terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Mais no Cravinho que na ferradura: será difícil ao ministro provar que não mentiu

Vítor Matos | jornalista | Expresso (curto)

Bom dia!

O ministro dos Negócios Estrangeiros,  João Gomes Cravinho,  não gostou “nada mesmo de ser acusado de mentir, muito menos de mentir ao Parlamento português”, sobre a derrapagem nas obras para converter o antigo Hospital Militar de Belém em centro para doentes com Covid-19. Ao fim de quatro dias de silêncio,  o antigo ministro da Defesa acabou por reagir ontem à notícia do Expresso desta sexta-feira, a provar que teve conhecimento formal do aumento exponencial dos custos da obra. João Gomes Cravinho garante que não mentiu, mas admitiu saber que a estimativa inicial de €750 mil era insuficiente (no total acabou nuns chorudos €3,2 milhões). Uma coisa não bate certo com a outra e as justificações do ministro ainda lhe dificultam mais a tarefa de provar que falou verdade aos deputados.

Ora, o que disse então o ministro no Parlamento a 20 de dezembro? Depois de conhecida a operação judicial “Tempestade Perfeita”, que fez arguidos três antigos altos quadros da Defesa com responsabilidades naquela obra, Gomes Cravinho disse esta frase: “Se autorizei algum acréscimo de despesa para além dos €750 mil? Não, não autorizei, nem me foi solicitado que autorizasse”. Palavras arriscadas.

E que disse agora? Reconheceu que “houve uma estimativa inicial” para os trabalhos, mas “percebeu-se que [a verba] era insuficiente”. Ou seja, o ministro admitiu que conhecia o aumento da despesa que não travou quando lhe foi enviado o ofício a dizer que o custo crescia para €1,7 milhões: “Não havia razão nenhuma para travar o que quer que seja naquele momento”, justificou Cravinho ontem em Bruxelas.

E porquê? Porque a obra tinha mesmo de ser feita porque faltavam camas para os doentes com covid-19: “Naquele momento era uma prioridade absoluta criar capacidade para receber doentes Covid, e o edifício precisava de ser preparado”. A prioridade era tão absoluta que uma semana antes de arrancarem as obras, o Governo publicou um decreto-lei a criar um “regime excecional de autorização de despesa” que considerava “tacitamente deferidos” ou aprovados os pedidos de autorização financeira não respondidos em 24 horas.

Perante estes factos, o ministro terá muitas dificuldades em provar ao Parlamento que não mentiu, porque está enleado em contradições:

1 - será politicamente impossível a João Gomes Cravinho dizer que nunca autorizou uma despesa que conhecia, mas que não quis travar, porque afinal queria era que a obra se realizasse;

2 - se não a quis travar, então autorizou o aumento da despesa de forma tácita, quando não respondeu ao ofício da direção-geral, como a lei previa para aquela época de exceção;

3 - se não havia “razão para travar o que quer que seja”, como o ministro disse, e se a “prioridade absoluta” era ter camas para os doentes com covid-19, então isto é uma forma de justificar a autorização da despesa, que no Parlamento o ministro disse que nunca autorizou.

Diferente disto é Cravinho dizer que não autorizou formalmente os procedimentos e adjudicações em concreto feitas pelo seu diretor-geral, Alberto Coelho, aos construtores - entretanto todos constituídos arguidos por corrupção e branqueamento -, mas politicamente deixou que fizesse toda a despesa necessária para ter o hospital pronto em três semanas.

Pode ouvir aqui o podcast Comissão Política, onde debatemos esta questão, assim como os casos de Fernando Medina na Câmara de Lisboa e de Pedro Nuno Santos na TAP (uma nota: o programa foi gravado ontem, antes de João Gomes Cravinho fazer as declarações aos jornalistas em Bruxelas).

Como ontem foi dia de reagir a tudo, João Gomes Cravinho também considerou "difamatória" a notícia da TVI sobre a empresa imobiliária em que tem 20% - por nunca ter conhecido o sócio fundador que lesou o Novo Banco em €26 milhões - e diz que responderia ao questionário do Governo "sem problemas".

Exatamente para avaliar que tipo de respostas dariam alguns ministros, como responderiam os membros do Governo ao questionário das 36 perguntas? A Rita Dinis foi avaliar que ministros fariam acender as luzes vermelhas. Identificou seis casos.

OUTRAS NOTÍCIAS

A crise faz-se cada vez mais sentir na vida dos portugueses. O INE mostra que aumentou a percentagem da população com dificuldade em aquecer a casa e em comer carne ou peixe de dois em dois dias, conta-nos a Raquel Albuquerque. Também se nota um agravamento das condições das casas e a habitação é uma das áreas que mais vão contribuir para um aumento da pobreza das famílias nos próximos tempos, alerta o economista Carlos Farinha Rodrigues.

A habitação, que agora tem honras de ministério, é outro dos problemas agudos em Portugal e que o INE também reporta. Noutro relatório, explica-nos o Vítor Andrade, os preços de venda das casas em Portugal subiram 18,7% em 2022: é a valorização anual mais elevada dos últimos 30 anos, de acordo com o Índice de Preços Residenciais da Confidencial Imobiliário (CI).

Nem todos os dados são tão intuitivos como os anteriores: com os níveis de emprego a baterem máximos e o desemprego em mínimos, a Segurança Social fechou 2022 a pagar um número historicamente baixo de subsídios de desemprego. Em sentido inverso, escreve a Elisabete Miranda, o número de subsídios de doença disparou para valores sem precedentes em mais de uma década. Leia o texto e analise os gráficos.

Sobre a extrema-direita, Augusto Santos Silva, o presidente do parlamento considerou ontem numa conferência do PS que o seu avanço é uma "doença" que "pode ser fatal para a democracia" e, numa alusão aos casos do Governo, pediu que se julguem os ministros pelas políticas que realizam e não pela “roupa suja”...

Robert M. Fishman, sociólogo norte-americano, dá hoje uma conferência na Gulbenkian, para a apresentação de Prática Democrática e Inclusão Política, Origens da Clivagem Ibérica, o primeiro dos livros da coleção “O 25 de Abril visto de fora”, coordenada por António Costa Pinto e promovida pela Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril. O Filipe Garcia foi entrevistá-lo e ele disse que "Em Portugal e Espanha os legados das ditaduras ainda se vão sentir por muito tempo".

A Polícia Judiciária ontem realizou buscas na Câmara de Setúbal por causa de "processos de contratação pública na área do urbanismo", revelou a autarquia. Não há para já arguidos constituídos.

Mais desenvolvimentos na Operação Vórtex, a investigação de corrupção na Câmara de Espinho. O Hugo Franco revela-nos que o construtor Francisco Pessegueiro dizia que o autarca socialista Miguel Reis tinha “mais necessidade de dinheiro” do que o social-democrata Pinto Moreira, ex-presidente da câmara que agora era vice-presidente da bancada do PSD.

LÁ FORA…

Na Ucrânia, cerca de 40 mil presidiários recrutados pelo grupo mercenário Wagner morreram, desertaram, foram feridos informou uma ONG russa, pode ler no liveblog sobre a guerra. A UE aprovou um novo pacote de ajuda militar, enquanto o Kremlin ameaçou o povo ucraniano se Ocidente enviar tanques para Kiev. A Finlândia deve considerar a hipótese de aderir à NATO sem a Suécia, depois de o presidente da Turquia ter excluído o apoio à candidatura sueca.

O general Arnaut Moreira conversa com Paulo Baldaia no podcast Expresso da Manhã sobre o envio de armamento ofensivo para a Ucrânia, que continua à espera dos carros de combate alemães Leopard 2 para fazer frente à ofensiva russa, mas os seus aliados ocidentais não se entendem.

Sergei Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, começa hoje uma visita de trabalho a Angola, que ficou neutral perante a invasão da Ucrânia, mas que em outubro se juntou à maioria dos países que condenaram a anexação de territórios ucranianos pela Rússia.

Nos Estados Unidos, um comité do Congresso, controlado pelos Republicanos, voltou a exigir um registo dos visitantes à residência do Presidente Joe Biden em Wilmington, no estado do Delaware, após a descoberta de novos documentos confidenciais no local.

Na Antártida, foi descoberto um icebergue com uma área equivalente a 15 vezes a de Paris. O grande bloco de gelo totaliza 1550 quilómetros quadrados e surgiu como resultado de uma fissura. "Não está ligado às alterações climáticas", disse o glaciólogo Dominic Hodgson

FRASES

“As pessoas trans são, têm de ser, iguais em direitos. Até no que lhes permite representar qualquer papel numa peça de teatro. A justeza política da sua causa não pode é servir para reinventar a arte e a cultura.”
Manuel Carvalho, diretor do “Público”, no editorial

“Há muita gente que gosta de Pedro Nuno Santos. Não só à esquerda, mas também à direita. É fácil perceber porquê: tem a qualidade ridiculamente rara de parecer acreditar nalguma coisa e de querer fazer algumas coisas. Só que em todo este processo à volta do dossier TAP, ele foi apenas mais um a contribuir para a banalização e institucionalização da mentira.”
João Miguel Tavares, colunista do “Público

“É mais um elemento que apenas reforça a convicção da leviandade com que todo este processo da TAP foi gerido. E que faz com que seja legítimo, no nosso espírito, colocar a hipótese de estarmos a ser governados por uma equipa de pessoas sem sentido de Estado nem profissionalismo. Dentro da lógica da sobrevivência política de alguns elementos do Governo, a TAP foi tratada como o dossier de Pedro Nuno Santos com quem ninguém se queria meter.”
Helena Garrido, colunista do “Observador

PODCASTS A NÃO PERDER (sugestões da equipa multimédia do Expresso)

Montenegro vai ferido de asa. A engenhosa greve dos professores e a audição da presidente da TAP. Miguel Sousa Tavares de Viva Voz sobre as consequências - no PSD e para a liderança - da investigação na Operação Vórtex que envolve um ex-autarca do partido. Considera que Luís Montenegro "não está morto politicamente", mas “perdeu autoridade moral”. No podcast que acompanha a crónica, admite que "há razões indiscutíveis" no protesto dos professores, mas alerta para as consequências e, no improviso, analisa as declarações da presidente da TAP no Parlamento.

“Em cargos de alta liderança a largo prazo a competência é determinante”. No quarto episódio de O CEO é o Limite, Cátia Mateus recebe Inês Caldeira, primeira CEO mulher da L'Óreal em Portugal e atual diretora mundial adjunta da empresa, para uma conversa sobre o poder ilusório das “cunhas”, a importância de trabalhar numa empresa “que sonhe por nós” e as questões da paridade em cargos de topo.

“Nós, pessoas gays, lésbicas, bi, trans, intersexo, não binárias, não somos anedotas, somos poderosas!”. Ana Aresta presidente da ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo – considera que, apesar dos grandes avanços na lei, o país é ainda “muito homofóbico e transfóbico”, com base em recentes relatos e estudos sobre a violência e discriminação contra estas comunidades nas famílias, escolas e outras instituições portuguesas. Explica, em A Beleza das Pequenas Coisas de Bernardo Mendonça, como o ativismo a ajudou a ‘sair do armário’ e conta pela primeira vez publicamente como a psicoterapia a ajudou a tratar de feridas profundas do passado

O QUE ANDO A LER

Começa-se e não se percebe bem o primeiro capítulo todo impresso em itálico, porque não faz sentido aquilo que não é suposto fazer sentido: as alucinações de uma pessoa esquizofrénica não é suposto fazerem sentido e parece que isto transbordará para o segundo livro. Do surreal passamos ao hiper-realista no capítulo seguinte sobre os mergulhadores no meio dos cadáveres do avião naufragado, e os capítulos alternam assim, para nos contar a história de dois filhos de um cientista da equipa de Robert Oppenheimer - o criador da bomba atómica -, dois génios da matemática, ele e ela, dois irmãos, Bobby e Alicia Western, duas histórias dramáticas, incesto e vários mistérios pelo meio.

Este é o caso que ainda estou a estranhar, o primeiro dos dois últimos livros do mítico norte-americano Cormac McCarthy: “O Passageiro”, a que se segue “Stella Maris”, da Relógio de Água, com tradução de Paulo Faria. Espero que se entranhe, porque foi o também que aconteceu com “Este país não é para velhos” ou com “A Estrada”. Há 16 anos que os “mcarthistas” esperavam por este momento. Estou a aproveitá-lo.

Entretanto, já espreitei o livro do consultor de comunicação Luís Paixão Martins com o título provocador “Como Perder uma Eleição" (Zigurate), uma obra para ‘political junkies’ como eu, que enumera os erros básicos que os políticos cometem nas campanhas eleitorais, para nos contar a história da sua participação nas maiorias absolutas de José Sócrates, de António Costa e de Cavaco Silva nas Presidenciais. Devo voltar a ele aqui na próxima volta do Expresso Curto.

Na pilha dos livros para ler e meio lidos, tenho no topo o último de poesia do diplomata e cônsul-geral em Boston, Tiago Araújo - mas sobretudo meu especial amigo, fica aqui a declaração de interesses - que acabou de imprimir “uma estação no deserto” (Averno 141): “cuido do meu deserto como de uma horta/ para ter uma vida erma e desimpedida/ de onde se possa olhar para longe,/ um lugar vasto onde enterrar mais ossos que sementes.”

Este Curto fica por aqui: um bom resto de semana!

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