sexta-feira, 11 de março de 2022

AS EXTREMAS-DIREITAS VÃO BENEFICIAR COM A GUERRA NA UCRÂNIA

O conflito está a internacionalizar-se com a chegada de combatentes estrangeiros: militantes de extrema-direita estão a dirigir-se para a Ucrânia e a Rússia está a mobilizar mais mercenários. A guerra pode estar a entrar numa nova fase.

Ricardo Cabral Fernandes | Setenta e Quatro

Com a destruição das cidades ucranianas pelas tropas russas e com os civis a serem as principais vítimas, a guerra na Ucrânia pode estar a entrar numa nova fase. Há uma crescente internacionalização do conflito com a presença de combatentes estrangeiros: militantes de extrema-direita estão a dirigir-se para a Ucrânia e a Rússia está a mobilizar mais mercenários. 

Desde 2014 que a Ucrânia é ponto de atração para combatentes estrangeiros que pretendem desenvolver as suas capacidades militares e contactos internacionais. Aconteceu dos dois lados do conflito, do ucraniano e do russo, mas desde 24 de fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, que a situação tem evoluído de forma acelerada, e preocupante. Basta que se queira olhar sem tentar justificar, implicitamente, uma extrema-direita a favor da outra.

“Todos os amigos da Ucrânia que se queiram juntar à Ucrânia na defesa do país, por favor venham. Dar-vos-emos armas. Em breve anunciaremos como o poderão fazer. Todos os que defendem a Ucrânia são heróis”, disse em conferência de imprensa o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Um dia depois, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, anunciou que o Governo iria formar uma Legião Estrangeira Ucraniana, um velho sonho de uma parte da extrema-direita no país.

Apelos semelhantes foram inclusive feitos por governantes ocidentais. A ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Liz Truss, descreveu a guerra na Ucrânia como uma “batalha pela democracia” e disse apoiar quem for combater os russos. O parlamento letão votou, por unanimidade, permitir que os seus nacionais fossem combater para a Ucrânia e a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, anunciou que o seu governo deixará os dinamarqueses irem combater no país da Europa de Leste. 

Desde o primeiro apelo ucraniano que mais de 20 mil estrangeiros de 52 países responderam ao chamamento para integrarem a nova Legião Estrangeira, inscrevendo-se num site para esse efeito. A rede diplomática ucraniana começou a anunciar o recrutamento, incluindo a embaixada ucraniana em Portugal. Os governos senegalês, argelino e nigeriano opuseram-se ao recrutamento nos seus países, queixando-se às autoridades ucranianas. 

As autoridades ucranianas estão a privilegiar estrangeiros que já tenham formação militar, especialmente de forças especiais - não querem voluntários que sejam carne para canhão. Os perfis e as motivações dos estrangeiros que querem ir combater na Ucrânia são bastante heterogéneos: uns vão à procura de aventura, outros são simples mercenários, outros tantos são ex-militares que se mostraram chocados com a invasão e as imagens dos bombardeamentos de civis pelas tropas russas – parece ser o caso de ex-militares portugueses. Mas outros, os que mais preocupam e uma minoria no bolo total, são militantes de extrema-direita.

AMEAÇA FUTURA

A invasão ainda não tinha começado quando as milícias de extrema-direita usaram as redes sociais, principalmente a plataforma russa Telegram, muito usada no espaço pós-soviético, para renovar os seus apelos à vinda de militantes estrangeiros. Foi essa a razão que levou as autoridades britânicas a terem montado postos de controlo nas portas de embarque de pelo menos um aeroporto, questionando os britânicos em idade de combate sobre as razões da sua viagem.

Entretanto, as milícias estabeleceram rotas de entrada na Ucrânia, apoiadas pela extrema-direita polaca, forneceram dados bancários para quem os quisesse apoiar financeiramente (inclusive através de criptomoedas, para evitar possíveis rastreamentos) e referiram centros de recrutamento dentro da Ucrânia. A organização não-governamental SITE Intelligence Group tem monitorizado as redes sociais de vários grupos de extrema-direita e notado que os apelos para se ir combater para a Ucrânia têm sido constantes. De ambos os lados do Atlântico.

“A instabilidade na Ucrânia oferece aos extremistas da supremacia branca as mesmas oportunidades de treino que a instabilidade no Afeganistão, Iraque e Síria ofereceu durante anos aos militantes jihadistas”, disse ao New York Times o antigo agente do FBI Ali Soufan. “Guerras civis e insurgências atraem frequentemente voluntários do exterior. Alguns podem juntar-se inicialmente por razões humanitárias, mas vão exacerbar e prolongar o conflito e a violência.”

O Counter Extremism Project, organização não-governamental que se dedica a monitorizar o extremismo político, considera que estes combatentes de extrema-direita representam "claros riscos de segurança". "Vão provavelmente obter experiência de combate na zona do conflito e terão potencialmente um maior impacto nos meios extremistas orientados para a violência nos seus países de origem depois de regressarem", afirma a organização. "A sua capacidade para planear e realizar ataques com sucesso de acordo com a sua ideologia aumenta massivamente", continua, referindo que o ideal é "interromper a viagem desses extremistas para a zona de conflito". 

Os militantes de extrema-direita que se dirigem para a Ucrânia não querem saber do povo ucraniano e da sua luta, querem apenas receber experiência militar e estabelecer contactos internacionais. Um deles é o antigo líder dos Portugal Hammerskins e da Frente Nacional, Mário Machado. Anunciou estar prestes a partir com 20 militantes de extrema-direita para a Ucrânia, desejando entrar pela Polónia. Mas, como tem de respeitar o termo de identidade e residência, apresentar-se quinzenalmente numa esquadra, diz ter a intenção de apenas ficar no país de leste por 15 dias - o Ministério Público ainda tem de dar o seu parecer.

O apelo internacional de Zelensky pode ter aberto uma Caixa de Pandora. Um dos grandes sonhos do Batalhão Azov, milícia neonazi que se transformou num movimento político alargado na Ucrânia, era a formação de uma Legião Estrangeira ucraniana. O partido Corpo Nacional, braço político do movimento, inscreveu esse desígnio no seu programa político quando foi fundado em 2016. Em 2019, o Batalhão Azov tornou-se membro honorário da organização de veteranos Francopan, que coopera com a Legião Estrangeira francesa.

Os combatentes estrangeiros de extrema-direita vão contribuir para o esforço de guerra contra as tropas russas com armas fornecidas pela NATO, mas poderão representar uma significativa ameaça no futuro – centenas de mísseis Stinger e Javelin já foram dados à Ucrânia.  A aposta ocidental no apoio militar, para transformar a Ucrânia numa espécie de Afeganistão para a Rússia, está a ser em grande parte feita através de mísseis antiaéreos e antitanque. Já há novas remessas de mísseis nas mãos de militantes do Azov. 

No caos da guerra, as armas distribuídas podem acabar em mãos erradas, sem que se tenha qualquer critério senão o de as conseguirem disparar. Este é um dos motivos de preocupação. Um míssil destes abate um avião comercial sem grande esforço.  

“Antes da invasão, o apoio [direto] à extrema-direita era plausivelmente acidental. Mas pode não ser mais o caso, porque ‘toda a ajuda possível’ significa exatamente isso – e permite que a extrema-direita da Ucrânia desempenhe um papel heróico que de outra forma não teria”, disse à revista norte-americana Newsweek Jonathan Brunson, antigo analista político da embaixada dos EUA em Kiev e hoje analista da Exovera Center for Intelligence Research and Analysis.

Além do acesso a armamento pesado, quando a guerra terminar e a Ucrânia continuar a ser um Estado independente (é difícil imaginar outro cenário), as milícias neonazis estarão, provavelmente, militarmente reforçadas. São grupos liminarmente contra os valores liberais europeus a que os ucranianos dizem querer pertencer, defendem o fim da União Europeia, são contra a NATO. Que fará então Zelensky para as desmilitarizar no futuro, quando terão ainda mais prestígio e apoiantes? São, portanto, uma ameaça para a democracia e Estado ucranianos, mas também para toda a Europa por causa dos contactos internacionais e do treino militar que receberam.

Foi precisamente a estratégia de se pensar apenas no momento que deu força às forças neonazis na Ucrânia a partir de 2014. No seguimento da anexação da Crimeia pela Rússia e do início da guerra no leste do país, as forças ucranianas sofreram pesadas baixas e o recém poder político, personificado no presidente Petro Poroshenko, apelou aos ucranianos que se organizassem e pegassem em armas. Elementos da extrema-direita ucraniana, financiados por oligarcas ucranianos, responderam ao apelo e criaram vários batalhões: o Azov, o Dnipro 2, o Shakhtarsk, o Aidar, o Poltava.

O mais bem-sucedido foi o Batalhão Azov, que acabou por ser integrado na Guarda Nacional ucraniana em maio de 2014 – o seu grande patrono foi alegadamente o ministro do Interior Arsen Avakov, até sair do governo em julho de 2021. Foi uma forma de o poder político o tentar manter sob controlo ao mesmo tempo que armas e treino fornecidos pela NATO poderiam ser canalizados para os neonazis. Houve militantes de extrema-direita a receberem formação militar superior numa academia militar canadiana.

Desde aí, a extrema-direita ucraniana tem usado a guerra no Donbass para se militarizar, organizar, financiar, formar laços internacionais e entrar no aparelho de Estado. Em 2018, o Congresso norte-americano proibiu a continuação da ajuda militar ao Azov, sem que se saiba como essa decisão é aplicada uma vez chegadas as armas ao terreno, e em outubro de 2019 vários congressistas norte-americanos pediram ao Departamento de Estado para designarem o Azov como organização terrorista estrangeira.

“Alguns podem especular que o acesso da extrema-direita a treino militar ocidental fornecido às forças militares e de segurança da Ucrânia aumentou a sensação da Rússia de que o Ocidente está a transformar a Ucrânia numa anti-Rússia”, disse à Newsweek Oleksiy Kuzmenko, jornalista ucraniano especialista na extrema-direita, salientando que isso em nada justifica a invasão russa. “Outros vão apontar que para a Ucrânia todos os combatentes contam.”

Entretanto, e pelos seus feitos no campo de batalha, a extrema-direita legitimou-se junto da sociedade ucraniana como heróis contra o agressor russo e aproveitou-se do (natural) sentimento nacionalista e patriótico ucraniano perante os russos para normalizar e expandir as suas ideias na sociedade. A normalização de Stepan Bandeira, nazi ucraniano que combateu os soviéticos na II Guerra Mundial ao lado da Alemanha nazi até se desentender com esta por desejar uma Ucrânia independente, acabando num campo de concentração nazi, é disso exemplo. 

“A guerra no leste deu uma nova legitimidade social a grupos de extrema-direita, trazendo consigo níveis sem precedentes de sofisticação, financiamento, recrutamento e capacidade organizacional”, lê-se num relatório da Freedom House de janeiro de 2020.

O Kremlin tem usado a narrativa da extrema-direita como arma política contra o poder político ucraniano – veja-se a tentativa russa de justificar a invasão com a “desnazificação”. Daí que falar-se da extrema-direita no país, diz o jornalista Michael Colborne, especialista no Azov, se tenha tornado quase num pecado. “Há muito tempo que existe um medo real na Ucrânia de alimentar a propaganda do Kremlin falando sobre a extrema-direita. Espero ser criticado online por causa deste artigo, não por causa do que disse aqui, mas porque disse qualquer coisa sobre a extrema-direita”, escreveu recentemente num artigo publicado na revista britânica New Statesman.

Ao mesmo tempo, os principais partidos ucranianos assumiram uma crescente posição nacionalista, com Petro Poroshenko a desempenhar um papel essencial no fortalecimento da identidade ucraniana – a proibição do russo como segunda língua oficial, discriminando a população russófila, é um exemplo, dando munições políticas a Putin e aos separatistas. O posicionamento mais radical dos principais partidos esvaziou qualquer oportunidade de a extrema-direita ucraniana se afirmar na política eleitoral nas legislativas de 2019. O Corpo Nacional integrou as listas do Svoboda, mas não tiveram sucesso eleitoral ao conquistarem apenas 2,15% dos votos (315 mil), ficando de fora do órgão legislativo ao não ultrapassarem o mínimo legal de 5%.

Há anos que a extrema-direita ucraniana opta pela estratégia das armas em detrimento da eleitoral. A guerra no leste produziu milhares de veteranos e, sabendo-o, a extrema-direita ucraniana aproveitou-o, bebendo dos ensinamentos do período entre a I e a II Guerra Mundiais, do fascismo enquanto movimento. O Azov aliou-se a outras milícias de extrema-direita para criar o Movimento de Veteranos da Ucrânia e fez pressão para que se criasse um Ministério dos Assuntos dos Veteranos, o que veio a acontecer em 2018, sob a presidência de Poroshenko. Foi mais uma porta de entrada da extrema-direita para o aparelho de Estado.

A extrema-direita vive e alimenta-se da guerra no leste do país e, por isso, foi desde o primeiro momento um dos principais opositores ao cumprimento dos Acordos de Minsk. Para si, a guerra deve ser total, sem qualquer acordo com os separatistas de Donetsk e Lugansk.

A LUTA É, POR AGORA, A MESMA

Zelensky foi eleito presidente com 73% dos votos em 2019 com uma candidatura alicerçada nas promessas de terminar a guerra e proceder à conciliação nacional, combater a corrupção e melhorar a economia ucraniana. Usou uma narrativa do povo contra a elite, personificada por Poroshenko. E, nas legislativas que se realizaram pouco depois, também em 2019, o seu recém-fundado partido, Servo do Povo, venceu-as com um resultado histórico: 44% dos votos. Zelensky detinha a presidência e controlava o parlamento, surgindo críticas de um crescente autoritarismo. 

Mas a realidade trocou-lhe as voltas. Ilhor Kolomoisky, um dos oligarcas ucranianos mais poderosos, que apoiou a sua candidatura presidencial e que financiou o Azov, teve grandes fricções com Zelensky depois de o chefe de Estado ter tentado manter a presidência independente. Os oligarcas começaram a boicotar a sua política, os Acordos de Minsk não foram avante e a economia ucraniana não deu sinais de grande recuperação. E, em consequência, as esperanças em si depositadas não tiveram retorno: as suas taxas de aprovação começaram a cair a pique até pouco antes de a Rússia concentrar tropas na fronteira – o escândalo de ter contas em paraísos fiscais, denunciadas nos Pandora Papers, foi mais um golpe na sua popularidade.

O presidente ucraniano viu-se então mergulhado numa situação criada pelo seu antecessor Petro Poroshenko, apoiado desde o primeiro momento pela União Europeia e NATO. O conflito congelado – mas com bombardeamentos sistemáticos de parte a parte, segundo a equipa de monitorização da OSCE – ia em breve descongelar, e da pior forma.

Se Zelensky cumprisse os Acordos de Minsk, corria o risco de as milícias lhe fazerem um golpe; se atuasse contra os oligarcas, corria o risco de as milícias serem lançadas contra si (atuam como capangas dos oligarcas), a que se juntaria toda uma pressão económica significativa. Hoje, Zelensky é louvado (quase acriticamente, como se a complexidade do mundo e de uma guerra fosse a preto e branco) como herói pela imprensa ocidental, mas as expectativas poderão sair defraudadas no futuro.

Zelensky, que é judeu e perdeu familiares no Holocausto, e o seu primeiro-ministro, Oleksiy Honcharuk, também legitimaram as milícias e grupos de extrema-direita (C14, grupo paramilitar da rede neonazi Blood&Honour, por exemplo) ao trabalharem com eles no que aos assuntos dos veteranos de guerra ucranianos diz respeito, escreveu o Bellingcat. Honcharuk e a ministra dos Veteranos, Oksana Koliada, participaram num concerto da banda neonazi Veterans Strong, conhecida pelas suas músicas supremacistas brancas e negacionistas do Holocausto, em outubro de 2019.

Entretanto, o treino, as armas e o equipamento dado pelos Estados-membros da NATO, principalmente EUA e Canadá, não pararam. Chegaram até a intensificar durante a presidência de Zelensky, apesar dos consecutivos avisos russos – a aliança atlântica reafirmou, a 14 de fevereiro de 2022, os seus esforços em melhorar as capacidades militares da Ucrânia. Muitas destas armas, inclusive mísseis antiáereos, chegaram às mãos do Azov apesar da proibição do Congresso dos EUA – há anos que a sua capacidade operacional se parece mais à de uma unidade ocidental do que à de um país de leste, tal é o equipamento de que dispõe.

Queixando-se de não ser ouvido ao longo dos anos quanto à expansão da NATO para o espaço pós-soviético e ao apoio militar à Ucrânia, Putin começou então a concentrar tropas nas fronteiras. Os Estados Unidos avisaram que uma invasão estaria prestes a acontecer – a primeira notícia foi dada pelo Washington Post a 3 de dezembro de 2021. Moscovo mentiu consecutivamente dizendo não ter planeada qualquer invasão, dizendo que eram meros exercícios militares com o seu aliado bielorrusso.

Putin tentou depois fabricar pretextos para levar a cabo uma invasão há muito escolhida e planeada. Tentou operações de bandeira falsa (a comunidade OSINT desempenhou um importante papel nas suas desconstruções), levou a cabo provocações e, sem conseguir o que tanto desejava, avançou na mesma, prometendo “desmilitarizar” e “desnazificar” a Ucrânia – narrativa propagandista com a intenção de justificar a invasão, quando o próprio Putin apoia a extrema-direita russa e europeia.

Ao mesmo tempo, a Ucrânia preparava-se para o pior dando treino militar aos civis aos fins-de-semana. As milícias de extrema-direita fizeram parte deste esforço, tendo uma nova oportunidade para chegar aos civis. As imagens de uma idosa a disparar uma AK-47 com a ajuda de um militar do Azov mostraram como o recrutamento, e a expansão das ideias da extrema-direita, pode ter ganho renovada força junto de uma população que receava o expansionismo russo, a que se juntou o (natural) sentimento patriótico e nacionalista de uma população agredida. E quando Zelensky ordenou a mobilização geral de todos os homens dos 18 aos 60 anos, muitos foram integrados nas fileiras das forças de Defesa Territorial pertencentes ao Azov. Os neonazis bateram palmas. 

“A extrema-direita ucraniana é a principal beneficiária do lado ucraniano desta guerra, porque agora consegue atrair pessoas de todo o mundo e são vistos como a linha da frente na luta pela civilização branca”, explicou o jornalista ucraniano Lev Golinkin  ao canal de televisão norte-americano Democracy Now. 

Um desses benefícios foi deixado claro pela mudança de política do Facebook quanto ao Azov: o Batalhão estava na lista de Organizações e Indivíduos perigosos da rede social, mas, mal a invasão começou, os neonazis foram retirados dessa lista, revelou o The Intercept. Milhões de pessoas podem agora louvar os neonazis publicamente na rede social detida por Mark Zuckerberg. 

Mas a situação vai ainda mais longe: a extrema-direita tem agora a oportunidade de se afirmar mais em cargos de liderança. No seguimento da invasão, Zelensky nomeou Maxym Marchenko governador da cidade portuária de Odessa. Marchenko é comandante do neonazi Batalhão Aidar e a Amnistia Internacional acusou a unidade militar de ter estado “envolvida em abusos generalizados, incluindo detenções ilegais,  maus-tratos, roubos, extorsões e possíveis execuções”, em Lugansk.

“Com base na sua ideologia, a extrema-direita ucraniana persegue a sua própria visão da Ucrânia. Não é necessariamente a do presidente Zelensky, mas estão neste momento a lutar a mesma luta”, explicou Kuzmenko, referindo-se aos combates depois de a invasão ter começado.

Um exemplo claro de divergências foram as duras críticas de Andriy Biletsky, líder supremo do Azov, ao facto de Zelensky ter aceitado negociar com os russos - se o presidente e Putin chegarem a acordo, o primeiro vai ter de controlar os neonazis, não se sabendo como o poderá fazer. Não foi a primeira vez que Biletsky fez frente ao presidente: em 2019, ameaçou enviar dez mil voluntários para a cidade de Zolote, no Donbass, para contestar o recuo ordenado pelo presidente das linhas da frente.

A invasão pela Rússia aconteceu nas primeiras horas de 24 de fevereiro e o mundo parou - ou pelo menos assim têm dado a entender as televisões ocidentais. A resistência ucraniana, as dificuldades militares russas no terreno, as sanções, o isolamento internacional diplomático e económico russo e os apelos à paz não têm levado o presidente Vladimir Putin a ceder.

Numa primeira fase da invasão, as tropas russas mostraram alguma constrição em bombardear zonas residenciais, sobretudo se tivermos em conta o que fizeram noutras guerras. Mas, à medida que a frustração aumentava nos comandos militares russos, os bombardeamentos tornaram-se cada vez mais indiscriminados, causando milhares de vítimas civis. Basta olhar-se para o que Putin fez em Grozny, entre 1999 e 2000, na II Guerra da Chechénia, e na guerra civil síria para se perceber o que ainda poderá vir aí: transformou cidades inteiras em pó. Os corredores humanitários para a retirada dos civis são um forte sinal nesse sentido – apenas se estabelecem quando o objetivo é arrasar quem restar.

Um exemplo claro é o que está a acontecer na cidade de Mariupol, a mais próxima das linhas iniciais dos separatistas do Donbass. A cidade, cercada desde 2 de março, está sem água e eletricidade e os russos começaram a bombardeá-la indiscriminadamente (incluindo uma maternidade), arrasando-a e matando muitos civis. Não poucas vidas poderiam ter sido poupadas se a evacuação da cidade tivesse sido permitida.

Entre 24 de fevereiro e 2 de março, os neonazis do Azov não deixaram a população civil abandonar a cidade sob a ameaça de serem executados. “Como posso sair? Quando tentamos sair corremos o risco de encontrar uma patrulha de fascistas ucranianos, o Batalhão Azov”, disse à televisão grega SKAI, no final de fevereiro, um cidadão grego chamado Kiouranas, residente na cidade. “Iriam matar-me, são responsáveis por tudo.”

É a tal guerra total. É nas proximidades de Mariupol, onde reside uma comunidade grega considerável, que se localiza a principal base militar do Azov.

As tropas russas, principalmente os chechenos de Kadyrov, vêem nos neonazis do Azov um dos seus principais alvos, e não olham a meios para os matar. O comando russo deixou claro que qualquer militante da unidade neonazi não será poupado, mesmo que se renda. Serão executados no local, o que perfaz crime de guerra. Pouco depois de a invasão começar, circularam vídeos no Telegram de chechenos a dizer que iam caçar cada um dos militares do Azov, que era a sua jihad, enquanto os do Azov partilharam vídeos a molhar balas em banha de porco – os chechenos são muçulmanos.

“A extrema-direita é também mais vocal na sua intenção de lutar ainda mais duramente que os outros ucranianos”, explicou à Newsweek Brunson. Isto porque a tal “desnazificação” de Putin faz com que, para eles, seja mesmo um combate pela vida - e qualquer cedência negocial face aos russos não será por eles bem acolhida.

As tropas do Azov fora de Mariupol, principalmente as de Kiev e Kharkiv, vão reforçar-se com a chegada de milhares de combatentes estrangeiros. E o ministério da Defesa russo já deixou claro que os combatentes ocidentais que sejam capturados não serão considerados combatentes, mas sim mercenários, não tendo direito às proteções concedidas pelas Convenções de Genebra aos prisioneiros de guerra.

“Nenhum dos mercenários que o Ocidente está a enviar para a Ucrânia para lutar pelo regime nacionalista vai beneficiar do direito dos combatentes sob a lei internacional humanitária”, disse o ministério russo em comunicado, citado pela agência TASS.

EXTREMA-DIREITA RUSSA MOBILIZA-SE

Enquanto faz estas ameaças, a Rússia também tem dado novos passos para fortalecer as suas fileiras com mercenários. Desde o início da invasão russa que mercenários do Grupo Wagner, co-fundado por Valeryevich Utkin, neonazi condecorado pelo presidente russo, e considerado o braço militar não oficial do Kremlin, têm estado presentes na guerra. Fizeram até operações para assassinar o presidente ucraniano, mas agora a Rússia deverá enviar mais mil mercenários, segundo a CNN norte-americana.

Além destes mercenários, Vladimir Putin tem contado com o apoio da Guarda Nacional chechena liderada por Ramzan Kadyrov, responsável por crimes de guerra e contra os direitos humanos na Chechénia. Desde o início do conflito que participam nas operações militares e, poucas horas depois da invasão começar, mais de 12 mil chechenos começaram a dirigir-se para território ucraniano.

Também há relatos de que a Rússia estará a recrutar sírios com experiência em combate urbano para a guerra na Ucrânia, de acordo com o Wall Street Journal. O jornal norte-americano cita quatro fontes do governo dos Estados Unidos. O site Al-Monitor, que se dedica ao Médio Oriente, também relata esforços de recrutamentos por russos na Síria. O dedo está a ser apontado ao Grupo Wagner.

“Ambas as fontes confirmam que listas com potenciais recrutas estão a ser compiladas para serem apresentadas às forças russas estacionadas na Síria para aprovação, com a intenção de serem deslocados para a Ucrânia”, lê-se num relatório da organização da sociedade civil Syrians For Truth and Justice, citado pelo Al-Monitor. O Grupo Wagner também está a recrutar através do Telegram, diz o Counter Extremism Project. 

Não é a única fonte a que Putin pode ir buscar combatentes. Apesar de a guerra estar a fazer com que milhares de pessoas protestem contra a invasão, o circuito de extrema-direita está a mobilizar-se apropriando-se do “Z” das colunas militares russas. O sentimento de isolamento russo, apresentado internamente pela comunicação social controlada pelo Kremlin como um ataque injustificado por parte do Ocidente, pode ser um forte catalisador para que elementos de grupos de extrema-direita se dirijam para a Ucrânia, à semelhança do que aconteceu desde 2014.

O sentimento de humilhação (e ameaça) já no passado deu um novo ímpeto à extrema-direita russa. O fim da União Soviética e a sentida humilhação dos russos pelo Ocidente foi uma grande força motriz para o ressurgir do nacionalismo russo. A economia ficou de rastos com políticas de choque neoliberais, o desemprego e a fome dispararam, os oligarcas tornaram-se os novos senhores. A NATO aproveitou-se da fraqueza russa e começou a expandir-se a partir de 1997 com a adesão de Estados que no passado fizeram parte do Pacto de Varsóvia ou da União Soviética. 

A autoridade do Estado russo tremia na década de 1990 e a extrema-direita usou o caos e a humilhação sentida para se fortalecer, e estabelecer ligações internacionais com congéneres ocidentais - Alexander Dugin foi essencial neste processo. O principal ideólogo da extrema-direita russa criou e propagou pela Europa a orientação ideológica do euroasianismo: a Rússia é um poder central do continente euroasiático que se opõe ao mundo atlântico liderado pelos EUA e seus aliados. A destruição da NATO e da UE são dois pilares.

Não é apenas um conceito geopolítico, é também de valores: a etnia como valor primário, a tradição (conservadorismo) como trave mestra. E Putin tem-los usado nos últimos anos nos seus vários discursos, olhe-se para a forma como fala da Ucrânia não existente, um território subserviente à Rússia.

Este conceito de euroasianismo permitiu unificar a extrema-direita da Europa de leste, e até certos grupos na Europa Ocidental, numa mesma orientação ideológica entre a extrema-direita. Na Rússia, este campo político ganhou força e corria-se o risco de o movimento ser uma ameaça à ordem interna do Estado russo. Em 1999, Putin chegou a primeiro-ministro e, em 2000, tornou-se presidente. O novo czar quis controlar o Estado russo, reposicionar a Rússia como grande potência, e a ordem interna foi reposta com mão de ferro, à esquerda e à direita.

Putin avançou com uma estratégia autoritária: os grupos de extrema-direita que se submeteram ficaram descansados e passaram a ser apoiados; os que resistiram foram presos ou forçados ao exílio. O politólogo russo Anton Shekhovtsov chamou-lhe "nacionalismo controlado".

As revoluções coloridas na Geórgia (2003) e na Ucrânia (2004 e 2014) puseram em causa a histórica influência russa e o Kremlin passou a apoiar movimentos ultranacionalistas para fragilizar os novos regimes. O discurso da identidade eslava como um só povo tornou-se pedra basilar dos desejos expansionistas do Kremlin. 

Depois veio a anexação da Crimeia em 2014, e Putin voltou a usar argumentos étnicos inspirados nas ideias de Dugin, seu conselheiro. A extrema-direita europeia foi apanhada de surpresa e dividiu-se: uns apoiaram a anexação, outros foram contra. Houve um cisma entre a extrema-direita, aprofundando-se ainda mais depois com a guerra do leste da Ucrânia.

Putin exigiu então aos nacionalistas russos total lealdade ao Kremlin, e quem se subjugasse teria de o provar: ir combater para o Donbass, auxiliados pela secreta russa FSB. Os grupos que não se subjugaram foram banidos e os seus líderes presos, e se voltassem atrás, poderiam sair da prisão para ir combater no Donbass. A extrema-direita russa é, desde que Putin chegou ao poder, usada como força de choque e desestabilização, com o FSB a desempenhar um papel de controleiro. Daí que sejam vários os grupos que estiveram no Donbass – um deles foi o Russian Imperial Movement. E mais se poderão seguir, prolongando e intensificando a guerra.

Uma guerra total dizimando cidades inteiras e levada a cabo com uma parcela importante de milícias de um lado e do outro é receita para crimes de guerra e violações dos direitos humanos. A desumanização será tal que o direito internacional humanitário tornar-se-á letra-morta. As consequências são mais que óbvias: milhares de vidas, principalmente civis, perdidas e um fluxo constante de refugiados. Um país totalmente destruído.  

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