quinta-feira, 14 de abril de 2022

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

O menino que Regressou do Mundo dos Mortos

Seke La Bindo

Limbundi fez dez anos e os pais levaram-no para a circuncisão. Na aldeia de Mussamba, abraçada pelo rio Panda, nas terras férteis do Kuvango, os rapazes estavam ansiosos pela dia do vamba. Mas antes tinham que se esconder no mato até que as feridas curassem e os tambores fizessem ecoar até ao infinito a alegria de todos. Mamã Intumba viu partir o seu filho com nostalgia. Quando regressasse, era homem.

A tradição manda que enquanto as feridas da circuncisão estiverem abertas, ninguém pode ver os rapazes. E era Lingembwe, o pai de Limbundi, que lhe levava todos os dias a comida. Mais nenhuns olhos penetravam naquele esconderijo onde a noite era muito escura e povoada de sons assustadores.

Quando Lingembwe regressava a casa, Intumba perguntava ansiosa pelo filho. E o pai apenas dizia:

 - Ele está bem. 

Nada mais podia dizer porque era expressamente proibido contar às mulheres o que se passava no vamba.

As feridas de Limbundi infectaram e o menino morreu. Um dia o pai chegou com a comida esmeradamente preparada por Intumba, mas o corpo do filho estava frio e a boca aberta de espanto.

- Como está o nosso Limbundi? – perguntou Intumba quando Lingembwe chegou a casa:

- Ele está muito bem. E assim foi respondendo até ao grande dia em que os rapazes regressaram do seu esconderijo e foram recebidos com as danças de tchinganjis. Mas Limbundi não vinha no grupo dos que eram os novos homens da aldeia. Só então se soube da sua morte.

Intumba chorava a morte do filho enquanto dançava.  

- Tyipupwila, lelo tyipupwila/Mbila, mbila mo/ Tyipupwila, tyiswata tyili ku ntsenge. Dança, hoje dança/Entra, entra na dança/Dança, hoje o que é venenoso está debaixo da cama.

Passados alguns dias os pais de Limbundi começaram a preparar comidas e bebidas para a aldeia honrar o menino morto. Intumba mandou a filha mais velha ao rio Panda para acarretar água. A menina regressou a casa sem nada. Porque em cima de uma grande árvore o pássaro Kantyityia cantou assim:

- Minha irmã, este pássaro que vês é o teu irmão Limbundi, aquele que morreu no vamba.

Intumba não acreditou e mandou a segunda filha acarretar água. Quando ela chegou ao rio Panda o pássaro Kantyityia voltou a cantar:

- Minha irmã, este pássaro que vês é o teu irmão Limbundi, aquele que morreu no vamba. A menina ficou muito assustada, abandonou o moringue e fugiu para casa, contando à mãe o que ouviu no rio.

Intumba decidiu ir à água, não acreditando nas filhas. Mas quando chegou ao rio o pássaro Kantyityia soltou trinados com a mesma cantilena:

- Minha mãe, este pássaro que vês é o teu filho Limbundi, aquele que morreu no vamba. Vai para casa, faz a comida, prepara as bebidas que eu vou à festa.

Intumba correu para casa com o moringue cheio de água, preparou muita comida e bebida. Depois chamou o povo da aldeia. Quando a dança começou, o pássaro Kantyityia voou por cima do terreiro, poisou no centro e transformou-se em Limbundi. A festa ficou ainda mais animada e ainda hoje todos dançam na aldeia de Mussamba para homenagear o menino que regressou do mundo dos mortos.

Da Mayombola só regressam os que amigam com a Eternidade.

Leiam esta versão sobre o mesmo tema adaptada do livro O Mundo Cultural dos Ngangelas editado pela Diocese de Menongue:

Ngongo era um rapaz de dez anos que vivia cos os pais e a irmã Mutango, na aldeia de Lyapeka. Chegou o dia da circuncisão e depois da intervenção do curandeiro ele partiu para o mato com os outros rapazes da sua idade, para curarem as suas feridas sem que fossem vistos pelas mães, como consta nos mandamentos dos antepassados. 

Enquanto Ngongo estava no mato, a mãe fazia-lhe a comida mas era o pai que a levava. Quando ele regressava ao quimbo a mulher perguntava ao marido pelo rapaz e ele respondia sempre:

- Está bem de saúde e engorda bem com a tua comida.

Nada mais podia dizer porque era expressamente proibido contar às mulheres o que se passava no Vamba.

A ferida de Ngongo infectou e ele acabou por morrer. Quando chegou o dia dos rapazes regressarem a Lyapeka, faltava o rapaz. Tinha sido enterrado no mato, junto à nascente do rio Camatanga. A mãe ia morrendo de tristeza quando viu que não se encontrava entre os outros. Só então o pai pôde contar o que se passou no Vamba. A festa da iniciação deu lugar à tristeza da morte.

Depois de chorar amargamente a perda de Ngongo, a família resolveu fazer uma festa em sua honra. Prepararam muitas bebidas e comida em abundância. A meio dos preparativos faltou água na cozinha e a mãe mandou Mutango à nascente do rio Camatanga. 

Quando a menina lá chegou, encontrou um pássaro de asas gigantescas que cantava assim:

- Mutango, minha irmã/estas asas que vês/este canto que ouves/são do teu irmão Ngongo/o que morreu no Vamba/cuja notícia da morte foi guarda/para serem protegidos os nossos segredos.

Mutango ficou muito assustada e não encheu a moringa de água. Correu para casa e contou à mãe o canto do pássaro com asas gigantes.

A mãe disse a Mutango que não devia mentir e mandou-a de novo à nascente. 

A menina, temerosa mas curiosa, voltou ao rio e lá estava o pássaro com suas asas abertas, tapando os raios de sol. Saiu do poleiro da árvore e poisou na margem do rio a seu lado, soltando o mesmo canto.

Mutango ficou ainda mais assustada e correu para casa com a moringa vazia. O seu coração batia descompassadamente porque a voz da ave era igual à do seu irmão Ngongo. Enquanto caminhava em direcção ao quimbo recordou as palavras de sua avó sobre o destino dos mortos:

- Os que morrem antes do tempo tornam-se pássaros de arribação e voam pelo mundo à procura dos anos perdidos.

O seu irmão Ngongo morreu no Vamba, quando todos esperavam que regressasse feito homem. Aquele pássaro de asas gigantes só podia ser ele, procurando desesperadamente o tempo que perdeu no mato.

Mutango contou à mãe que o pássaro de asas gigantes poisou mesmo ao seu lado e o canto que soava, tinha o timbre da voz de Ngongo.

A mãe resolveu ir à nascente do rio Camatanga ver se existia esse pássaro de asas gigantes e voz humana que sua filha viu duas vezes. Quando chegou ao rio, do alto de uma árvore veio o canto do pássaro:

 - Kahalu, minha mãe/estas asas que vês/este canto que ouves/são do teu filho Ngongo/o que morreu no Vamba/cuja notícia da morte foi guarda/para serem protegidos os nossos segredos.

Depois o pássaro pediu a Kahalu que regressasse a casa, preparasse a festa com abundância de comida e bebida, porque ele havia de aparecer no meio da alegria. A mãe de Ngongo encheu a moringa de água e voltou apressadamente ao quimbo, para concluir os preparativos da festa. 

Quando a alegria estava no auge, o pássaro de asas gigantes poisou suavemente no quintal e transformou-se em Ngongo, o rapaz que morreu no Vamba. Desde então, aquela família tornou-se a mais feliz das terras do Cuchi.

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

Fome Pede Esmola a Quem Fez Mal

Seke La Bindo

Nas terras de Luacano existia uma aldeia que nasceu e cresceu na margem de um lago. Os camponeses tinham abundantes colheitas e as crianças cresciam felizes e sem doenças. Nakumbi foi bela menina, dançou nas festas, teve filhos e cultivou lavras. Os dias faziam anos e os anos fizeram dela uma mulher velha e só. É a quem vive a solidão da velhice que os adivinhos atribuem os mais mortíferos feitiços. Poucos ousam conhecer a sua sabedoria. 

Nakumbi vivia numa velha casa, entre a aldeia e a lagoa grande. Algumas crianças venciam o medo e procuravam-na. Para todos tinha um sorriso e uma história dos tempos que nunca mais voltam e os jovens desconhecem. Os encontros com os visitantes começavam sempre com uma pergunta. E cada um respondia o que sentia.

Um dia a grande lagoa estava encoberta por um manto espeço de cacimbo e as crianças regressavam à aldeia. Mas decidiram visitar Nakumbi. Depois de se sentarem à sua volta no terreiro, ela disse:

- Zàla kuyíxi mána yigwíta yóze natúkile. A fome não tem juízo, vai pedir comida a quem fez mal! O que é?

Um menino deu a sua sentença:

- A fome é má conselheira.

À volta de Nakumbi fez-se silêncio. Só se ouviam as formigas roer as folhas que cobriam o chão. Um menino pensativo pediu licença para falar e disse:

- A barriga manda na cabeça e nas pernas!

Nakumbi sorriu e fez uma carícia na cabeça do juiz. Além de não ter vergonha e pedir a quem faz mal, a fome tem mais força que a cabeça e as pernas. É ela que comanda a deslealdade e a traição.

As crianças olhavam umas para as outras esperando pela próxima sentença. Mas ninguém quebrou o silêncio. Então Nakumbi desafiou o mais pequeno do grupo. A fome não tem juízo, é má conselheira e manda na cabeça e nas pernas. Que mais tem a fome para nos surpreender?

O menino interpelado disse timidamente:

- A fome é uma senhora feia que faz doer!

Sim, a fome leva muita dor a casa dos pobres e mata crianças antes de verem nascer o Sol nas lavras da abundância. Mata a alegria e o sonho. A fome é a única rainha que podemos destronar, matando-a sem remorsos nem temor. 

Ditas estas palavras, Nakumbi sentou o menino mais pequeno no colo e disse:

- Há mais uma coisa que todos devem saber. A barriga de esfomeado não houve ninguém. Nem as minhas histórias, nem os meus cânticos. A fome nunca gostou da festa. 

Ditas estas palavras reclinou a cabeça e começou a dormitar.

O cacimbo levantou, os pássaros deixaram os seus poleiros nas árvores e rasgaram os ares com voos elegantes, a gunga regressou à chana para comer o capim pletórico de verde. 

Os meninos da aldeia ficaram a conhecer a geografia da fome, pela boca de Nakumbi, a que vivia há tantos anos que ainda se lembrava do primeiro vagido de criança nas terras do Dilolo.

Zàla kuyíxi mána yigwíta yóze natúkile! A fome não tem juízo, vai pedir comida a quem fez mal.

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

Os Dois Irmãos e o Sortilégio do Rabo de Peixe

Seke La Bindo* 

Mukongo e Mukuve eram dois irmãos muito unidos, que conheciam todas as rotas da caça e do mel. Mukongo, o mais velho, quando seguia à frente na pista das cabras, encontrava sempre uma cobra ou mesmo a onça traiçoeira. A caçada era um fracasso. Mukuve tinha mais sorte. Quando comandava as caçadas, encontrava sempre uma jibóia ou um cágado, bons sinais para o sucesso. E a partir daí, os dois irmãos caçavam o suficiente para alimentar toda a aldeia.

O irmão mais novo apanhava mel sempre que seguia na vanguarda. O irmão mais velho limitava-se a beber vingundu feito do mel recolhido por Mukuve. Mukongo vivia infeliz com a sua má sorte. E cantava palavras ainda mais tristes.

Mukuve perguntava ao irmão:

- Porque estás tão triste, meu irmão, se somos os melhores caçadores da aldeia e vivemos na abundância?

E Mukongo respondia:

- Ketye ketye lya kuyola! Quem canta seus males espanta.

E o irmão, que andava sempre com um sorriso rasgado, replicava:

- Livutuvutu ku muono! O rosto triste dá tristeza à vida!

Um dia Mukongo disse ao irmão que deviam ir às terras do Rivungo procurar noivas, porque estavam na idade de constituir família. Mukuve concordou e partiram à procura de uma companheira. Já levavam dez dias de jornada quando encontraram uma encruzilhada. Mukongo propôs que seguissem pela esquerda. Mas Mukuve disse que o seu instinto de caçador o aconselhava a tomarem o caminho da direita. 

Mukongo disse ao irmão:

- Então a partir daqui vamos separar-nos. Tu segues pela direita e eu pela esquerda.

Naquele momento os dois irmãos separaram-se. Mukuve andou mais um dia e encontrou uma aldeia muito rica. Soube que a filha do soba também estava em idade casadoira. E ele foi conhecer a princesa. Era tão bela e educada que o caçador a pediu imediatamente em casamento. O soba aceitou o pedido e depois das festas, o casal partiu para a aldeia de Mukuve.

Mukongo andou, andou, mas no seu caminho não existia uma única aldeia. Na margem do rio Kuvango encontrou uma velha que tinha na mão um grande peixe. O homem triste perguntou:

- Há por aqui alguma aldeia onde eu possa encontrar uma noiva?

A velha pescadora disse que a única mulher naquelas paragens era ela, mas não podia casar porque noivou com o tempo. Quando viu a tristeza no rosto de Mukongo acrescentou:

- Para não ficares triste, ofereço-te uma barbatana do peixe que acabo de pescar. E de seguida cortou o rabo do peixe e deu-o ao infeliz Mukongo. 

Cada vez mais triste pela sua má sorte, regressou à aldeia. Depois de muito andar, encontrou o irmão, com a sua bela mulher. Ficou feliz pelo sucesso de Mukuve e juntos partiram para casa. 

Quando entraram na aldeia, os pais receberam-nos em festa. A mulher de Mukuve era mesmo muito bonita e o seu dote mais rico do que toda a riqueza da aldeia junta. Ao mesmo tempo ficaram tristes porque o filho mais velho regressava sem mulher. O pai perguntou a Mukongo pela sua noiva. Ele mostrou o rabo do peixe e disse:

- Esta é a minha mulher. Não maldigo a minha sorte. Cada qual tem o que merece.

Naquele momento, do rabo do peixe brotou uma luz intensa que iluminou o mundo. À frente de todos surgiu uma belíssima jovem, com os mais extraordinários adornos nos cabelos e pulseiras de cobre no pescoço, pulsos e tornozelos. Com ela estavam rebanhos de cabras e bois. Carregadores transportavam sacos de milho e massango, carne seca e cabaças de vingundu para a festa. Ao lado da casa dos pais surgiu do nada um palácio resplandecente, onde os criados cantavam em honra dos noivos e elogiavam os feitos de Mukongo.

A bela princesa deu a mão ao marido e lado a lado entraram no palácio. Os pastores foram guardar os rebanhos nos currais e os carregadores puseram os cereais no celeiro.

Mukuve, com um sorriso feliz disse ao irmão:

- Eu sempre te disse que és especial. 

Os dois irmãos abraçaram-se e desde então, quando iam à caça, Mukongo encontrava sempre um cágado, prenúncio de abundância e felicidade.

Kvyambulula kovihu! O que se conta é um nunca mais acabar.

*Texto original adaptado de um conto do livro O Mundo Cultural dos Ganguelas 

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