A ideologia dominante vai
encontrando formas de perpetuar a exploração através do discurso. E é sobretudo
aos jovens que tenta vender como «modernas» as «velhas» condições de
precariedade a que muitos estão sujeitos.
A precariedade laboral tem
consequências directas sobre aqueles que a sofrem. Nos últimos anos,
pudemos ver como os meios de comunicação dominante normalizaram e tentaram
classificar como «modernas» ou «ecológicas» – e até «anti-sistema» e «anti-consumismo»
– as condições em que os trabalhadores com vínculos precários vivem.
O que se pretende é justificar,
com uma suposta «modernidade», os retrocessos a que temos assistido, o
generalizar da precariedade e os baixos salários. De acordo com essa «lógica»,
não seria este modelo económico nem os grandes grupos que o
dominam os responsáveis pelas precárias condições de trabalho dos
jovens. Estas novas gerações não teriam as mesmas necessidades, seriam
«flexíveis», «aventureiras», «ambientalistas» e não fariam questão de
adquirir casa própria ou um carro. Não seria este mundo do trabalho o
obstáculo à emancipação dos jovens e a que estes construíssem a sua própria
vida, mas seriam eles a não estar para aí virados.
O AbrilAbril aborda
brevemente algumas das «tendências» apresentadas em diversos órgãos de
comunicação para normalizar a pobreza e a precariedade.
1) «Truques» para aquecer a casa
no Inverno sem ligar o aquecedor
Quem nunca encontrou artigos que
desvendam os «truques» para poupar? Na revista Sábado encontramos um
desses textos, que sugere a utilização de mais cobertores («Manta, a nossa
melhor amiga») ou até ter uma bicicleta estática em casa e «praticar desporto»
para se aquecer.
Fugindo à questão essencial de
identificar como inaceitável que uma pessoa seja obrigada a passar frio no
Inverno por não ter dinheiro para ligar o aquecedor, tenta-se assim
desvalorizar a pobreza energética que, em tantos casos, está na origem de
doenças respiratórias e cardiovasculares.
Portugal tem uma das
electricidades mais caras da União Europeia e o aquecimento doméstico está
muito dependente da electricidade. Assim, 70% das famílias em situação de
pobreza não conseguem manter níveis de conforto razoáveis durante o Inverno. Já
para não falar do custo das soluções de aquecimento mais ecológicas, como
os painéis solares.
2) O «freeganismo»: a moda de
comer do lixo
Encontrámos também vários artigos
sobre uma nova «dieta»: o «freeganismo». Mais uma vez, apelar à consciência
«ecológica» dos jovens que não suportam o desperdício é o ponto de partida.
Como lidar com o facto de as grandes cadeias de supermercados deitarem fora
toneladas de comida quando há milhões de pessoas a passar fome no mundo? Deve a
juventude reflectir sobre o modelo económico que é responsável por essas
contradições? Não. A solução é passar a ir buscar comida aos caixotes do lixo.
Num artigo publicado na Vice
Australia, e traduzido para português, podemos encontrar um resumo da narrativa
que apresentam os defensores deste movimento: «[...] podes desperdiçar a tua
vida a trabalhar para teres dinheiro para comprares coisas de que não precisas
e, assim, ajudares a destruir o meio ambiente. Ou então, podes viver uma vida
satisfatória a revirares lixo ocasionalmente para conseguires comida e outras
coisas de que precisas para viveres contente... e a causares menos impacto na
Terra.»
Mais uma vez, a pobreza é
romantizada. Comer do lixo não é o limite da marginalização a que são levadas
muitas pessoas; é, sim, uma prática «ecológica» e «anti-consumista».
A responsabilidade pelo «impacto
causado à Terra» é, nesta visão, estritamente individual. Visão partilhada
pelos que pensam que a solução passa por comprar produtos biológicos ou
«consumir local», quando na verdade os preços praticados afastam todos os que
têm baixos rendimentos. Estes últimos devem ser responsabilizados pela sua
«pegada ecológica», mas escapam ilesas as grandes indústrias que mais
poluem.
3) «Partilhar» salário e trabalho
Têm vindo a público várias
situações de partilha de perfis em plataformas como a Uber, a Ubereats, a
Glovo, entre outras. Estes trabalhadores, sem quaisquer direitos ou vínculo às
empresas para as quais trabalham, vivem em situações de extrema precariedade.
A «partilha» do trabalho é feita
através da utilização da mesma conta, ou seja, um trabalhador tem a sua
situação regularizada com a empresa mas «subcontrata» outros para fazer mais
horas com o mesmo perfil. O salário é partilhado, contudo, por ter mais horas
de trabalho, a conta sobe nas avaliações.
Muitos destes trabalhadores têm
horários que vão desde as 9h da manhã à madrugada do dia seguinte, sem um
período mínimo de descanso diário legal. Além disso, não têm
protecção contra acidentes de trabalho, de assistência na doença, subsídio
de férias e subsídio de Natal.
Mas a narrativa é outra: a
«uberização» da economia é um fenómeno que permite que trabalhadores que não
queiram ou não possam trabalhar a tempo inteiro consigam «fazer umas
horas» e manter a «flexibilidade» com outras ocupações.
4) O «nesting»: não sair de casa
durante o fim-de-semana
Outra tendência muito «moderna» é
o chamado «nesting» (aninhamento), que consiste basicamente em não sair de casa
durante todo o fim-de-semana. Não ter salário suficiente para fazer actividades
fora de casa e gozar do tempo de lazer é vendido como uma prática de combate à
ansiedade.
Num artigo do Observador o
título e o lead são esclarecedores: «‘Nesting’: não às infinitas
actividades, sim ao tempo de qualidade em casa. Cancelar os compromissos de
fim-de-semana, não ter horários e estar sem fazer nada, ou muito pouco, em
casa, é o que o 'nesting' defende. Reunimos oito dicas para tornar o seu
'ninho' mais confortável.»
A estratégia não podia ser mais
clara: não tens dinheiro, aceitas o facto de seres obrigado a ficar em casa
como um hábito positivo, ficas mais isolado e tenderás a concordar com o
individualismo vigente.
5) O «co-living»: um salário não
chega para alugar uma casa
Outra consequência da
precarização é a dificuldade em alcançar a independência. Ter acesso à
habitação, individualmente ou com família, torna-se cada vez mais
difícil devido aos elevados preços do mercado e à especulação imobiliária.
Foi por isso que o conceito de «co-living» foi inventado e que,
parecendo muito moderno, é simplesmente o resultado de não se poder arrendar um
apartamento.
Num artigo do Diário de
Notícias intitulado «Co-living: quando partilhar uma casa com estranhos
passa a fazer todo o sentido», diz uma consultora imobiliária que «o nosso país
tem um grande potencial para promover esta tendência», uma vez que se trata de
«um mercado muito citadino e cosmopolita, direccionado para quem procura um
segundo tecto depois da universidade, profissionais deslocados ou independentes
e empreendedores, até aos 40 anos aproximadamente».
Também a página do Montepio aponta
para esta «nova tendência»: «O entusiasmo à volta
do co-living, um dos conceitos habitacionais em crescimento nas
grandes cidades mundiais, é partilhado por milhares de jovens, trabalhadores
expatriados, investigadores ou apenas profissionais em início de carreira e
que procuram um espaço onde possam viver sem custos
elevados e obrigações
contratuais. A maioria destas empresas disponibiliza quartos com várias
camas ou beliches, cozinhas equipadas e internet de alta velocidade, garantem
um espaço mobilado e bem decorado, onde o design é
levado ao pormenor.»
De novo, isto também não tem
nada. Várias famílias a partilhar a mesma casa ou trabalhadores deslocados a
viver em residenciais faz parte do passado e só pode ser considerado um
retrocesso.
6) Modelos da Gucci com mochilas
da Glovo às costas
Em Março deste ano, a revista
espanhola Glamour lançou uma campanha de moda em que modelos usaram
roupas da Prada e da Gucci (marcas de luxo) com as mochilas da Glovo às costas.
A polémica foi grande, num país
onde têm ocorrido vários conflitos relativos à exploração vivida pelos
trabalhadores desta empresa, e muitos foram os que se revoltaram, nomeadamente
nas redes sociais, contra esta tentativa de legitimação da precariedade.
Apesar da responsabilidade da
campanha ser da revista, a Glovo decidiu dar a conhecer a sua opinião sobre o
caso: «As mochilas da Glovo tornaram-se parte do dia-a-dia das nossas cidades.
A Glovo não é apenas uma marca, mas uma nova forma de consumo já utilizada por
mais de 2,5 milhões de utilizadores.»
Ou seja, uma mochila da Glovo já
faz parte do nosso quotidiano, não há que o questionar. É uma boa metáfora para
a perpetuação deste modelo económico – o capitalismo é naturalizado,
está presente e é aceite, como aceitamos uma árvore que sempre esteve ali.
7) A moda da marmita: a tendência
dos tempos da austeridade
Foi com a chegada da troika a
Portugal e das medidas de austeridade, tomadas primeiro pelo governo do PS de
Sócrates e depois pelo governo de coligação do PSD e do CDS-PP, que se
generalizou a «moda da marmita». Daí a necessidade de transformar um evidente
sinal de dificuldades económicas em «tendência».
Um em cada cinco portugueses
ficou em risco de pobreza. Desses, e segundo o Instituto Nacional de
Estatística, quando o programa da troika terminou, em 2015, 25,7% viviam
em situação de privação material e 10,6% em privação material severa.
Em 2012, o Público divulgava
este conteúdo: «A moda da marmita veio para ficar, com ou sem glamour.
Levar uma marmita já é tendência. Seja para a faculdade ou para o trabalho, com
mais ou menos glamour, são muitos os que optam por levar comida feita em
casa. Vantagens não faltam.»
«Novos modos de consumo» ou
pobreza encapotada?
A idealização e normalização da
pobreza e da precariedade são armas muito perigosas, pela subtileza com que se
apresentam. O que se pretende aqui é de um profundo alcance. Os grandes grupos
económicos e os meios de comunicação social dominantes procuram passar a
mensagem de que os trabalhadores de hoje, maioritariamente os jovens, querem a
forma de vida que o sistema lhes está a impor. A precariedade não seria um
flagelo mas uma nova forma de estar na vida, uma «opção», que, de forma
individual, resolveria todas as «doenças» da nossa sociedade, do consumismo
desenfreado aos perigos ambientais.
Mas ter que comer do lixo não é
uma «dieta» e não poder sair de casa durante o fim-de-semana não é uma opção
para «reduzir o consumismo». São problemas reais que os trabalhadores sofrem
diariamente e uma consequência do sistema capitalista.
O mal não está, evidentemente, em
repensar os nossos hábitos de consumo, em questioná-los e até
em alterá-los para contribuir para a sustentabilidade do mundo em que
vivemos. O mal está em considerar que poderemos alterar o caminho
destrutivo que seguimos com «novos modos de consumo» sem pôr em causa o
capitalismo.
AbrilAbril
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