domingo, 8 de dezembro de 2019

Portugal | A Magistratura


Valter Hugo Mãe | Jornal de Notícias | opinião

Qualquer poder ilimitado tende a ser ilegítimo. A menos que falemos da imaginação, um poder sem definição do seu próprio limite torna-se um abuso. Ninguém é detentor da decisão de um deus. Nenhuma dimensão da sociedade se alcandora a ser absoluta. Todos estamos implicados numa identidade coletiva que nos impede de conservar dimensões sem regra.

A demissão de Rui Rangel do Conselho Superior da Magistratura é um sinal de maturidade de um sistema que tantas vezes falha e nos assusta pela sua prepotência quanto nos frustra pela sua impunidade. Não há legitimidade num sistema judicial se ele não desempenhar estritamente aquilo para que está mandatado, escrupulosamente mandatado para cuidar da aplicação da justiça que as pessoas acordaram ao fim de séculos de sociedade. A Justiça tem de ser a efetivação do pacto social, como sua sacralização, o que honra o esforço de todos em permanecer em coletivo, o que honra a anuência de todos às regras de cuidado comum. Neste aspeto, a Justiça significa a retribuição fundamental por tudo quanto abdicamos e dividimos.

É natural que todas as classes desenvolvam suas cumplicidades, modos de fazer que se abreviam para os que operam a específica máquina de alguma profissão, no entanto, poucas simpatias serão mais ascorosas do que aquelas que manipulam a Justiça em favor de alguns. Na austeridade do mundo dos tribunais, todos os cidadãos se inquietam, diminuídos a objetos de tantas sensibilidades e opiniões que temem que a verdade não seja suficiente. No grave jogo dos tribunais, somos todos meninos, por mais bravura ou limpidez. Estamos como meninos à mercê da inteligência e da lisura dos magistrados.


O Conselho Superior da Magistratura, num gesto só, manifestou ao país o seu compromisso com a Justiça e com a deontologia de uma profissão que precisa de ser exímia. A raridade do sucedido é um símbolo brilhante da aspiração de todos a um poder que seja legitimado pela obediência à Lei e à sensatez.

Claro que será expectável que Rui Rangel se estabeleça agora como advogado, coisa que podemos ponderar como, no mínimo, irritante. A comissão de erro grave na Magistratura não desimporta à advocacia. E quem se vê expulso de ser juiz não me parece adequado a ser advogado senão da sua própria causa. De todo o modo, a defesa do sistema aconteceu. Por uma vez, aconteceu. Celebremos a coragem e o respeito que isso merece.

*Escritor

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