terça-feira, 6 de dezembro de 2022

UCRÂNIA: A HISTÓRIA QUE JUSTIFICA A GUERRA

Nova escalada acende risco de conflito fora de controle e deslize nuclear. Exame dos fatos revela: propaganda ocidental é falsa. Rússia esteve sempre aberta a acordo, mas Putin caiu em cilada. É hora de um movimento global pela paz

David Mandel* | Outras Palavras | Tradução: Maurício Ayer | # Publicado em português do Brasil

A natureza complexa da guerra na Ucrânia e, especialmente, da questão da responsabilidade a ser atribuída às partes envolvidas dificultou a mobilização de um movimento antiguerra vigoroso. Uma parte da esquerda, aliás, se opõe a um cessar-fogo imediato e à retomada das negociações, interrompidas abruptamente no final de março. O objetivo deste artigo é lançar luz adicional sobre a guerra com vistas a ajudar os oponentes do imperialismo a adotar uma posição esclarecida.

Tendo em vista as divisões internas da esquerda, sinto que é necessário começar com algumas palavras sobre mim. Por muitos anos, dei aulas sobre a política da União Soviética e dos estados que surgiram dela. Como sindicalista e socialista, participei ativamente da educação trabalhista na Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia, desde o momento em que tal atividade se tornou politicamente possível. Essa educação é de inspiração socialista, e definimos o socialismo como humanismo consistente. Assim, opus-me ativamente aos regimes russo e ucraniano, ambos profundamente hostis à classe trabalhadora.

A condição dos trabalhadores na Ucrânia independente não tem sido melhor do que a de seus correlativos na Rússia. Em certas dimensões, é ainda pior. Desde a independência, uma sucessão de governos predatórios transformou a Ucrânia de uma região outrora relativamente próspera da União Soviética no estado mais pobre da Europa. A população da Ucrânia nos últimos 30 anos caiu de 52 para 44 milhões (antes da guerra atual). Desses 44 milhões, um bom número está trabalhando na Rússia.

É verdade que na Ucrânia, ao contrário da Rússia, as eleições podem mudar o governo. Mas elas não podem mudar a natureza antitrabalhadora da política do Estado. Um violento golpe em fevereiro de 2014, executado por forças ultranacionalistas (neofascistas) e ativamente apoiado pelo governo dos EUA, derrubou um presidente eleito, embora corrupto, bloqueando um acordo alcançado no dia anterior com a oposição, sob o auspícios da França, Alemanha e Polônia, para formar um governo de coalizão e promover novas eleições.

O golpe e as primeiras medidas do novo regime, em particular uma lei que eliminava o russo, língua cotidiana de pelo menos metade da população, como uma das duas línguas oficiais, provocaram resistência e, finalmente, confronto armado no leste do país, em regiões onde os falantes de russo predominam. Essa oposição foi reprimida em todos os lugares, às vezes por meios violentos e com perda de vidas, como ocorreu na cidade de Odessa em maio de 2014, exceto no Donbass. Ali, estourou uma guerra civil, com a intervenção russa do lado dos insurgentes e a intervenção da OTAN do lado de Kiev. 

Essa importante dimensão da guerra não faz parte da narrativa apresentada pela OTAN, pelo governo ucraniano ou pela grande mídia ocidental, que preferiu falar em “invasão russa”, já em 2014. Mas o que transformou um movimento de protesto contra o golpe de Estado em uma revolta armada foi a recusa do novo regime até mesmo em conversar com os dissidentes de Donbass. Em vez de negociar, Kiev lançou imediatamente uma “operação antiterrorista” contra a região, enviando unidades neofascistas da recém-formada Guarda Nacional, uma vez que o exército regular se mostrou pouco confiável aos olhos do governo. (Se a Rússia quisesse, de fato, tomar a Ucrânia, poderia tê-lo feito facilmente na época – a Ucrânia sequer tinha um exército efetivo.) A Rússia, imediatamente declarada invasora por Kiev, interveio diretamente com as forças armadas apenas vários meses depois, para evitar uma derrota iminente dos insurgentes.

Como se analisa e avalia esta guerra, depende do ponto de partida. O governo da Ucrânia, porta-vozes da OTAN, nossa grande mídia – mas também algumas pessoas que se identificam como socialistas – normalmente começam com a invasão da Rússia em fevereiro passado. A imagem que emerge é a de um Estado grande e bem armado que invadiu um estado inocente menor que está defendendo corajosamente sua soberania. 

Quanto aos motivos do invasor, o público da OTAN foi informado apenas de que a invasão não foi provocada. Em uma campanha de propaganda sem precedentes na memória recente, o qualificador “não provocada” tornou-se obrigatório para noticiar a invasão. (Pode-se notar, de passagem, a ausência dessa expressão nas reportagens sobre as invasões dos EUA e da OTAN no Vietnã, Iraque, Afeganistão, Sérvia, Líbia…) A expressão “não provocada” serviu, assim, para bloquear qualquer discussão séria sobre os motivos do invasor, além de seu suposto apetite imperialista. 

Bastava levantar a questão da provocação para merecer a acusação de ser apologista do agressor. E uma parte da esquerda também participou disso, normalmente limitando sua explicação da invasão a algumas passagens selecionadas dos discursos de Putin, como sua famosa observação de que o fim da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século. A frase que se seguiu raramente foi mencionada: “Quem deseja sua restauração não tem cérebro”. 

Acima de tudo, evita-se um exame sério das relações entre a Rússia e a Ucrânia nas três décadas anteriores à invasão, um exame que pudesse identificar a existência dos tais interesses imperialistas atribuídos a Putin. Mas por que desperdiçar energia, quando tudo já está claro: um grande país com armas nucleares invadiu um menor sem armas nucleares. Certamente isso é suficiente para merecer apoio incondicional ao regime ucraniano? Por que se preocupar em analisar a natureza de classe desse regime ou os motivos que levam a OTAN a apoiá-lo e supri-lo?

Outro argumento ouvido às vezes é que a Rússia autocrática teme a atração da democracia da Ucrânia para o povo da Rússia, com quem a Ucrânia compartilha uma longa fronteira. Na realidade, a triste experiência dos trabalhadores da Ucrânia com sua “democracia” é um dos argumentos mais fortes de Putin contra seus oponentes liberais e socialistas. 

Putin, de fato, apresentou seus objetivos quando lançou a invasão: a neutralidade geopolítica da Ucrânia, sua desmilitarização e sua “desnazificação”. Se o primeiro objetivo é claro, os outros dois requerem alguma explicação. A “desmilitarização” expressava a oposição de Putin ao armamento e treinamento do exército ucraniano pela OTAN, que estava, de fato, sendo integrado às forças armadas da aliança, um processo que começou logo após o golpe de 2014.

Quanto à “desnazificação”, significou a eliminação da influência política dos ultranacionalistas (neofascistas) no governo e sobretudo nos seus aparelhos de violência (exército, polícia política e regular), bem como nas questões linguística e cultural. A própria essência da ideologia dos “ultras” é o ódio pela Rússia e contra tudo que é russo. E sua influência dentro do aparato do Estado não parou de crescer, especialmente desde o golpe de 2014.

O qualificador “não provocado” associado à palavra “invasão” serve especialmente para ocultar o fato de que uma declaração clara do presidente dos EUA de que a Ucrânia não se tornaria membro da OTAN provavelmente teria evitado esta guerra. A expansão da OTAN na Ucrânia foi a principal questão levantada por Moscou nos meses anteriores às invasões. Durante esse tempo, Putin propôs regularmente negociar um acordo sobre a não expansão da OTAN na Ucrânia.

Em dezembro de 2012, apenas algumas semanas antes da invasão, Moscou voltou a propor formalmente aos EUA e à OTAN o início imediato de negociações com vistas à conclusão de um tratado europeu de segurança. A proposta foi ignorada, assim como as anteriores.

É possível, claro, que Putin estivesse mentindo sobre seu desejo de um acordo e que estivesse apenas procurando uma desculpa para engolir a Ucrânia. Mas por que, então, não testar essa hipótese, se havia uma chance, mesmo pequena, de evitar uma guerra que o governo americano vinha prevendo há meses?

Vale observar que a CIA, por sua vez, estabeleceu que a decisão de invadir foi tomada por Moscou apenas alguns dias antes da emissão da ordem. Isso indicava que a guerra poderia ter sido evitada, se a OTAN tivesse aceitado a proposta da Rússia de iniciar as negociações.

A recusa dos EUA em responder às preocupações de segurança de Moscou nos meses e anos anteriores à invasão, apesar de uma série de advertências claras de altos funcionários estadunidenses – incluindo Willian Burns, ex-embaixador em Moscou e atual chefe da CIA –, sugere que o governo dos EUA de fato queria esta guerra.  De qualquer forma, os EUA, com o apoio entusiástico do Reino Unido e o acordo dos outros membros da OTAN, não fizeram absolutamente nada desde o início da guerra para promover um acordo negociado que poria fim à destruição de vidas e da infraestrutura socioeconômica. 

No caso, aconteceu o oposto: Washington bloqueou qualquer fim negociado para a guerra. Veja, por exemplo, as “sanções infernais” impostas à Rússia. Por que não foram acompanhadas de condições para sua suspensão, se o objetivo era impedir a invasão?

Outro objetivo, nunca admitido, é consolidar o domínio dos EUA sobre a política externa da Europa. Desde o fim da URSS em 1991, os EUA têm atuado sistematicamente para excluir a Rússia de qualquer estrutura de segurança europeia que pudesse substituir a OTAN, aliança nascida da guerra fria com a União Soviética. E, como se poderia prever, essa política provocou a hostilidade da Rússia, mesmo antes de Putin chegar ao poder e numa época em que conselheiros estadunidenses ocupavam cargos-chave na administração russa. A hostilidade da Rússia, por sua vez, serviu como uma justificativa conveniente para a expansão contínua da OTAN. E assim, não demorou muito para a OTAN declarar a Rússia como uma ameaça existencial à segurança de seus membros. O círculo foi fechado.

Antes de continuar, devo esclarecer uma coisa: reconhecer as preocupações de segurança da Rússia e o papel de Washington em provocar e prolongar a guerra atual não significa a exoneração de Moscou de sua responsabilidade pela perda de vidas e destruição material causada pela guerra atual. A Carta da ONU reconhece apenas duas exceções à proibição do recurso à força militar por um Estado contra outro: quando o uso da força é autorizado pelo Conselho de Segurança ou quando um Estado pode de modo fundamentado alegar legítima defesa.

A expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia, o armamento e treinamento do exército ucraniano, a partir do golpe de 2014, a revogação por Washington de uma série de tratados de limitação de armas nucleares e o posicionamento de base de lançamento de mísseis na Polônia e na Romênia, a apenas 5 a 7 minutos de voo de Moscou – são fatos que Moscou pode, a meu ver, legitimamente considerar como sérias ameaças à segurança da Rússia. 

Mas a ameaça não foi imediata, e por isso não justificou a invasão. Moscou não havia esgotado todas as alternativas. Mesmo do seu próprio ponto de vista, a invasão agravou sua situação de segurança ao solidificar a OTAN sob a liderança dos Estados Unidos e, principalmente, ao permitir que Washington consolidasse o apoio da França e da Alemanha à política agressiva da OTAN em relação à Rússia. Esses dois membros da OTAN eram os que mais se opunham à sua expansão, antes da invasão. Agora a Suécia e a Finlândia, anteriormente “neutras” (embora, efetivamente, a caminho da integração de facto dos seus exércitos nas forças da OTAN), decidiram juntar-se à aliança.

Nos dias que antecederam a invasão, a Rússia afirmou que a Ucrânia planejava invadir as regiões dissidentes. Na véspera da invasão, após abster-se de fazê-lo durante os oito anos de guerra civil, Moscou finalmente reconheceu a independência das duas regiões de Donbass e assinou um tratado de defesa mútua com elas. Isso permitiria a Moscou alegar que estava invadindo legitimamente em resposta ao pedido de aliados, vítimas de agressão.

A validade da alegação de que Kiev estava se preparando para atacar não é clara, embora nos meses anteriores à invasão da Rússia, Kiev tenha declarado abertamente sua intenção de retomar todo o seu território, incluindo a Crimeia, pela força armada. E havia concentrado 120 mil soldados, metade de seu exército, na fronteira da dissidente região de Donbass. Nos quatro dias anteriores à invasão, os 700 observadores da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) documentaram uma enorme intensificação dos bombardeios, a maioria do lado de Kiev da linha de demarcação, ou seja, das forças ucranianas. Nos oito anos anteriores à invasão, 18 mil vidas, das quais 1.304 civis, foram perdidas, a grande maioria do lado insurgente.

Como foi observado, a CIA confirma que a decisão de invadir foi tomada por Moscou em fevereiro, apenas alguns dias antes de ela se efetivar. Isso contradiz as repetidas afirmações do governo dos EUA nos meses anteriores de que uma invasão era iminente. 

Do meu ponto de vista, quaisquer que fossem as intenções de Kiev antes da invasão, Moscou deveria ter esperado antes de lançar o ataque com seu exército. Até que Kiev atacasse, poderia ter continuado a buscar o apoio da França e da Alemanha para um tratado de segurança, já que esses dois Estados eram os que mais se opunham à expansão da OTAN. Como tal, a invasão aparentemente empurrou até mesmo uma parte da população da Ucrânia que até então simpatizava com a Rússia para os braços dos ultranacionalistas. 

Uma vez que a guerra começou, a posição humanista é exigir um fim rápido e negociado para minimizar a perda de vidas e de infraestrutura socioeconômica. Pois depois de começar uma guerra, o ato mais repreensível é mantê-la quando não há esperança de que a continuação da luta possa mudar o seu resultado.

No entanto, essa é exatamente a política de Kiev e da OTAN, cujo objetivo, nas palavras de Biden, é “enfraquecer a Rússia”. Incrivelmente, essa recusa da diplomacia é apoiada até por certos círculos que se identificam com a esquerda socialista.

Deve-se entender que, apesar da falsa imagem do curso da guerra para a Ucrânia que foi apresentada pelos porta-vozes da OTAN e pela mídia servil, a realidade é que a continuação da luta só pode aumentar o sofrimento dos trabalhadores da Ucrânia, sem esperança que isso melhorará o resultado da guerra para eles. O oposto é verdadeiro.

A restauração da integridade territorial da Ucrânia, o objetivo declarado de Kyiv que é apoiado pela OTAN, é certamente legítimo (pelo menos na medida em que não negar o direito à autodeterminação cultural ou territorial de grupos étnicos e linguísticos não ucranianos). Mas esse objetivo, declarado agora por Kiev, é ilusório. Um acordo é, portanto, inevitável. Insistir em prosseguir a guerra até que todo o território perdido seja recuperado é, de fato, tão criminoso, se não mais criminoso, quanto a própria invasão. Além disso, a busca obstinada desse objetivo quimérico amplia o risco de um confronto direto com a OTAN e a guerra nuclear. 

As negociações entre a Rússia e a Ucrânia – que foram amplamente ignoradas pela mídia servil – de fato ocorreram nas primeiras semanas da guerra e pareciam estar progredindo bem. Segundo relatos, a Ucrânia aceitou um status neutro, não alinhado e não nuclear, com segurança garantida, em caso de ataque, pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia, por sua vez, abandonou sua exigência de “desnazificação” e a Ucrânia prometeu restaurar o status de língua oficial do russo, que havia sido banida da vida pública.

Houve também algum movimento em direção a um acordo nas questões espinhosas relativas ao status do Donbass. Quanto à Crimeia, que a Rússia claramente nunca devolverá, foi acordado adiar uma resolução final por 15 anos.

Após cinco semanas de guerra, Kiev e Moscou expressavam otimismo quanto a um cessar-fogo negociado. Mas, naquele preciso momento, o presidente dos Estados Unidos encerrou sua visita à Europa com um discurso marcante. Depois de afirmar que Putin queria recriar um império, declarou: “Pelo amor de Deus, esse homem não pode permanecer no poder!” Alguns dias depois, o então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, apareceu repentinamente em Kiev. Um assessor de Zelensky disse à mídia que ele trouxe uma mensagem simples: “Não assine um acordo com Putin, que é um criminoso de guerra”.

Como que por coincidência, isso aconteceu logo após a retirada das tropas russas de Kiev, o que foi apresentado pela mídia ocidental – erroneamente, a meu ver – como um sinal de que a Ucrânia poderia de fato vencer a guerra. E ao mesmo tempo, também como que por coincidência, Kiev anunciou a descoberta de crimes de guerra atribuídos às forças russas na aldeia de Bucha. Isso pôs fim às negociações, até hoje.

Enquanto Moscou repete regularmente o seu desejo de retomar a diplomacia, Kiev insiste nas suas condições para acabar com a guerra: a devolução de todo o seu território, incluindo a Crimeia. Inclusive colocou Henry Kissinger em sua lista de inimigos da Ucrânia por ele ter pedido um acordo negociado que significaria, pelo menos temporariamente, um retorno ao status quo territorial anterior à invasão e à neutralidade da Ucrânia. Um assessor de Zelensky descreveu essa declaração como uma “punhalada nas costas da Ucrânia”. Alguém comentou que, quando Henry Kissinger se torna a voz da razão, é que a situação é realmente grave.

Devemos lembrar que Zelensky foi eleito presidente em 2019 com uma plataforma de paz, obtendo 73,2% dos votos. Ele imediatamente declarou sua intenção de reiniciar o Acordo de Minsk e que estava preparado para pagar o preço com uma perda de popularidade. Dmitrii Yarosh, o líder neofascista que havia sido nomeado conselheiro do chefe do Estado-Maior do Exército, respondeu em uma entrevista na televisão que não seria a popularidade de Zelensky que sofreria. “Ele vai perder a vida. Ele será enforcado em alguma árvore na Kreschatik [uma rua central de Kiev], se trair a Ucrânia e aqueles que morreram na revolução e na guerra”.

Mas, em outubro de 2019, Zelensky assinou um novo acordo com a Rússia e os dissidentes de Donbass para a remoção de armas pesadas da linha de contato, uma troca de prisioneiros e a concessão de uma medida de autonomia à região – tudo no acordo de Minsk II. E quando os soldados do batalhão neofascista Azov se recusaram se retirar, Zelensky viajou para o Donbass para chamá-los à ordem. Mas grupos de extrema-direita bloquearam a retirada e, em 14 de outubro de 2019, 10 mil manifestantes mascarados, vestidos de preto e carregando tochas, marcharam pelas ruas de Kiev, gritando “Glória à Ucrânia! Sem capitulação!”.

Zelensky finalmente entendeu a mensagem. A partir do golpe de 2014, os neofascistas penetraram cada vez mais nas várias estruturas armadas e outras do Estado (especialmente o exército e as polícias civil e política). Sua ideologia, cujo cerne é um ódio profundo pela Rússia e por tudo que é russo, penetrou em círculos políticos além do setor abertamente neofascista, incluindo aqueles que se declaram liberais.

Há assim uma aliança entre o “deep state” dos EUA, que não esconde o seu objetivo de enfraquecer a Rússia, de lhe impor uma “derrota estratégica”, e os neonazistas ultranacionalistas ucranianos, que exercem uma significativa, talvez decisiva, influência sobre o governo: em outubro passado, Zelensky chegou a assinar um decreto sobre a “impossibilidade” de negociar com Putin – uma fórmula desastrosa para os trabalhadores da Ucrânia e de todo o mundo.

A esquerda canadense deveria exigir que o governo canadense pressione por um cessar-fogo imediato e pelo retorno à mesa de negociações, algo que Moscou tem solicitado continuamente. A reportagem profundamente tendenciosa dos grandes meios de comunicação sobre as “grandes vitórias” do exército ucraniano – quando, na verdade, se trata de retiradas estratégicas da Rússia, realizadas em boa ordem e com o mínimo de perdas, na preparação de uma grande ofensiva com forças consolidadas e aumentadas (considerando que a Rússia fez a invasão em fevereiro com um braço amarrado nas costas) – não pode mudar o fato básico: Kiev não pode vencer a guerra, ou mesmo melhorar sua posição, por meios militares, sem intervenção direta da OTAN, e a ameaça de um confronto nuclear que isso acarretaria. 

A longo prazo, a esquerda deve construir um amplo movimento – como aquele que ajudou a bloquear a participação canadense na guerra do Iraque contra o Iraque ou o posicionamento de mísseis nucleares de médio alcance na Europa na década de 1980 – para exigir que o Canadá deixe a OTAN, que é uma perigosa organização imperialista que ameaça toda a humanidade. 

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*David Mandel é militante socialista e sindical no Québec, especialista em países da ex-União Soviética. Ensina na Universidade de Quebec em Montreal. Participa há mais de vinte anos de projetos de formação política e sindical na Ucrânia, Rússia e Belarus.

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