Apocalipse, estava gravado na
pulseira artesanal do ministro. Uma análise da série de medidas propostas por
ele e Bolsonaro nos últimos dias revela: trata-se de devastar a proteção social
e instaurar um Estado de Exceção Permanente
Sonia Fleury*| Outras Palavras | Imagem: Mariza Dias Costa
Ao encaminhar ao Senado novas
propostas de revisão constitucional – PEC 186 Emergencial e PEC 188 do Pacto
Federativo – o ministro Paulo Guedes usava um curioso adereço, bastante
estranho a seu perfil de homem do mercado financeiro, cujos padrões estéticos
indicadores do sucesso pessoal são bastante conhecidos. Tratava-se de uma
pulseira artesanal, tipo as que homenageiam o Senhor do Bonfim na Bahia, na
qual se lia APOCALIPSE e o número de um versículo do livro bíblico. Chamou
atenção o uso do inusitado adorno, já que o ministro, até então, não fazia
parte da ala governamental conhecida pelo fanatismo religioso, situando-se na
ala do fanatismo neoliberal.
Tratando-se de um momento solene
e de grande gravidade para a sociedade brasileira, ficou impossível não buscar
entender o sentido da linguagem metafórica contida nesse ato, de flagrante
intencionalidade. Trata-se de um conjunto de propostas que visam à destruição
do Estado de Bem-Estar Social contido no texto constitucional e sua
substituição pela constitucionalização do Estado de Exceção Permanente. Isso
fica claro no texto da PEC 188, no qual se propõe uma adição ao Artigo 6º da
Constituição Federal, que estabelece o rol de direitos sociais a serem
garantidos pelo Estado brasileiro:
Art. 6º São direitos sociais a
educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte,
o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
A proposta atual é a inclusão do
seguinte parágrafo único:
Será observado, na promoção dos
direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional.
A primeira pergunta que cabe é
saber de quem é o direito ao equilíbrio fiscal? Do ministério da Economia? Do
sistema financeiro, que receberá os recursos retirados dos trabalhadores a
título de serviço da dívida? Outra questão fundamental é saber qual é a base
técnica do conceito de equilíbrio fiscal intergeracional? E sua base jurídica?
Finalmente, quem definirá o equilíbrio fiscal intergeracional ao qual os
direitos sociais da cidadania passariam a ser subordinados?
Esse conjunto de questões só tem
uma resposta: ao constitucionalizar o estado de emergência fiscal permanente
rasga-se a Constituição Federal de 1988, cujos princípios fundamentais da
República, elencados no Título I, vêm sendo sistematicamente sabotados pelo
governo atual, inaugurando um estado de exceção constitucional, no qual a economia
deixa de servir à sociedade para, invertendo a lógica, colocar a sociedade a
serviço de uma economia especulativa e financeirizada. Essa parece ser a missão
do ministro Paulo Guedes.
A veia sarcástica do ministro já
havia traído sua soberba e desprezo pela população pobre do país quando, em
recente entrevista à Folha de São Paulo (3/11/2019), voltou a
defender o modelo econômico chileno e a capitalização na Previdência Social,
argumentando que enquanto os ricos guardam dinheiro e acumulam, assim como os
altos funcionários públicos, os pobres não têm o hábito de poupar. A
capitalização e as reformas previdenciária e trabalhista, ao retirarem direitos
dos pobres, seriam, portanto, uma forma de “pedagogia do oprimido” que, com o
aumento da opressão aprenderia a acumular. Falou isso em um momento em que o
IBGE divulgava a terrível situação de miséria em que se encontra um quarto da
população – ou seja, 52,1 milhões de brasileiros –, que vive com uma renda
domiciliar per capita de R$ 387 mensais. A estatística conclui: a pobreza
atinge principalmente crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (42%), homens e
mulheres pretos/pardos (67%), famílias formadas por mulheres sem companheiros e
com filhos de até 14 anos (55% do total desse tipo de família), e mulheres
pretas/pardas também sem companheiro e com filhos de qualquer idade (64%).
Perguntado como seria possível a
uma pessoa miserável acumular recursos em fundos de capitalização o “posto
Ipiranga” responde que eles não sabem que já têm um fundo, o FGTS. Parece
realmente um deboche tal afirmativa, já que é impossível desconhecer que o FGTS
é um fundo com contribuições sobre a folha de salários, pago pelas empresas
para seus empregados. Enquanto isso, o índice de desemprego alcança os 11,8% em
2018, com 12 milhões de desempregados, enquanto crescem os números dos
desalentados e aumenta o emprego na informalidade. Para esses não há FGTS, mas
o ministro crê que, mesmo assim, podem aprender a capitalizar desde novinhos,
já que o sucesso dos ricos e o fracasso dos pobres é uma questão de pendor
individual para economizar.
Como a taxa de desemprego entre
jovens de 18 a 24 anos atingiu, em 2019, a assustadora cifra de 27,3% o governo
lançou o programa de emprego verde-amarelo. Oferecerá emprego a um menor custo
para as empresas que absorverem jovens por dois anos, com metade dos direitos
trabalhistas que ainda estão vigentes. Tudo isso pago com a contribuição dos
desempregados, já que os recursos para liberação das obrigações trabalhistas
das empresas, pasmem, virão da alíquota de 7,5% sobre o seguro desemprego!
Trabalhadores que recebem o seguro-desemprego passarão esta alíquota de
contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Esse dinheiro vai
ser usado para compensar o que o governo deixa de arrecadar das empresas que
contratarem jovens verde amarelos, com vínculos precários e redução dos
direitos trabalhistas. Trata-se do verdadeiro moinho satânico que tão bem nos
ensinou Karl Polanyi1.
Assim, ao lado dos trabalhadores com carteira assinada em extinção, teremos
trabalhadores temporários, trabalhadores informais, desalentados, e agora,
também infra trabalhadores verde-amarelos e desempregados financiadores das
desonerações das empresas.
A proposta do programa de emprego
verde-amarelo aproveita para retomar todas as medidas de aprofundamento da
desregulação trabalhista que haviam sido vetadas anteriormente, como permissão
de trabalho aos domingos, correção pela metade das dívidas trabalhistas,
permissão de funcionamento dos bancos aos sábados, dentre outras.
Além disso, o governo extinguiu o
seguro obrigatório DPVAT, que por cobrir acidentes de trânsito, repassou ao SUS
R$33,4 bilhões entre 2008 e 20018. A maior parte das indenizações em 2018 foi
para acidentes de motocicletas (75%), motoristas na faixa de 18 aos 34 anos
(47%), moradores da região Nordeste (30%) e Sudeste (29%). Em outras palavras,
os jovens pobres das periferias que se desempenham como motoboys. Para dirimir
dúvidas sobre sua insensibilidade em relação aos jovens pobres e acidentados o
governo alegou:
“A Medida Provisória não
desampara os cidadãos no caso de acidentes, já que quanto às despesas médicas,
há atendimento gratuito e universal na rede pública, por meio do SUS. Para os
segurados do INSS, também há a cobertura do auxílio-doença, aposentadoria por
invalidez, auxílio-acidente e de pensão por morte. E mesmo para aqueles que não
são segurados do INSS, o Governo Federal também já oferece o Benefício de
Prestação Continuada – BPC, que garante o pagamento de um salário mínimo mensal
para pessoas que não possuam meios de prover sua subsistência ou de tê-la
provida por sua família, nos termos da legislação respectiva”.
Levantamento feito pelo jornal O
Globo mostra o tamanho da demanda provocada por acidentes de trânsito no
SUS: entre 1998 e 2018, o país desembolsou R$ 5,3 bilhões, corrigidos pela
inflação, em 2,8 milhões de procedimentos médicos relacionados ao trânsito,
cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Um levantamento do Conselho Federal
de Medicina estima que esses acidentes geram mais de 160 mil internações por
ano.
Com a nova medida o SUS vai
perder recursos e continuar responsável pela crescente demanda de internações,
próteses e outras intervenções caras. O cinismo da nota do governo se manifesta
no desconhecimento da situação de subfinanciamento do SUS e no impacto que terá
na rede a perda dos recursos do DPVAT. Reportagens recentes associam a extinção
do DPVAT a uma vingança de Bolsonaro contra seu rival político, Luciano Bivar,
que participa do consórcio de asseguradoras do DPVAT. Face à total ausência de
sentido lógico na medida proposta, essa hipótese, que revela mesquinharia e
desprezo pelos direitos da cidadania, parece plausível. Finalmente, a alusão à existência
do BPC para proteger os miseráveis – com renda per capita de ¼ do salário
mínimo – também é uma falácia cruel, já que no mesmo conjunto de medidas de
ajuste fiscal do pacto federativo o governo voltou a insistir na desvinculação
do valor do BPC do salário mínimo, proposta que já havia sido derrotada na
discussão da reforma da Previdência.
Portanto, vai ficando claro que a
alusão ao Apocalipse não é apenas metafórica, pois, ela se configura como um
verdadeiro programa de metas, que convida seus quatro cavaleiros a se
instalarem e reinarem definitivamente entre nós: a Peste, a Guerra, a Fome e a
Morte.
*Publicado
originalmente no blog do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Título
original: “Apocalipse Já: A destruição do Estado de Bem-Estar Social”
1 Karl
Polanyi – A grande Transformação. Editora Campus, 1980
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