A cidade que se esvai São
Francisco, em tempos um pilar do tech-capitalism e actualmente a
segunda cidade mais cara da América (apenas atrás de Nova Iorque), desvia-se
pelas ruas da amargura.
Inês Pedrosa e Melo | AbrilAbril
| opinião
A pandemia traz ao de cima as
feridas de uma metrópole cuja infra-estrutura não foi pensada a longo prazo, ou
de forma igualitária. Há muito que São Francisco deixou de ser uma cidade para
todos.
Quando me mudei para a
Califórnia, em Setembro de 2017, já tinha recebido avisos de amigos que por lá
tinham passado. Diziam-me que esquecesse o sonho da cidade de colinas e da
ponte sobre a baía e tão perto do Pacífico, nevoeiro espesso e frio húmido que
nos envolve dos pés à cabeça, de flores em cabelos longos dos anos 60,
contracultura e revolta política, liberdade sexual e amor sem fim, que de há
muito deixara de ser realidade. Vinha alimentada por esses mesmos sonhos,
sonhos de uma Califórnia ensolarada, «tão europeia, tão cosmopolita», que se
distinguia do resto da América. No fundo, queria viver na América que fosse o
menos parecida com a América. Aquela América que, embora real, é a América que
a Europa fetichiza, dos pobres racistas em pick-up trucks, defensores dos
direitos às armas, anti-imigração. Queria a anti-América. A América que queria
ser melhor.
É inegável a relevância política
que a zona da baía de São Francisco tem na história da revolução política, e
mentiria se dissesse que não foi esse lado mítico que me fez procurá-la. Seja
pelos direitos à liberdade de expressão, direitos civis, protestos contra a
guerra do Vietname, direitos de portadores de deficiência, movimento do black
power – os Black Panthers, por exemplo, são originários de Oakland, cidade
vizinha de São Francisco. Um pouco a norte de Oakland está Berkeley, cidade de
uma das mais prestigiadas universidades americanas públicas, palco de
movimentos estudantis. Acima de tudo, qualquer um provavelmente reconhece
imediatamente aquilo por que São Francisco é principalmente conhecido: como
sendo o centro nevrálgico do movimento de defesa dos direitos da comunidade
gay, lésbica e trans, nos anos 70, com Harvey Milk como o seu protagonista mais
reconhecido, e como sendo também um dos palcos mais dramáticos da epidemia de
HIV/sida nos anos 80/90.