sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

AINDA A TEMPO DE VOS FALAR DO AMOR – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Em Angola existem dois artistas com o nome de Carlos Ferreira. Um, ainda jovem, é homem de letras. O outro, já falecido, foi um dos mais espantosos artistas plásticos angolanos de sempre. Alma gémea de Julião Félix Machado, o mais internacional de todos, que se distinguiu na charge e espalhou o seu talento ma Imprensa de Lisboa, Paris e Rio de Janeiro. 

O artista das letras é Cassé e João Melo tratou dele num texto escrito com os pés inchados, publicado no Jornal de Angola. O pintor e cartunista é Lito. Fomos amigos fora de horas, sempre alta noite e ledas madrugadas. Tem duas prendadas filhas e uma delas casou com o Manecas, dono de uma musculação invejável. Cada borno que dava, era um cabrito que caía. A cobertura fotográfica do desenlace ficou a cargo do António Ole (é um grande fotógrafo, sabiam?) e deste vosso criado que assegurou a iluminação.

Um dia fui ao Bitoque Sardinha Assada, ali na Mutamba, e estava lá o Manecas com o Seco e outros habitantes daquela nesga de Luanda entre a Rampa do Liceu e as Ingombotas. Estava a cumprimentar os amigos quando estoirou uma cena de pancadaria entre tropozóides muito branquinhos quase polacos. O meu amigo musculado em excesso era furriel miliciano e resolveu pôr ordem na soldadesca. Um dos beligerantes chamou-lhe preto de merda e ele esticou-lhe um borno no cimo do nariz e ao nível dos olhos. Caiu redondo enroscando-se como uma cobra.

Confesso que eu estava abusivamente bebido e resolvi urinar para cima do branquinho. Ficou a minha marca. O Zorro desenhava um Z com a espada, quando aviava os maus. Eu decidi mijar para cima deles, depois de estendidos no chão.

Não sou homem de procurar brigas mas nunca fugi de nenhuma. Um dia estava com o Ninito (Banga Ninito!) na esplanada do Majestic e decidimos ir espreitar a farra no Clube Ginásio de São Paulo. 

Mal tínhamos atravessado a rua, apareceram três ocupantes fardados, também muito branquinhos e um deles perguntou-me: - Onde há putas boas? Eu disse-lhe delicadamente que boas, mesmo muito boas, só em casa deles, as respectivas mamãs e manas se tivessem. Numa fracção de seguindo levei um murro na cara, um pontapé nos tomates e uma patada no estômago. Na fracção seguinte o Ninito pôs os três fora de combate. Eu avancei logo com a minha assinatura e urineipara cima dos três enquanto o Ninito se contorcia com gargalhadas.

Um dia pedi a Canducha em casamento. Ela, enfadada, respondeu: Não sabes que sou puta? Não posso casar. Mas eu insisti. Na época tinha começado a minha carreira (breve) de dramaturgo. Escrevia umas rábulas para o Luís Montês e para o Ary Lopes. Quando for rico, casamos! E a Canducha ria-se de mim.

A publicidade redigida estava a dar-me algum conforto financeiro e decidi alugar um apartamento no prédio Flórida, quase em frente ao Hotel Universo. Era o mais fino que existia na cidade de Luanda. Tinha um empregado permanente a receber e entregar as chaves. Quando saía de casa ia logo uma equipa de limpeza pôr tudo em ordem. Boa vida. Para mostrar à Canducha que não tinha preconceitos fui apresentar-lhe os meus novos aposentos. Apanhei a chave na recepção e chamei o elevador. Entrámos e vi que se aproximava um casal. Deixei a porta de ferro aberta, para eles entrarem. Maldita hora!

O homem quando viu que estava uma negra dentro do elevador perguntou à mulher: Os pretos já chegaram aqui? Bati-lhe com a porta do elevador, com toda a força que arranjei e subimos. Nesse tempo eu adorava aguardente Macieira, bem gelada. Tinha sempre um a garrafa no congelador. E outra fora, porque também apreciava beber o precioso líquido com gelo e soda. A Canducha e eu aviámos uma garrafa. E ela começou a rezingar. Tens de pôr na ordem o senhor que nos ofendeu. Tem de ser castigado. 

E tanto me enxofrou que fui à recepção perguntar em que apartamento morava o ofensor. Fui lá, bati à porta, estrondosamente. Com o não abriu, desfiei a lista dos insultos chamando-lhe tudo o que há de feio. Depois urinei-lhe na porta. Estava assinada a operação de resgate! Claro que a gerência, no dia seguinte, expulsou-me dos Apartamentos Flórida. Mas resgatei a honra ofendida da minha Canducha.

Nunca cheguei a rico. Mas mesmo que chegasse, não casaria com a minha amada Canducha porque ela morreu. Fomos depositá-la no Cemitério Novo e jurei por Sant a Ifigénia que havia de colocar uma lápide na sua campa. Assim que ganhei uns cobres fui à pedreira do Xamwanza e encomendei-lhe a pedra das tristeza com estes dizeres: À Canducha Eterna Sauidade do seu Marido Kitó. A frase era encimada por uma foto dela que tínhamos tirado no fotógrafo paga já do Kinaxixi.

Um dia fomos ao mercado comprar pungo e ela quis ser fotografada. Primeiro sozinha e depois comigo, cabeças encostadas, muito sorridentes. O retrato dela foi impresso, debruado com flores. Encimou a lápide.

Convidei todos os amigos para a cerimónia no Cemitério Novo. Pedi ao Belini e ao Dideus para levarem os seus violões e cantarem a morna Xandinha mas trocando o nome para Canducha. Os teus olhos Canducha são doçura de mel. São magia de sol e têm cambiantes de mar azul. São luar, estrelas, pérolas, feitiço, madrugada. Esses teus olhos Canducha. Enquanto os meus manos cabo-verdianos cantavam eu chorava. O Pedro Jara, cara de mau, cotovelou-me e disse baixinho: Ó cagalhão isto é uma festa, não chores!

Chorei para dentro. A dor inundou-me rapidamente e senti a agonia dos náufragos antes da asfixia definitiva. Tinha sentido o mesmo quando recebi a notícia da morte de Dolores Duran. Hoje eu quero a rosa mais linda que houver e a primeira estrela que vier para enfeitar a noite do meu bem.

E se está escrito nas estrelas que o ano da minha morte é 2022? Tenho tão pouco tempo! Mas se assim for, hoje escrevi para vos falar de amor. 

*Jornalista

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