quarta-feira, 19 de junho de 2019

Portugal | O paradoxo do racismo


Fernanda Câncio | TSF | opinião

Não há raças humanas. É um facto. Distinguir as pessoas com base naquilo a que chamaremos "pertença étnico-racial" é errado.

Aliás, a Constituição portuguesa proíbe-o. E proíbe-o como? Diz assim: "Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça..." Sim, ouviram bem: em razão de raça.

Sendo a noção de raça, quando aplicada a pessoas, discriminatória, porque é que a lei fundamental a usa? Podia ser porque em 1976, quando foi redigida, ainda não se pensava muito nestas coisas da linguagem, mas houve ene revisões desde então e ninguém mexeu. E ninguém mexeu por um motivo simples: não há raças mas há racismo. E como combater o racismo sem usar essa palavra, raça?

Sim, é uma armadilha. Mas é nesta armadilha que vivemos. Aquela em que para combater a discriminação temos de usar palavras que a transportam. Em que como em todas as lutas contra a discriminação os grupos discriminados têm de se assumir como grupo - sabendo que foi a discriminação que os criou como tal.


Estou a falar da célebre pergunta sobre origem étnico-racial que era suposto entrar no Censos 2021 e que o Instituto Nacional de Estatística anunciou ter "chumbado". A questão é complexa, sem dúvida, e percebo que haja quem ache a pergunta má ideia. É o caso do sociólogo Rui Pena Pires, que, numa Europa assolada pelo regresso da extrema-direita, teme a legitimação da categorização racial. O INE usa esse argumento, que é de peso. Mas acrescenta-lhe outros.

A saber: que era preciso preparar isto desde 2015; que a pergunta ser facultativa gera incerteza sobre os resultados; que o tipo de informação recolhida não permitiria aferir da discriminação, porque não cruza com rendimentos, pelo que o melhor é fazer um inquérito específico.

Isto não são razões, são desculpas. O INE não pode acrescentar uma pergunta ao Censos mas pode preparar - e pagar - um inquérito específico sobre discriminação racial no mesmo ano? É um problema esta pergunta ser facultativa mas a da pertença religiosa, que existe há muito, já não? E quem é que disse que a pergunta em si serviria para "aferir da discriminação"?

A pergunta tem um objectivo preciso: saber quantos residentes em Portugal afirmam a sua pertença a determinados grupos. Como frisa a ONU no programa de acção da Década dos Afrodescendentes, de 2015 a 2024, o conhecimento estatístico é um dos passos para combater a discriminação. Porque ao dizer-nos quantos portugueses se assumem como negros, ciganos, asiáticos, implica reconhecer a sua existência, visibilizá-los. E a partir daí aferir a dimensão da sua exclusão na escola, na representação, nas profissões de prestígio - e desenhar políticas de integração.

Disse Marcelo, reagindo ao anúncio do INE, que a intenção da pergunta era boa, mas que como se gerou um debate foi melhor esvaziá-lo. Não sei a que debate se refere o Presidente, mas suponho que seja àquele que em 45 anos de democracia nunca houve: o do nosso racismo. Porque, claro, se não há raças como podemos nós ser racistas?

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