"A Igreja ocultou muitas
situações. Todas as instituições o fazem"
O psiquiatra e membro da Comissão
Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja
Católica Daniel Sampaio é o entrevistado desta terça-feira do Vozes ao Minuto.
A Comissão Independente criada para investigar abusos sexuais na Igreja
Católica portuguesa já recolheu 352 testemunhos de vítimas desde que foi
criada, há seis meses. Destes testemunhos, 17 seguiram para o Ministério
Público.
Numa altura em que esta Comissão
luta para que o silêncio deixe de ser a cortina que esconde estes casos, o Notícias
ao Minuto falou com o psiquiatra e membro da Comissão Independente (CI)
para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Daniel
Sampaio sobre o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, o que falta fazer e
as questões de saúde mental que estão associadas a estas vítimas.
Abordamos, ainda, os abusos
sexuais ocultos na Igreja e as consequências que os mesmos têm nas vítimas ao
longo da sua vida. Daniel Sampaio debruçou-se, também, sobre o silêncio -
muitas vezes por medo ou por vergonha -, que se torna trunfo dos agressores, e
sobre necessidade de uma investigação aprofundada por parte do Ministério
Público (MP) e Polícia Judiciária (PJ).
Refira-se que o último balanço da
CI foi feito a 30 de junho.
»» A Igreja Católica foi a única
instituição portuguesa que decidiu encarar o problema do abuso sexual contra
crianças ««
Já foram recolhidos mais de 350
testemunhos de abusos sexuais no seio da Igreja, 17 dos quais seguiram para o
MP, de acordo com o último balanço. Que avaliação faz do que tem sido
descoberto através do trabalho da Comissão e porquê uma percentagem tão mais
baixa de casos que seguem para o MP?
Em primeiro lugar, devemos
lembrar que a Igreja Católica foi a única instituição portuguesa que decidiu
encarar o problema do abuso sexual (AS) contra crianças. Muitos outros grupos
que acolhem e lidam com crianças, incluindo as famílias, deveriam ter a mesma
preocupação e atitude. Porque o AS é uma situação muito mais frequente do que
se possa imaginar: o conjunto dos estudos de prevalência indica que o AS contra
rapazes está entre 66 e 88/1000 e contra raparigas está entre 164 e 197/1000.
Este problema merece toda a
atenção, por isso espero que o trabalho da Comissão Independente seja o ponto
de partida para que este tema nunca seja esquecido.
O número reduzido de casos
enviados para o MP é fácil de explicar: a maioria dos testemunhos não é muito
recente e as situações têm mais tempo do que o prazo de prescrição previsto.
Pessoalmente espero que o MP e a PJ estejam à altura das suas
responsabilidades, porque há muito para investigar.
»» As vítimas não são levadas a
sério e o abusador é protegido ««
A cultura do silêncio é, para si,
uma forma destes abusos se perpetuarem?
A ocultação deste problema existe
em todos os casos e também ocorreu na Igreja Católica. As vítimas não são
levadas a sério e o abusador é protegido, ou porque se receia acusá-lo ou
porque ele fez erguer uma atmosfera de silêncio, com constrangimento e coação
sobre a vítima. Os nossos testemunhos demonstram que pode haver décadas de
silêncio e ocultação.
Como é que se faz a destrinça
entre os casos reais e aqueles que tentem “preencher o inquérito a brincar”,
como referido por si numa entrevista em maio?
Temos mais de 350 testemunhos
validados, mas 29 excluídos. A exclusão é fácil, porque o nosso inquérito
online tem coerência interna nas perguntas, e quem o preenche de forma pouco
séria depressa é detetado.
Por outro lado, as respostas
validadas são de tal modo intensas que não deixam dúvidas sobre a sua
veracidade.
»» A Igreja ocultou muitas
situações. Mas como expliquei acima, todas as instituições, grupos e,
sobretudo, famílias o fazem ««
A Igreja tenta calar, de alguma
forma, as vítimas? Ou seja, há relatos de ameaças ou represálias para quem
denunciar os abusos?
A Igreja ocultou muitas
situações. Mas como expliquei acima, todas as instituições, grupos e,
sobretudo, famílias o fazem. É muito difícil de aceitar que um adulto, muito
conhecido da criança, a possa agredir sexualmente. Na Igreja Católica
impressiona verificar como aquela criança abusada, em muitos casos, tinha laços
de união espiritual com um membro da Igreja, que estava lá para a acolher,
proteger e dirigir espiritualmente.
Não falamos de ameaças ou
represálias, que podem ter havido. Limitamo-nos a descrever situações de
constrangimento, dado o poder do abusador sobre a vítima.
As vítimas dos abusos sexuais
acabam por ficar com questões de saúde mental e não existe, em Portugal,
resposta a este nível, como já referiu anteriormente. Que resposta acha que
deveria ser criada e em que moldes?
De notar que 60% das crianças
abusadas vêm a revelar, ao longo da vida, sintomas graves de psicopatologia,
nomeadamente perturbações de stress pós-traumático, perturbações de ansiedade e
perturbações depressivas, num contexto de alterações mantidas da sua vida
afetiva e sexual.
Sabemos que o acesso a consultas
de Psiquiatria e de Psicologia no SNS não é fácil no nosso país. Por isso
defendo, a nível pessoal, prioridade para este problema, com a criação de uma
'Via Verde' de acesso para todas as vítimas de AS, nas consultas externas de
Psiquiatria de todo o país.
Quanto à Igreja Católica, a minha
ideia - falo também pessoalmente - é de que deveriam ser disponibilizadas
consultas de Psicologia para as vítimas, em todas as dioceses.
Relembramos o número de telefone
da CI, para testemunhos - 917110000 - e o endereço da página oficial para mais
informações - darvozaosilencio.org.
Marta Ferreira | Notícias ao
Minuto
Leia em Notícias ao Minuto
Arquidiocese afasta padre de Samora Correia por esconder
alegados abusos