domingo, 3 de novembro de 2019

Portugal | À espera de Joacine, a deputada


Ferreira Fernandes | Diário de Notícias | opinião

Ela falou e disse a mais indesmentível verdade dita no Parlamento nesta semana: ela, Joacine Katar Moreira, deputada do Livre, é gaga. Pois ela disse isso, e da forma mais irrebatível, que é coisificar as palavras. Estas, diz o ditado, leva-os o vento. Mas há formas de as dizer, às palavras, que parece mesmo estarmos a vê-las, não só o que elas verbalizam, mas também aquilo que elas representam e, enfim, são. Joacine é gaga.

Então, sobre o ser gaga, a deputada estendeu fonemas - logo na segunda palavra do discurso, "eu nnnnnão me irei alongar..." -, repetiu ditongos ("refefefeferir a isto...") - e bloqueou onde calhava, com sopros intermináveis e sibilantes. Joacine Katar Moreira é gaga, profunda e sem margem para dúvidas. E essa questão, com aquele breve discurso (de cinco minutos, à metade da velocidade dos outros deputados a encaixar as palavras deles), ficou resolvida.

Assim outros mistérios do novo Parlamento ficassem esclarecidos com poucas penadas ao microfone. Vamos ter uma geringonça encapotada? Rui Rio, deputando, vai convencer o próximo congresso do seu partido? O grupinho do CDS vai deixar-se contaminar pelo vizinho André? Quando Jerónimo se despede?... Disso ficámos ainda sem saber.

Mas aquele magno problema surgido na campanha eleitoral, sujeito até ao detetor de mentiras da SIC - será fingido o gaguejar de Joacine? -, esse, ficou doravante esclarecido: não é. Ao ouvido e à vista (o gaguejar vê-se ainda mais do que mal se percebe) de todos os portugueses, ou pelo menos dos seus representantes, a gaguez desvendou-se legítima e sincera.

Dir-me-ão, não é assim tão grave ter um deputado gago. A Inglaterra teve um rei gago durante um dos momentos mais duros e decisivos dela, estava cercada e sozinha na Europa, e safou-se... Justamente (é o que tem de bom sermos nós a escolher os exemplos quando se escreve), safou-se porque Jorge VI pouco se fazia ouvir e, em compensação, a Inglaterra era conduzida por um Churchill capaz de fazer discursos empolgantes. Não é inútil o falar bem na política.


Digo isto para relembrar que ser gago profundo é uma deficiência. Para determinadas funções atrasa e até pode estragar tudo. Um gago a anunciar num cais ferroviário pode levar-nos a perder o comboio. Mas ser deputado e gago é incompatível? Quem respondeu melhor a isso foi a própria Joacine, ainda em campanha: "Sou gaga na fala e não gaga a pensar."

Na verdade, no tempo histórico marcado pelos discursos de Trump e de Bolsonaro - esses, sem língua presa, mas fluida como só a sem-vergonha permite, e poderosa com o dom de nos tornar a alma mais pequena (aproveito para citar uma antiga deputada que amava as palavras, Sophia de Mello Breyner) -, nestes tempos de hoje, pois, nós decidimos priorizar a disfemia como a nossa principal preocupação quando pensamos e falamos sobre falar dos políticos! E, já agora, que presunção pelo estilo e pela eficiência discursiva quando nos escasseiam tribunos e de repentismo soberbo no hemiciclo só me lembra o poema "Truca-truca", da Natália Correia...

Regressemos, pois, à dimensão real do drama: ser deputado e gago não é drama nenhum. Nesta semana, ouvindo Joacine Katar Moreira, uma conclusão: a sua gaguez é profunda e o seu discurso quase não se entende. Foi a sua primeira intervenção parlamentar e o peso disso talvez a tivesse marcado. Foi demasiado uma gaga no hemiciclo e dela esperamos mais.

Mas ser deputada é participar nos plenários, nas comissões (parlamentares, ad hoc e plenárias) e discursar de vez em quando. Há deputados que não discursam durante uma legislatura, mas numa deputada única mal servido ficaria o seu partido se ela nunca discursasse. Não é um drama, mas é um problema. Ora Joacine Katar Moreira, que se vangloriou de não ser gaga a pensar, não nos quer comprovar isso e encontrar uma solução para vencer um problema que até agora ela também não resolveu bem?

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