Fernanda Câncio | TSF | opinião
Não há raças humanas. É um facto.
Distinguir as pessoas com base naquilo a que chamaremos "pertença
étnico-racial" é errado.
Aliás, a Constituição portuguesa
proíbe-o. E proíbe-o como? Diz assim: "Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça..." Sim, ouviram bem: em razão
de raça.
Sendo a noção de raça, quando
aplicada a pessoas, discriminatória, porque é que a lei fundamental a usa?
Podia ser porque em 1976, quando foi redigida, ainda não se pensava muito
nestas coisas da linguagem, mas houve ene revisões desde então e ninguém mexeu.
E ninguém mexeu por um motivo simples: não há raças mas há racismo. E como
combater o racismo sem usar essa palavra, raça?
Sim, é uma armadilha. Mas é nesta
armadilha que vivemos. Aquela em que para combater a discriminação temos de
usar palavras que a transportam. Em que como em todas as lutas contra a
discriminação os grupos discriminados têm de se assumir como grupo - sabendo
que foi a discriminação que os criou como tal.
Estou a falar da célebre pergunta
sobre origem étnico-racial que era suposto entrar no Censos 2021 e que o
Instituto Nacional de Estatística anunciou ter "chumbado". A questão
é complexa, sem dúvida, e percebo que haja quem ache a pergunta má ideia. É o
caso do sociólogo Rui Pena Pires, que, numa Europa assolada pelo regresso da
extrema-direita, teme a legitimação da categorização racial. O INE usa esse
argumento, que é de peso. Mas acrescenta-lhe outros.
A saber: que era preciso preparar
isto desde 2015; que a pergunta ser facultativa gera incerteza sobre os
resultados; que o tipo de informação recolhida não permitiria aferir da
discriminação, porque não cruza com rendimentos, pelo que o melhor é fazer um
inquérito específico.
Isto não são razões, são
desculpas. O INE não pode acrescentar uma pergunta ao Censos mas pode preparar
- e pagar - um inquérito específico sobre discriminação racial no mesmo ano? É
um problema esta pergunta ser facultativa mas a da pertença religiosa, que
existe há muito, já não? E quem é que disse que a pergunta em si serviria para
"aferir da discriminação"?
A pergunta tem um objectivo
preciso: saber quantos residentes em Portugal afirmam a sua pertença a
determinados grupos. Como frisa a ONU no programa de acção da Década dos
Afrodescendentes, de 2015 a
2024, o conhecimento estatístico é um dos passos para combater a discriminação.
Porque ao dizer-nos quantos portugueses se assumem como negros, ciganos,
asiáticos, implica reconhecer a sua existência, visibilizá-los. E a partir daí aferir
a dimensão da sua exclusão na escola, na representação, nas profissões de
prestígio - e desenhar políticas de integração.
Disse Marcelo, reagindo ao
anúncio do INE, que a intenção da pergunta era boa, mas que como se gerou um
debate foi melhor esvaziá-lo. Não sei a que debate se refere o Presidente, mas
suponho que seja àquele que em 45 anos de democracia nunca houve: o do nosso
racismo. Porque, claro, se não há raças como podemos nós ser racistas?
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