçambique, para dar a entender que Nyusi e Dhlakama são amigos, que não há problemas”.

Refira-se que o Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, endereçou, segunda-feira, ao líder da Renamo um convite para um encontro para uma reflexão sobre a paz no país, tendo como epicentro a implementação do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares.
Dhlakama tinha devolvido, no mesmo dia, o referido convite, alegando falta de uma agenda concreta.

Em resposta, Nyusi reformulou o convite e elencou como temas a análise do Acordo de Cessação de Hostilidades Militares, a avaliação do decurso do diálogo de longo prazo entre as duas partes em Maputo e ainda temas diversos, “podendo e querendo a Renamo agendar ou listar outros assuntos”.

Notícias (mz)

Moçambique. BANCO NÃO TINHA COMO DETETAR DUPLICAÇÃO DE SALÁRIOS DE FUNCIONÁRIOS




Desvio de fundos na Educação

“O sistema bancário não é seguro”, alegou, perante o tribunal, o chefe do Departamento de Administração e Finanças, Abílio Mate, no primeiro dia de julgamento. Tão inseguro que o auto-intitulado “bom gestor”, responsável pela assinatura das folhas de salário e o seu subordinado José Sende, agora em lugar desconhecido, projectaram um esquema que, de 2008 a 2012, lesou o Estado em mais de 33 milhões de meticais. Trata-se, afinal, de uma situação confirmada pelos colaboradores do banco Millennium bim, ouvidos ontem pelo tribunal na qualidade de declarantes.

Após assinatura do contrato de prestação de serviços nessa área, o banco montou um aplicativo através da qual era elaborada a folha de salário no ministério e que terminado o processo e transferido, em forma electrónica, para um dispositivo o documento não poderia mais ser alterado, nem pelos funcionários do banco.

António Tiua - O País (mz) 

Leia mais na edição impressa do «Jornal O País»

Moçambique. Comité de Defesa de Jornalistas classifica de "vergonhoso" assassinato de Paulo Machava




Organização de defesa dos jornalistas pede investigação eficiente

Voz da América

O Comité de Protecção de Jornalistas(CPJ) condenou o assassinato esta sexta-feira, 28, do jornalista moçambicano Paulo Machava em pleno coração de Maputo.

"Estamos consternados com o vergonhoso assassinato de Paulo Machava e apelamos às autoridades a investigarem o crime de forma eficiente, identificar o motivo e processar os assassinos", disse Sue Valenine, coordenadora do deoartamento de África da organização de defesa da liberdade de imprensa e dos jornalistas.

Valentine considera que "o assassinato de Machava não pode ter lugar num país que se esforça para construir uma democracia duas décadas depois do fim de um conflito civil"

O CPJ lembra ter documentado, desde 1992,  o assassinato de apenas um jornalista em Moçambique relacionado com a sua actividade profissional.

Em Novembro de 2000, Carlos Cardoso, editor do boletim diário Metical, foi assassinado a tiros em Maputo após ter publicado uma investigação sobre uma suposta corrupção num importante banco moçambicano.

Em 2003, seis homens foram condenados pelo assassinato.

"O filho do ex-presidente Joaquim Chissano foi acusado como autor intelectual, mas morreu antes do julgamento", lembra o Comité de Protecção de Jornalista com sede em Nova Iorque.

Paulo Machava, foi assassinado a tiro, na manhã desta sexta-feira, na cidade de Maputo.

Os  seus familiares confirmaram à imprensa local que Machava foi baleado mortalmente na avenida Agostinho Neto, centro da cidade, quando fazia os seus habituais exercícios físicos.

Testemunhas disseram que os assassinos  faziam-se transportar numa viatura branca, de onde dispararam cinco tiros contra o jornalista, antes de fugir.

A polícia investiga o caso e já anunciou não possuir pistas.

Na foto: Paulo Machava, jornalista moçambicano

Nota PG

Vários são os assassinatos de índole político-social que vitima jornalistas em Moçambique. Curiosamente, ou tristemente, a tónica é quase sempre a mesma: “a polícia anunciou não possuir pistas”. Muito mais haveria a citar de memória mas nem será preciso porque os moçambicanos sabem muito bem que urge acabar de vez com a mortandade de jornalistas e outros que visam no seu trabalho, no seu ativismo, construir um Moçambique melhor mostrando a podridão de um regime que teima em assobiar para o lado perante repressões e assassinatos (porque a “máquina” assim ordena?) de filhos dignos da nação, que se dedicam a contribuir para a democracia, para a transparência, para a liberdade que merecidamente deve ser pertença de todos os povos. Terminamos com uma memória, entre tantas: “Gilles Cistac não resistiu aos ferimentos provocados por vários tiros. “Qualquer um pode ser abatido pelas suas opiniões”, disse o presidente do Conselho dos Direitos Humanos.” – jornal Público 03.03.2015. Já foram descobertos os seus assassinos? É sempre a mesma coisa!

Angola. AS MÃES



Ana Paula Tavares – Rede Angola, opinião

Pelos teus olhos, minha Mãe
Vejo oceanos de dor
Claridades de sol-posto, paisagens
Roxas paisagens
Dramas de Cam e Jafé…
Mas vejo (Oh! se vejo!…)
mas vejo também que a luz roubada aos teus
[olhos, ora esplende
demoniacamente tentadora – como a Certeza…
cintilantemente firme – como a Esperança…
em nós outros, teus filhos,
gerando, formando, anunciando –
o dia da humanidade
O DIA DA HUMANIDADE!…

Viriato da Cruz

Sete noites e todos os dias dobram as pontas da vida e caminham até ao fim das terras, no vale de sombras, no leito seco dos rios, na dobra mais escura da duna, porque sabem que é dos filhos o campo a preparar e para eles o lavram até ao último grão. O vento desorienta-lhes os propósitos mas não as engana: dobram o lenço com mais força e caminham no sentido das fontes, pelos caminhos de pé posto e pelo mato. Não se deixam confundir com as palavras mãe áfrica, mãe terra, mãe suprema, elo e garante da linhagem, mãe do povo, silêncio, sacrifício e serviço. Passaram aos filhos o futuro e não gostam que não seja de luz e esperança essa utopia nova que anda a tentar nascer.

Se têm medo é um medo antigo absoluto que com elas caminha e atravessou mares só para descobrir o barulho de todas as fontes no sítio onde mergulham os rios. Sabem que o medo é como o fogo que é preciso manter aceso e permanente debaixo da panela onde cresce a comida e soprar para que os gritos se ouçam na aldeia vizinha, no outro lado da paliçada, para lá do muro agora e para sempre no eco de si próprio, na repetição de si mesmo: aiué mamaué… E mal lhes sobra tempo para cortar as “flores do mal”, mas querem tomar a palavra de uma vez por todas para falar de tudo o que fizemos com os jardins antigos e daquilo que veem mesmo à luz velada do cacimbo ou das noites de promessas por cumprir.

Elas estão atentas e perguntam em voz alta por onde andam os filhos. Estendem as vozes pelas ruas da cidade para dizer que tão boa terra só pode ser de todos: os que estão e aqueles que hão-de chegar. Saem de suas casas para inscrever o rosto na luz do dia e na história de uma terra onde as vozes das mães sempre suportaram os filhos: quando partiam no ventre escuro dos navios, quando se dobravam à chibata do capataz ou se perdiam nas malhas do contrato. Querem que seja permitido o som de todas as vozes porque a construção da nação se faz, como no jogo das pedras, com segredos diferentes que podem ser juntos na palavra e no diálogo. Dá que pensar que podiam estar escondidas nos panos da tradição, mas preferem dar a cara com todas as escarificações e os outros sinais que as ligam aos grupos, às falas e à esperança de um chão amaciado para toda a humanidade. Ouvem falar dos sítios da guerra e de milhares de pessoas em trânsito em busca de abrigo e temem. Onde começará o esquecimento, perguntam-se, e não conseguem resposta no dia nublado e têm medo de que a vida se rasgue de novo para revelar nomes e nomes de desaparecidos, gente perdida, filhos sem mães e mães sem filhos.

Escutem, o chão é agora um chão que pode apaziguar-se e abrir girassóis de dia e de noite. As flores do imbondeiro podem tornar-se mais lentas e ficar entontecidas de alegria e perfume para que toda a gente as veja e aproveite a cor e a encantação. São assim as mães, com os seus rostos cobertos de sombras e os pés cansados de longas caminhadas em busca da água, comida e serviço. Carregam os filhos às costas toda a vida porque nenhuma delas está disposta a terminar os trabalhos de mãe e deixar as coisas por falar. Deixem assim / então que elas passem e digam da sua dor em várias línguas.

Angola. “PARTIDARIZAÇÃO DO ESTADO É O CANCRO DO NOSSO REGIME”




No dia em que promoveu e participou numa manifestação de buzinão e panelaço, em Luanda, dia também em que o Presidente da República de Angola, José Eduardo dos Santos, comemorava 73 anos, William Tonet, jornalista, jurista e activista dos direitos humanos, defendeu no Angola Fala Só que em Angola a liberdade de imprensa é uma falácia e que o Presidente fez falso juramento, pelo que devia ser indiciado por esse crime.

William Tonet respondia assim às questões do ouvintes do Angola Fala Só, acrescentando que o direito à manifestação e à reunião é um direito consagrado na Constituição da República, o qual a polícia “tem estado a violar de forma sistemática”.

O jornalista e director do jornal Folha 8 lembrou ainda que os manifestantes podem recorrer a “um instituto da Constituição que lhes permite resistir às autoridades, quando estas tentam impedi-los de se manifestar”, citando os artigos 1677 e 366 do Código Civil.
De acordo com Tonet, José Eduardo dos Santos também está a violar a Constituição, “quando prometeu cumprir e governar segundo a mesma, jurando-o na sua tomada de posse, e não está a fazê-lo”, explica o jurista defendendo que se trata assim de um “juramento falso, passível de ser indiciado como crime, com pena de 20 anos de suspensão de qualquer actividade política”.

“O nosso Presidente já não poderia governar”, ressalva.

MPLA tem medo da democracia

Questionado sobre liberdade de imprensa e a possibilidade da criação de uma associação da imprensa independente, afirma que a liberdade de imprensa “é uma falácia” e que de todos os órgãos de comunicação social privados, apenas estão fora do controlo do Estado o Folha 8 e o Crime. “Deixámos de ter uma imprensa independente entendida como tal. Todos os outros foram comprados pelo Estado. Estamos (Folha 8 e Crime) a resistir contra a supressão”, remata.

Para William Tonet, o controlo do Estado sobre a comunicação social “só acontece porque o MLPA não é um partido forte, é um partido cobarde, cuja a direcção actual é ainda mais cobarde, com medo da democracia”, acrescentando que se “a polícia fosse apartidária” as coisas podiam ter melhores contornos.

Ainda sobre a comunicação social e o seu papel, considera que os órgãos de comunicação social públicos são “partidocratas, que dividem os angolanos e não respeitam os ditames da profissão”, e que comunicação social privada “está a tentar que não se regrida ao tempo do monopartidarismo”.

“O que se tem vindo a fazer é um colonialismo político que vem sufocando de várias formas os angolanos”, disse.

Balanço da presidência de José Eduardo Santos

Num balanço da presidência de José Eduardo dos Santos, a propósito da data do seu aniversário, 28 de Agosto, Tonet considera ser uma “presidência triste”.

“O ano de 2002 vaticinou que o Presidente fosse ter uma postura distinta, capaz de visualizar Angola e os angolanos, ser Presidente de todos os angolanos e não apenas dos angolanos do MPLA. Mas [José Eduardo dos Santos] passou ao lado de ser uma referência política em Angola, que aprovou uma constituição que o favorece e está a exercer ilegitimamente”, justifica.

“Não temos um Presidente que pense em nome de todos os angolanos, isso inviabiliza que as leis possam ser devidamente aplicadas”, adianta.

Sobre novas obras e infra-estruturas levadas a cabo pelo Governo, o jornalista respondeu a um dos ouvintes que “o governo está ao serviço do povo, pelo que as escolas, hospitais, entre outros, não são um favor”.

“Não temos que agradecer o que o governo faz por nós. Temos que perguntar porquê só agora”, exclamou.

No que toca à justiça para todos, uma questão colocada pelo ouvinte Óscar Fernando, o jurista acredita que a lei que diz que “todos os cidadãos são iguais perante a lei é uma falácia” e que José Marcos Mavungo é um exemplo disso: “Está a ser julgado por pensar pela sua própria cabeça”.

Para Tonet, Cabinda é tratada como uma região “colonizada”: “É a única província onde é proibida a criação de associação de direitos humanos. Todas as outras têm, de uma maneira ou de outra, mas Cabinda não. Não há provas contra Mavungo”.

“Temos que lutar com inteligência, mas o governo está a levar-nos à saturação”

Também questionado sobre a crise económica em Angola, o jornalista que hoje promoveu uma manifestação pelos direitos dos angolanos, defende que a origem da mesma reside no facto das pessoas terem “usado e abusado dos dinheiros públicos para os seus projectos privados”, sendo possível vencer a crise se “os angolanos lutarem de facto com todas as suas armas e inteligência para contornar essa situação”, ressalvando que optar pela “confrontação militar” não deverá ser a melhor opção porque “o governo está preparado para isso”, contudo “está a levar-se o país a uma saturação”.

Sobre a prisão dos “15 + 1″, William Tonet chama-lhe “a maior besteira, maior baboseira daquilo que pode ser considerado a interpretação da lei, que nem mesmo um estudante de um ano consegue dar latitude à prisão dos activistas. Nunca a imagem de Angola esteve tão má”.

Tonet acusa ainda as igrejas de terem trocado a “sua acção cristã pela acção de dolarização, omissa quanto à situação dos angolanos” rematando que “a partidarização dos órgãos do Estado é o cancro do nosso regime, que só actua assim porque não confia nas suas capacidades, não é forte”.

Folha 8 - Fonte Voz da América

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