Valter Hugo Mãe |
Jornal de Notícias | opinião
Qualquer poder ilimitado tende a
ser ilegítimo. A menos que falemos da imaginação, um poder sem definição do seu
próprio limite torna-se um abuso. Ninguém é detentor da decisão de um deus.
Nenhuma dimensão da sociedade se alcandora a ser absoluta. Todos estamos
implicados numa identidade coletiva que nos impede de conservar dimensões sem
regra.
A demissão de Rui Rangel do
Conselho Superior da Magistratura é um sinal de maturidade de um sistema que
tantas vezes falha e nos assusta pela sua prepotência quanto nos frustra pela
sua impunidade. Não há legitimidade num sistema judicial se ele não desempenhar
estritamente aquilo para que está mandatado, escrupulosamente mandatado para
cuidar da aplicação da justiça que as pessoas acordaram ao fim de séculos de sociedade.
A Justiça tem de ser a efetivação do pacto social, como sua sacralização, o que
honra o esforço de todos em permanecer em coletivo, o que honra a anuência de
todos às regras de cuidado comum. Neste aspeto, a Justiça significa a
retribuição fundamental por tudo quanto abdicamos e dividimos.
É natural que todas as classes
desenvolvam suas cumplicidades, modos de fazer que se abreviam para os que
operam a específica máquina de alguma profissão, no entanto, poucas simpatias
serão mais ascorosas do que aquelas que manipulam a Justiça em favor de alguns.
Na austeridade do mundo dos tribunais, todos os cidadãos se inquietam,
diminuídos a objetos de tantas sensibilidades e opiniões que temem que a
verdade não seja suficiente. No grave jogo dos tribunais, somos todos meninos,
por mais bravura ou limpidez. Estamos como meninos à mercê da inteligência e da
lisura dos magistrados.
O Conselho Superior da
Magistratura, num gesto só, manifestou ao país o seu compromisso com a Justiça
e com a deontologia de uma profissão que precisa de ser exímia. A raridade do
sucedido é um símbolo brilhante da aspiração de todos a um poder que seja
legitimado pela obediência à Lei e à sensatez.
Claro que será expectável que Rui
Rangel se estabeleça agora como advogado, coisa que podemos ponderar como, no
mínimo, irritante. A comissão de erro grave na Magistratura não desimporta à
advocacia. E quem se vê expulso de ser juiz não me parece adequado a ser
advogado senão da sua própria causa. De todo o modo, a defesa do sistema
aconteceu. Por uma vez, aconteceu. Celebremos a coragem e o respeito que isso
merece.
*Escritor
Sem comentários:
Enviar um comentário