Ferreira Fernandes |
Diário de Notícias | opinião
Ela falou e disse a mais
indesmentível verdade dita no Parlamento nesta semana: ela, Joacine Katar
Moreira, deputada do Livre, é gaga. Pois ela disse isso, e da forma mais
irrebatível, que é coisificar as palavras. Estas, diz o ditado, leva-os o
vento. Mas há formas de as dizer, às palavras, que parece mesmo estarmos a
vê-las, não só o que elas verbalizam, mas também aquilo que elas representam e,
enfim, são. Joacine é gaga.
Então, sobre o ser gaga, a
deputada estendeu fonemas - logo na segunda palavra do discurso, "eu
nnnnnão me irei alongar..." -, repetiu ditongos ("refefefeferir a
isto...") - e bloqueou onde calhava, com sopros intermináveis e
sibilantes. Joacine Katar Moreira é gaga, profunda e sem margem para dúvidas. E
essa questão, com aquele breve discurso (de cinco minutos, à metade da
velocidade dos outros deputados a encaixar as palavras deles), ficou resolvida.
Assim outros mistérios do novo
Parlamento ficassem esclarecidos com poucas penadas ao microfone. Vamos ter uma
geringonça encapotada? Rui Rio, deputando, vai convencer o próximo congresso do
seu partido? O grupinho do CDS vai deixar-se contaminar pelo vizinho André?
Quando Jerónimo se despede?... Disso ficámos ainda sem saber.
Mas aquele magno problema surgido
na campanha eleitoral, sujeito até ao detetor de mentiras da SIC - será fingido
o gaguejar de Joacine? -, esse, ficou doravante esclarecido: não é. Ao ouvido e
à vista (o gaguejar vê-se ainda mais do que mal se percebe) de todos os
portugueses, ou pelo menos dos seus representantes, a gaguez desvendou-se
legítima e sincera.
Dir-me-ão, não é assim tão grave
ter um deputado gago. A Inglaterra teve um rei gago durante um dos momentos
mais duros e decisivos dela, estava cercada e sozinha na Europa, e safou-se...
Justamente (é o que tem de bom sermos nós a escolher os exemplos quando se
escreve), safou-se porque Jorge VI pouco se fazia ouvir e, em compensação, a
Inglaterra era conduzida por um Churchill capaz de fazer discursos empolgantes.
Não é inútil o falar bem na política.
Digo isto para relembrar que ser
gago profundo é uma deficiência. Para determinadas funções atrasa e até pode
estragar tudo. Um gago a anunciar num cais ferroviário pode levar-nos a perder
o comboio. Mas ser deputado e gago é incompatível? Quem respondeu melhor a isso
foi a própria Joacine, ainda em campanha: "Sou gaga na fala e não gaga a
pensar."
Na verdade, no tempo histórico
marcado pelos discursos de Trump e de Bolsonaro - esses, sem língua presa, mas fluida
como só a sem-vergonha permite, e poderosa com o dom de nos tornar a alma mais
pequena (aproveito para citar uma antiga deputada que amava as palavras, Sophia
de Mello Breyner) -, nestes tempos de hoje, pois, nós decidimos priorizar a
disfemia como a nossa principal preocupação quando pensamos e falamos sobre
falar dos políticos! E, já agora, que presunção pelo estilo e pela eficiência
discursiva quando nos escasseiam tribunos e de repentismo soberbo no hemiciclo
só me lembra o poema "Truca-truca", da Natália Correia...
Regressemos, pois, à dimensão
real do drama: ser deputado e gago não é drama nenhum. Nesta semana, ouvindo
Joacine Katar Moreira, uma conclusão: a sua gaguez é profunda e o seu discurso
quase não se entende. Foi a sua primeira intervenção parlamentar e o peso disso
talvez a tivesse marcado. Foi demasiado uma gaga no hemiciclo e dela esperamos
mais.
Mas ser deputada é participar nos
plenários, nas comissões (parlamentares, ad hoc e plenárias) e
discursar de vez em quando. Há deputados que não discursam durante uma
legislatura, mas numa deputada única mal servido ficaria o seu partido se ela
nunca discursasse. Não é um drama, mas é um problema. Ora Joacine Katar
Moreira, que se vangloriou de não ser gaga a pensar, não nos quer comprovar isso
e encontrar uma solução para vencer um problema que até agora ela também não
resolveu bem?
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