Não haja ilusões, nem equívocos:
aos braços abertos, estendidos aos refugiados pela boa vontade isolada de
alguns grupos de pessoas, a União Europeia contrapõe uma política de braços bem
fechados.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Os pouco mais de cem refugiados
que penavam à deriva no Mediterrâneo a bordo do barco Open Arms desembarcaram,
finalmente, em Lampedusa, Itália. Cem refugiados, cem vidas salvas à condição,
mas uma parcela ínfima de um drama que persiste mesmo quando a comunicação
social domesticada não dá por ele. A embarcação, porém, foi apresada: parece
que salvar vidas é crime.
Os náufragos desembarcaram por
ordem de um tribunal italiano porque, ao menos uma vez, a justiça conseguiu
sobrepor-se a uma política sinistra que não é apenas de Itália – ao contrário
do que pretende fazer-se crer – mas de toda a União Europeia. A realidade é
esta, não haja ilusões nem equívocos: aos braços abertos, estendidos aos
refugiados pela boa vontade isolada de alguns grupos de pessoas, a União
Europeia contrapõe uma política de braços bem fechados. Como tenazes.
É verdade que, na iminência do
desembarque, o governo espanhol mandou um navio de guerra para recolher os
náufragos. Porque se tratava de uma «emergência humanitária», disse. Explicação
estranha depois de o mesmo governo não ter permitido ao próprio Open Arms recolher-se
a um porto espanhol, durante as mais de duas semanas em que andou à deriva1.
Não são «migrantes» ou
«imigrantes», como tantas vezes se lhes chama. São seres humanos que procuram
sobreviver fugindo da fome, de guerras, do caos climático, de perseguições
étnicas, políticas e religiosas.
São refugiados.
Bruxelas não sabe agora o que
fazer com as cem pessoas que chegaram a Lampedusa, um número que representa a
sétima parte dos deputados do Parlamento Europeu numa União com 600 milhões de
pessoas. Convenhamos que é uma tarefa difícil: acolher uma centena de vivos
depois de se contarem por muitos milhares os que já morreram afogados por
buscarem o mesmo destino.
A questão fundamental da situação
não tem a ver com as chamadas «políticas de imigração» deste ou daquele governo
da União Europeia; não nasceu por geração espontânea depois da entronização de
executivos que já se assumem abertamente como xenófobos, depois de outros lhes
franquearem o caminho praticando, de forma encapotada, essa mesma política.
Outra vantagem que têm os barcos errando pelo Mediterrâneo recolhendo náufragos
– além de salvar vidas – é a de exporem, para quem quiser ver, o vergonhoso e
desumano jogo do empurra a que se dedicam todos os governos dos países da União
Europeia, tenham costas marítimas na zona de crise ou não, sejam socialistas ou
sociais-democratas, direitistas, nacionalistas ou mesmo fascistas.
Se dúvidas houvesse em relação ao
desprezo pelos direitos humanos em que assentam as políticas europeias, a
atitude da União perante os refugiados deixa tudo bem espelhado.
Um pouco de história
Fazer do mussoliniano Salvini o
mau da fita é um descarado exercício de procura do velhíssimo bode expiatório,
como se apenas as suas atitudes viessem instaurar uma crise que afinal se
arrasta há muitos anos e se agravou desde que potências da União Europeia e da
NATO, sob o comando de sucessivos presidentes dos Estados Unidos, democratas ou
republicanos, decidiram multiplicar guerras «libertadoras» em África e no Médio
Oriente.
Não é altura de remontar aos
efeitos das pestes colonial e neocolonial sobre as populações à escala
planetária e reflectidos em milhões de refugiados à deriva ou internados em
eternos campos «transitórios».
Concentremo-nos nos que procuram
a Europa como consequência da degradação das condições de vida sobretudo em
África e no Médio Oriente. Que são, ainda assim, uma pequeníssima minoria das
movimentações totais, que atingem principalmente países vizinhos dos epicentros
de crise como a Jordânia, o Líbano, a Turquia, a Líbia. São estes países que
estão, na verdade, a contas com problemas trágicos. No Líbano, os 800 mil
refugiados da guerra da Síria representam a quinta parte da população do país.
Comparando com estas situações, a
Europa é uma privilegiada. Não são apenas os neofascismos na Hungria, na
Polónia, em Itália que se recusam a receber refugiados. As deambulações
do Open Arms à procura de um porto de abrigo revelam, em boa verdade,
que para a União Europeia acolher um refugiado já é demais.
A União Europeia, porém, é uma
das principais responsáveis pelas vagas de refugiados que lhe batem à porta. E
que constituem uma parcela dos que perderam a vida nas águas mediterrânicas, em
areias do deserto ou são enviados de volta, por exemplo, para os campos de
concentração a que estão submetidos na Líbia.
Não chegava à Europa um único
refugiado da Líbia antes de potências da União, sob bandeira da NATO,
procederam à devastação do país sob pretexto de o «libertarem». Desde então, o
território líbio tornou-se um paraíso das máfias de tráfico humano que exploram
cada um e a totalidade dos refugiados, prometendo-lhes nova vida no Velho
Continente.
A União Europeia é cúmplice desse
tráfico, por um lado ao criar as condições objectivas para que ele exista e
funcione rentavelmente; por outro lado, porque contribui directamente para
alimentar essas redes mafiosas, ajudando a financiar os campos ditos de
refugiados – mas que são de concentração; e apoiando também as polícias
marítimas controladas, de facto, pelas milícias que dominam a Líbia, as quais
têm como missão interceptar os barcos que se fazem ao mar rumo à Europa e
devolvê-los à procedência por incumbência dos conselheiros europeus. Para a
União Europeia, os bons refugiados são os que estão ao largo, de preferência o
mais longe possível, de maneira a que não lhe cheguem os ecos dos seus trágicos
destinos.
Também podiam contar-se pelos
dedos os refugiados sírios e iraquianos que buscavam a Europa antes de ali
terem chegado os arroubos «libertadores» dos mesmos de sempre. Em relação à
Síria, por exemplo, o mainstream informa-nos que «a culpa é de
Assad». A família Assad, porém, controla o governo de Damasco há décadas e o
êxodo só existe há oito anos, quando grupos terroristas islâmicos mais ou menos
«moderados», sob a asa da al-Qaeda e sustentados por potências da União
Europeia e da NATO, começaram a devastar o país em nome da «democracia».
Salvar por obrigação
Na Europa existe uma reconhecida
indisponibilidade para acolher barcos que transportem refugiados salvos de
afogamento. Na verdade, a indisponibilidade é mais lata: abrange todos os
refugiados.
Por outro lado, quando alguns
escapam ao crivo, e são cada vez menos, a União Europeia é incapaz de chegar a
um acordo de rateio para que sejam repartidos pelos 28 países. Bruxelas aceita
que Estados membros se recusem, pura e simplesmente, a receber um único
refugiado mesmo que haja decisões sobre quotas de distribuição.
A União Europeia, alérgica a
refugiados, tornou-se um vasto e repugnante mecanismo para dar largas à
xenofobia.
A União Europeia financia campos
de concentração na Líbia para impedir que refugiados embarquem para a Europa;
paga a polícias marítimas para travarem as embarcações precárias que conseguem
fazer-se ao mar – depois de os passageiros terem sido espoliados de todos os
seus bens pelas máfias de tráfico humano.
A União Europeia prometeu pagar
três mil milhões de euros anuais à Turquia para fechar as suas fronteiras
europeias, de modo a impedir a passagem de refugiados. O embaraço em Bruxelas
agora é grande porque Ancara vai deixar de cumprir o «acordo» – usando as zonas
fronteiriças como instrumentos de chantagem.
Na União Europeia erguem-se
muros, alinham-se cercas, escavam-se valas para caçar refugiados.
Em tempos, quando o mussoliniano
Salvini ainda nem sequer era um projecto para governar Itália, um alto
responsável do Frontex, a «polícia marítima» da União Europeia, explicou que
não era missão da organização recolher refugiados náufragos – e que só o fazia
por ser uma imposição do direito marítimo.
É difícil expor melhor o
humanismo do estado de espírito da União Europeia em relação a quem pretende
apenas sobreviver, se possível com dignidade.
Imagem: Desde a intervenção da NATO na Líbia, um Estado que acolhia imigrantes, o país
norte-africano, controlado por milícias, passou a ser uma das principais rotas
de passagem de migrantes e refugiados com destino à Europa Créditos/
ladomenicasettimanale.it
Nota: 1. O
governo espanhol do socialista Pedro Sanchéz ameaçou a catalã Open Arms, no
passado mês de Julho, com multas que poderiam ir até 900 mil euros, caso
voltasse a tentar resgatar migrantes ao largo da Líbia. «Se temos que
decidir entre ser cúmplices no assassinato de pessoas ou ser multados, a nossa
decisão é muito clara, (...) preferimos ficar presos em vez de ser cúmplices»,
respondeu Anabel Montes, a chefe de missão da ONG. Europa Press, 3 de Julho de 2019. Sobre o comportamento do governo de
Sanchéz escreve Gabriel Beceiro, no galego Ollaparo, a
21 de Agosto de 2019, ser contra o Código Penal espanhol e contra a
Convenção Internacional do direito marítimo.
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