Manuel Carvalho da Silva* |
Jornal de Notícias | opinião
O trabalho suplementar vem sendo
injustamente pago. O último caderno do Observatório sobre Crises e
Alternativas analisa os sucessivos dispositivos legais que, desde a
segunda metade do século XX e, de forma mais contundente, desde a primeira
década do século XXI, procuraram flexibilizar a noção de tempo normal de
trabalho. Entre esses dispositivos estão a criação de regimes de adaptabilidade
e de banco de horas que, por força de várias alterações, se tornaram quase
obrigatórios.
O caderno debruça-se, em
particular, sobre a evolução do trabalho suplementar e do seu custo relativo. O
número de trabalhadores a realizar trabalho suplementar subiu desde 2013,
coincidindo com a retoma económica e com a aplicação da Lei 23/2012, que
alterou o Código de Trabalho, para acolher as propostas da troika e do Governo
PSD/CDS. O objetivo das alterações ao Código era, segundo os seus autores,
conceder mais meios às empresas, "agilizando a produção e o funcionamento
dos serviços", para aumentar a competitividade. Acrescentavam que tais
medidas contribuiriam para impedir o recurso sistemático ao trabalho
suplementar. Entre essas alterações estão o corte para metade das majorações
por trabalho suplementar - de 50 para 25% na primeira hora e de 75 para 37,5%
nas horas seguintes - e a eliminação do descanso compensatório.
A entrada em vigor dessa lei
incentivou muito o trabalho suplementar: ao colocar o valor da retribuição da
primeira hora abaixo do valor da hora de trabalho em horário normal de trabalho
(menos 2%); e ao pagar as duas horas seguintes apenas 8% acima do valor da
hora, em horário normal de trabalho. Isso aconteceu por duas razões
fundamentais.
Primeira, desde 1976, vigora uma
fórmula de cálculo do valor da retribuição horária em horário normal de
trabalho (tido como referência para pagar o trabalho suplementar) que não
considera a retribuição dos subsídios de Natal e de férias, ao mesmo tempo que
considera o período de férias e feriados como tempo de trabalho. Essa fórmula
reduz, à partida, a retribuição horária do trabalho suplementar em 27,3%. Mesmo
assim, o valor que os patrões tinham de pagar ainda era dissuasivo.
Segunda, porém, a Lei 23/2012,
cortou para metade as majorações por trabalho suplementar, tornando o valor da
hora de trabalho, em trabalho suplementar, muito próximo dos valores em horário
normal de trabalho.
Vale a pena analisar aquele
estudo. Os autores, partindo dos dados oficiais do INE, estimam que o valor
total de horas extra efetivadas no país entre 1 de janeiro de 2011 e 31 de
dezembro de 2018, corresponde a cerca de 12 mil milhões de euros, aplicando-se
os critérios em vigor que os patrões racionalmente adotaram. Sem aqueles cortes
nas majorações e se tivesse sido corrigida a formula de cálculo, os
trabalhadores deviam ter recebido 17,6 mil milhões de euros. Ou seja, os
trabalhadores "ofereceram" aos acionistas das empresas - naquele
período de nove anos - 5,6 mil milhões de euros, e perderam o descanso
compensatório que se transformou em tempo de produção. Assim se cavam
injustiças e se impede a criação de muitos milhares de empregos.
O Governo deve ter coerência
entre os seus discursos e práticas. É tempo de fazer as correções que se
impõem.
*Investigador e professor universitário
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